“Há mais vida além do Orçamento”. A história da frase de Sampaio que marcou o debate orçamental em Portugal
A frase proferida há mais de 18 anos pelo antigo Presidente da República tornou-se um slogan contra a austeridade. Foi usada pela esquerda, mas também pela direita.
“Há mais vida além do Orçamento”. A frase foi proferida pela primeira vez por Jorge Sampaio em 2003, no discurso das comemorações do 25 de abril na Assembleia da República. Tornou-se um clássico da política nacional e um slogan da esquerda no combate à austeridade após os anos da troika, adulterada para uma versão de que o autor original discordava. Até à direita foi usada.
Recuperar o contexto da frase leva a que se repesque uma outra, que também ficaria no ouvido, dita um ano antes pelo então primeiro-ministro, pouco depois de tomar posse, em abril de 2002. Durão Barroso arremessa contra o PS por causa do estado das contas públicas: “Os senhores deixaram Portugal de tanga”. Barroso, recorde-se, sucedeu a António Guterres, que se demitiu para evitar que o país caísse num “pântano”.
Segundo as contas das Finanças, lideradas por Manuela Ferreira Leite, o défice de 2001 derrapou 450 milhões de contos (2.244 milhões de euros), saltando de 3,2% para 4,8% do PIB e obrigando Durão Barroso a adiar o alívio fiscal prometido na campanha. Com a adesão ao euro, em 1999, o país ficara sujeito às regras orçamentais de Bruxelas e ao famoso limite dos 3%. Veio a consolidação orçamental e em 2002 o saldo das contas públicas foi menos negativo, baixando para -3,3%.
Não eram apenas as contas públicas a gerar preocupação. Depois de crescer 3,8% no ano 2000, a economia começou a desacelerar. A variação do PIB baixou para 1,9% em 2001 e 0,8% em 2002. Nos primeiros meses de 2003 já se receia uma recessão, que acabaria por se confirmar.
É então, a 25 de abril de 2003, que o Presidente Jorge Sampaio, profere a célebre frase, durante o discurso no Parlamento:
“O problema orçamental da economia portuguesa, merecendo embora exigente e necessária atenção, não é o único. Há mais vida para além do orçamento. A economia é mais do que finanças públicas. O aumento do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é fundamental para o nosso futuro e requer o esforço continuado e empenhado de todos: governantes, empresários e trabalhadores”.
O ano terminaria com uma recessão de 0,9% do PIB. Embora a desaceleração internacional também tenha contribuído, a crise em Portugal, em contraciclo com os pares europeus, deveu-se sobretudo à contração do consumo privado e do investimento, depois do endividamento excessivo do período anterior à entrada para a moeda única. O défice voltaria a subir, desta feita para os 5,7%.
“O Orçamento é uma coisa mais vasta. É um plano de desenvolvimento do país. As contas públicas são um elemento do Orçamento, mas não é o único”, disse Jorge Sampaio numa entrevista à TVI, por ocasião dos seus 80 anos, interpretando a sua própria frase. “Foi o que quis dizer. Nesse sentido foi premonitório”, acrescentou. A frase ganharia uma importância na política nacional impensável na altura.
Um chavão que marcou o debate orçamental
Seria outra crise, muito mais grave, a trazer a afirmação para a ribalta. Com um endividamento muito elevado e a economia a derrapar, Portugal é arrastado na crise das dívidas soberanas e, a 6 de abril de 2011, o Governo é obrigado a pedir ajuda externa. A troika — FMI, Comissão Europeia e BCE — impõe ao país um duro plano de consolidação orçamental, que na verdade já começara a ser feita em 2010. A frase de Jorge Sampaio marcaria o debate orçamental, tornando-se um slogan de oposição às medidas de austeridade.
A afirmação seria popularizada, no entanto, com uma palavra diferente, que lhe adulterava o sentido mas servia melhor o momento e as intenções políticas da altura: o “Orçamento” deu lugar a “défice”. O antigo presidente repudiaria, ainda em 2010 a alteração: “Tenho visto essa frase citada ultimamente, de uma forma completamente errada, que repudio”. O seu ponto não era o saldo das contas públicas ser positivo ou negativo, mas a necessidade de dar atenção a outras prioridades políticas. A crise colou-lhe, no entanto, outra semântica.
Catarina Martins usaria a frase durante a campanha para as legislativas de 2015 para argumentar que o PS não era diferente da direita: “Porque nós nos lembramos que aquele PS que dizia que há vida para além do défice está desaparecido há muito”.
Uns meses antes, seria a direita a recorrer à afirmação. No debate do Estado da Nação, Paulo Portas, então líder do CDS-PP, apontado também ele para um novo ciclo no país. “Olhemos com confiança para os dias que estão à nossa frente. Há vida para além do défice”.
António Costa usaria a frase original no debate do Orçamento do Estado para 2017, em outubro de 2016, um ano depois de tomar posse como primeiro-ministro com a promessa de “virar a página da austeridade”. “Há mais vida além do Orçamento. A prioridade é melhorar vida das pessoas”, disse no seu discurso no Parlamento. Voltaria a fazê-lo no encerramento das jornadas parlamentares do PS, em janeiro de 2020, a uma semana da votação final global do Orçamento, lembrando Jorge Sampaio.
A afirmação ganharia outra vida, já com a covid-19. Primeiro Marcelo Rebelo de Sousa e depois António Costa vieram defender que “há mais vida além da pandemia”.
Jorge Sampaio faleceu esta sexta-feira, dia 10 de setembro, aos 81 anos. Esta, e outras frases marcantes, vão continuar a ecoar na política portuguesa por muitos anos.
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