Rendeiro entra no clube dos fugitivos famosos em Portugal

Recorde outros cinco episódios de fuga às autoridades que ficaram na história da justiça portuguesa. Da política autárquica à alta finança, passando pelas missas e pelo futebol.

João Rendeiro confirmou esta quarta-feira que não vai regressar a Portugal para cumprir as três penas de prisão efetiva a que foi condenado. Os advogados do BPP avisaram as autoridades que o ex-presidente poderia fugir e esta tarde uma juíza já fez seguir para a Interpol e Europol os mandados de detenção internacional.

Julgado por burla qualificada, falsidade informática e fraude fiscal, o antigo banqueiro é apenas o mais recente acusado ou condenado pelos tribunais portugueses a escapar para o estrangeiro para tentar não cumprir a pena ou ir a julgamento. Recorde alguns dos mais famosos casos de evasão em Portugal, que vão da política à alta finança, passando pelas missas e pelo futebol.

João Vale e Azevedo

Após ter cumprido cinco sextos de uma pena de 11 anos e meio, em cúmulo jurídico, referente aos processos Ovchinnikov, Euroárea, Dantas da Cunha e Ribafria – e já depois de ter sido detido em Inglaterra, onde se tinha refugiado, e extraditado para Portugal em 2012 –, João Vale e Azevedo acabou por ser libertado condicionalmente em junho de 2016, ficando obrigado a apresentações periódicas e proibido de ausentar-se do país.

No entanto, poucos dias antes da emissão de um mandado de detenção para cumprir uma outra pena de dez anos de prisão, esta relacionada com burlas ao Benfica nas transferências de Scott Minto, Gary Charles, Tahar e Amaral, o ex-presidente dos encarnados fugiu para Londres. A 14 de junho de 2018, segundo relatou o CM, o advogado que declarava viver apenas com 441 euros por mês e dos legumes que cultivava numa horta em Sintra, fretou um jato privado por cerca de 20 mil euros e partiu do Aeródromo de Tires rumo à capital inglesa.

Em abril de 2021, um tribunal do Reino Unido declarou que Vale e Azevedo está exonerado de insolvência, na prática perdoando-lhe os 60 milhões de euros de dívidas, dos quais cerca de 15 milhões foram desviados do clube da Luz por via da transferência de jogadores e da venda de terrenos. Com esta decisão da justiça britânica, foram-lhe restituídos todos os direitos naquele país, onde pode voltar a comprar imóveis ou outros bens sem que sejam executados pelas autoridades.

Fátima Felgueiras

O caso Saco Azul rebentou em 1999, com uma carta anónima enviada ao então Procurador-geral da República, Cunha Rodrigues, que denunciava um esquema na Câmara Municipal de Felgueiras que incluía viagens, utilização dos meios da autarquia e negócios com empresas. Acusada dos crimes de peculato e de abuso de poder e tendo sabido com algumas horas de antecedência do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que decretava a prisão preventiva, Fátima Felgueiras fugiu para o Brasil no dia 5 de maio de 2003. Foi a partir de lá que proferiu uma declaração que também ficou gravada na história: “Eu não fugi à justiça. Saí livremente do meu país”.

Com dupla nacionalidade – é filha de pais portugueses e natural do Rio de Janeiro, onde nasceu e viveu durante quatro anos –, a autarca socialista sempre clamou inocência e só regressou a Portugal em setembro de 2005. Detida durante algumas horas, acabou por ser imediatamente libertada, ficando a aguardar julgamento em liberdade. E poucos dias depois anunciou a candidatura à Câmara de Felgueiras, que viria a ganhar nas eleições autárquicas disputadas no mês seguinte, na liderança do movimento independente Sempre Presente. Fez apenas um mandato, acabando derrotada nas eleições seguintes (2009) por uma coligação de direita.

Em 2012, o Tribunal da Relação de Guimarães confirmou a absolvição de Fátima Felgueiras, que um ano antes tinha sido ilibada de peculato – o único crime do processo Saco Azul que não tinha sido considerado prescrito. Dos 23 crimes de que foi formalmente acusada, acabou por não ser condenada por nenhum. Em abril deste ano, em entrevista a Manuel Luís Goucha (TVI), queixou-se de “uma tremenda monstruosidade e falsidade”. “Hoje à distância, até podemos ver que daria jeito centrar as coisas naquela mulher que dava nas vistas, que fazia muita obra, que estava sempre na ribalta porque se empenhava”, disse a ex-autarca.

Padre Frederico

“Fui condenado por convicção do tribunal. Não há uma única prova contra mim. Nem de pedofilia, nem de assassinato”. Também o padre Frederico, nascido no estado brasileiro de Rio Grande do Norte, continuou sempre a afirmar ser inocente e numa entrevista ao jornal Sol, em 2015, acusou os juízes e procuradores que tiveram o seu caso em mãos de “utilizaram o método fascista” de repetir uma mentira muitas vezes até aparentar ser verdade.

