PME

Da cozinha à floresta, empresas portuguesas abrem empregos a ucranianos

De norte a sul, já há mais de 17 mil postos de trabalho disponíveis para refugiados e em vários setores. Conheça as ofertas e as motivações de seis empresários dispostos a acolher quem foge da guerra.

Quando Grácia Sofia Barbosa montou um ateliê em Braga especializado em trabalhos manuais para peças de vestuário, calçado ou joalharia, a primeira pessoa que chamou para trabalhar consigo foi uma ucraniana. Não se arrependeu e, 17 anos depois, mais de 90% da equipa de 25 pessoas é composta por trabalhadoras com origem na Ucrânia. “Desde sempre me inspiraram confiança. Confio cegamente no trabalho delas”, relata ao ECO a empreendedora minhota.

“Estamos a viver esta situação de uma forma muito particular porque há familiares de pessoas que aqui trabalham que estão a tentar chegar à Polónia. Uma das nossas colaboradoras está a caminho de lá para ir buscar a família. Estamos a viver isto há umas semanas e toca-nos de forma especial. Não está a ser fácil lidar com tudo isto”, admite a gerente da Grácia Sofia, que também tem funcionárias de origem russa. Já criou pulseiras solidárias e decidiu abrir um novo posto de trabalho para quem está a fugir da guerra.

Equipa do ateliê Grácia Sofia, composta maioritariamente por ucranianas

Grácia Sofia Barbosa admite que “gostava de disponibilizar mais” vagas, mas o ateliê é pequeno e “infelizmente só [conseguirá] meter uma pessoa”. “Se não houvesse esta situação, não iria meter mais ninguém na empresa. Honestamente, é por uma questão solidária. É quase uma obrigação fazermos algum sacrifício por esta causa”, sustenta, sublinhando que a ideia será integrar essa pessoa no novo projeto de está a preparar e que envolve o lançamento de uma marca, mas que a função concreta vai depender das competências que a pessoa tiver.

Esta é uma das mais de 17 mil ofertas de emprego que as empresas portuguesas já registaram na plataforma criada pelo Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) para recolher as oportunidades de trabalho para os refugiados ucranianos que cheguem a Portugal nas próximas semanas por causa da ofensiva lançada pela Rússia. Outras duas estão na vila termal de Caldelas, no concelho de Amares, que tem uma dúzia de funcionários efetivos na área da restauração.

De portas abertas há meio século, fundado pelos pais e liderado desde 2008 por José Antunes, o Restaurante de Caldelas procura pessoas para a cozinha, para a limpeza e até para a sala, “desde que saibam falar inglês”. O empresário nortenho, que tem também uma empresa de catering, indica que são vagas que já tem “há quase um ano no centro de emprego”, ainda por preencher, neste caso “com a vantagem de poder dar alojamento aos refugiados, mesmo junto ao trabalho”, além de garantir a alimentação, o que “pode ser importante para ajudar na integração deles”.

Hélder Ventura também promete dar “uma ajuda grande” aos ucranianos que queiram trabalhar na Ambiflora, a empresa do setor florestal e do ambiente que criou em 2003 e que emprega atualmente cerca de 40 pessoas. Está a pensar distribuir vouchers para a alimentação ou em adiantar dinheiro – “podemos dar logo dois ou três mil euros para a pessoa não se sentir privada de nada” – para facilitar a instalação no país. “Não é só pelo trabalho, é também uma questão de solidariedade. Claro que precisamos de trabalhadores, mas não é nas condições mínimas. É nas condições ideais para a pessoa estar bem”, reclama.

Não é só pelo trabalho, é também uma questão de solidariedade. Claro que precisamos de trabalhadores, mas não é nas condições mínimas. É nas condições ideais para a pessoa estar bem.

Hélder Ventura

Gerente da Ambiflora

Especialista em limpezas de florestas e plantações, esta empresa que fatura perto de cinco milhões de euros por ano colocou na lista operadores de motosserra e motorroçadoras por serem funções que “não exigem grandes qualificações”, precisando apenas de uma formação inicial ao nível da segurança. “Claro que se viesse pessoal que soubesse operar máquinas giratórias, bulldozers ou tratores, seria a cereja no topo do bolo”, acrescenta, assinalando que “já não [está] a pôr a fasquia tão alta, que é mais difícil encontrar pessoal habilitado” para posições.

Hélder Ventura, gerente da Ambiflora

Segundo o Ministério do Trabalho, entre as ofertas incluídas na plataforma a nível nacional, há uma “enorme diversidade de profissões pretendidas, sendo que os principais setores com ofertas de emprego colocadas são tecnologias de informação, transportes (motoristas), restauração e hotelaria, setor social e construção civil”. Em causa estão alguns dos setores que estão a ser mais castigados pela escassez de recursos humanos, mas os sindicatos já vieram lembrar que é preciso assegurar que têm acesso a empregos adequados às suas competências e carreiras, com remunerações correspondentes e dignas.

Foi para “tentar conciliar a notória falta de mão-de-obra em Portugal com a necessidade de trabalho para responder a este flagelo do povo ucraniano”, explica ao ECO o presidente executivo, Ricardo Salgado, que também a DSTelecom abriu vagas para funções de backoffice mais administrativas e que dão suporte aos grupos no terreno – e para as equipas que trabalham na manutenção da infraestrutura e nas áreas de instalação e suporte ao cliente final.