Foi em 1993 que um tribunal de júri no Funchal deu como provado que, no ano anterior, Frederico Marcos da Cunha, um sacerdote católico que já estava implicado numa rede de pedofilia, atirou um jovem de 15 anos de uma falésia no Caniçal, na ilha da Madeira, condenando-o a um cúmulo jurídico de 13 anos de prisão pelo assassinato de Luís Miguel Correia e por crimes de natureza sexual.

Na sequência deste julgamento, que durou apenas três meses e foi o primeiro a ser transmitido em direto pelas televisões portuguesas, o padre Frederico começou a cumprir pena no Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus. Até que a 7 de abril de 1998 aproveitou uma licença de saída precária e fugiu para Copacabana, no Rio de Janeiro, onde acabou protegido pelas regras de extradição entre Portugal e o Brasil.

Pedro Caldeira

No início dos anos 1990, depois de quase duas décadas em que liderou a maior sociedade de corretagem do país e chegou a ser responsável por mais de metade das operações negociadas na praça portuguesa, Pedro Caldeira entrou também em queda com o crash da bolsa e acabou indiciado pela prática de 17 crimes de abuso de confiança e 65 de burla agravada, por um alegado esquema que deixou na altura dezenas de credores a arder com o equivalente a 12,5 milhões de euros.

Envolvido num dos maiores escândalos financeiros em Portugal, a 23 de julho de 1992, o corretor da Bolsa de Lisboa apanhou um avião de Madrid para Miami, na Florida. Só oito meses depois, a 19 de março de 1993, acabou detido por agentes armados do FBI num hotel de luxo em Atlanta, onde estava com a família. Foi extraditado para Portugal e, oito anos mais tarde, acabou por ser absolvido dos crimes de que era acusado.

“Quando estoirei financeiramente, acabei acusado de me servir, em proveito próprio, do dinheiro dos clientes, que supostamente angariava com a miragem dos juros altos. Eu apenas investia em bolsa onde se ganha e se perde. Não comprava nem vendia ações para mim. Era nas corretagens que ganhava dinheiro: por cada mil contos que alguém transacionava, cabiam-me cinco. Foi isso que provei em tribunal, com a apresentação de 34 mil documentos“, relatou à revista Visão em 2013.

Nessa entrevista, Pedro Caldeira recordou o “poder enorme” que tornava “quase obrigatório que um banco estrangeiro que investisse em Portugal passasse antes por [si]” ou como os planos de ser banqueiro, com Américo Amorim ou Ilídio Pinho como acionistas, foram bloqueados pelo então primeiro-ministro, Cavaco Silva. “Tenho a perfeita noção de que o que me perdeu na vida – independentemente dos inimigos que ganhei – foi a minha vaidade, ambição e orgulho, que hoje considero atitudes completamente estúpidas. E fui um privilegiado. Deus deu-me tudo – até ganhei o Totoloto aos 35 anos. Mas os meus erros tudo estragaram”, admitiu.

José Manuel Beleza

“É uma coisa de que me custa falar. Na altura custou-me toda a vida profissional. Fiquei sem trabalho, andei anos e anos completamente a penar”. Foi desta forma que, em março de 2013, José Manuel Beleza recordou à RTP o processo judicial que começou quando tinha 29 anos e que só terminou aos 53 anos. Num caso que teve início em 1987 e que começou a ser investigado dois anos depois, era um dos principais arguidos num processo relativo a irregularidades detetadas pela Inspeção-Geral das Finanças nas obras de vários hospitais e em campanhas publicitárias do Ministério da Saúde, que era liderado pela sua irmã, Leonor Beleza.

Acusado de um crime de burla agravada pelo uso de uma empresa fictícia (Planimagem) para receber 40 mil contos desses contratos, o que lhe valeria uma condenação inicial a quatro anos de prisão – o ex-secretário de Estado, Fernando da Costa Freire, foi sentenciado a seis anos em 1994 –, Zezé Beleza, como era conhecido, fugiu de Portugal a 14 de maio de 1990. Procurado pela Interpol, andou a monte mais de dois anos e conseguiu que o diplomata Paulo Rufino lhe revalidasse o passaporte por duas vezes, em Banguecoque e em Praga. Aterrou em Lisboa em novembro de 1992, entregando-se às autoridades.

Os alegados crimes de burla prescreveram em 2004. Mas o Estado não desistiu e avançou com um pedido de indemnização cível no valor de 297 mil euros, acrescidos de juros de mora a contar desde fevereiro de 1991, o que dava perto de 400 mil euros só em juros. Porém, todos os réus acabariam por ser absolvidos e as custas judiciais do processo recaíram sobre o Estado português.

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