Gonçalo Castro (Grupo Pinto Brasil), Ricardo Salgado (DSTelecom), Isabel Carneiro (Polopique), Ricardo Costa (Grupo Bernardo da Costa) e Ramiro Brito (Grupo Érre), membros da comissão executiva da Associação Empresarial do Minho

“Temos alguma dificuldade em encontrar disponibilidade de recursos para estas áreas. De imediato abrimos essas vagas para ver também se conseguimos ajudar. As condições são exatamente as mesmas”, resume o responsável deste operador grossista de telecomunicações, que fatura 32 milhões de euros, tem 250 colaboradores e presença a nível nacional, cobrindo mais de uma centena de municípios. No total (e igualmente na plataforma lançada pela Associação Empresarial do Minho), o grupo DST disponibilizou mais de 180 vagas, incluindo para motoristas e para o setor da construção.

Temos alguma dificuldade em encontrar disponibilidade de recursos para esta áreas. De imediato abrimos essas vagas para ver também se conseguimos ajudar. As condições são exatamente as mesmas.

Ricardo Salgado

Presidente executivo da DSTelecom

Em Barcelos, a Liconfe pode abrir até dez postos de trabalho nas áreas de produção, comercial e logística. Hélder Saldanha, diretor-geral desta fábrica de linhas de coser de alta performance para várias indústrias, assinala que estas vagas podem ser ocupadas por mulheres ou por pessoas com mais idade, que são precisamente quem compõe esta primeira vaga de refugiados em idade ativa.

“Todos estamos consternados com o que vemos. Compreendemos o papel social das empresas nas comunidades em que estão inseridas e também queremos contribuir positivamente para a integração destas pessoas”, reforça o líder desta empresa criada em 1987, que soma 65 funcionários e que faturou sete milhões de euros no ano passado. Com exportações para dez países, diz que “não [tem] dificuldade em arrendar uma casa, estabelecer transporte e adiantar dinheiro para poderem alimentar-se e terem dignidade para poderem trabalhar”.

Showroom da Liconfe, produtora de linhas de coser de alta performance para a indústria

A Liconfe tem um cliente em Kharkiv – “tenho trocado mensagens com um dos nossos interlocutores na Ucrânia, que está num abrigo e que diz que aquilo parece a Síria” – e a Polónia na lista dos melhores mercados. O leste europeu faz parte dos planos de negócio e de expansão, pelo que “algumas das questões que atormentam aquela região não são totalmente estranhas” a Hélder Saldanha, que por isso antecipa que os ucranianos possam também ser integrados no departamento comercial da PME barcelense.

Não temos dificuldade em arrendar uma casa, estabelecer transporte e adiantar dinheiro para poderem alimentar-se e terem dignidade para poderem trabalhar.

Hélder Saldanha

Diretor-geral da Liconfe

Na Eticadata, que há 32 anos desenvolve software de gestão empresarial e que tem distribuidores em dez países, as oportunidades de recrutamento são “maioritariamente” para pessoas com conhecimento em tecnologias de informação. Antero Gama, responsável de marketing da empresa detida por José Gonçalves, que emprega 55 pessoas e faturou 3,2 milhões de euros em 2021, assume que “há um défice de pessoas com estas competências também no mercado português” e que estas eram vagas que já estavam abertas e que alarga agora à população ucraniana, com as mesmas condições remuneratórias, para “ajudar com o que pode”.

Transporte, bolsas artísticas, doações e alojamento

Além dos empregos, empresas portuguesas de vários setores estão a participar de outras formas no auxílio à Ucrânia. Por exemplo, da Mealhada já partiram quatro camiões da Transportes Pascoal, carregados com alimentos ou vestuário. O vídeo com a partida tornou-se viral nas redes sociais e a administração desta transportadora de mercadorias já confirmou que a quantidade de produtos que está a ser doada pela população daquela zona vai encher, pelo menos, outros tantos veículos, rumo àquele país assolado pela guerra.

Também a empresa detentora das marcas Segafredo Zanetti, Nicola e Chave D’Ouro já anunciou que vai doar cinco toneladas de café moído à Ucrânia, onde é fornecedora de uma das maiores cadeias de supermercados (Fozzy Group), deixando ao mesmo tempo de abastecer o mercado russo. Em comunicado, Rolim Marques, administrador da MZBI Portugal, destaca que “era impensável não contribuir para apoiar o povo ucraniano numa altura em que enfrenta um atentado à sua integridade territorial e à sua soberania”.

A abertura de seis bolsas para residências artísticas de um ano para artistas ucranianas foi a resposta da Zet Gallery e do DST Group, a quem o Estado vendeu a participação na Efacec. Além da bolsa mensal no valor de mil euros, promete alojamento gratuito, vai organizar uma exposição das obras produzidas em contexto de residência e apoiar na promoção das artistas. A marca vocacionada para a divulgação de artistas e arte contemporânea, integrada no grupo liderado por José Teixeira, diz que já está em contacto com uma equipa de curadores ucranianos para identificar potenciais interessadas.

José Soares dos Santos, presidente executivo da Sociedade Francisco Manuel dos SantosPedro Pina

Na vizinha Polónia, a Sociedade Francisco Manuel dos Santos, acionista maioritário do Grupo Jerónimo Martins, decidiu doar à Fundação Biedronka 2,5 milhões de euros para a criação de um programa de acomodação gratuita temporária para os refugiados ucranianos mais necessitados, através da emissão de vouchers para hotéis, estalagens e outros tipos de alojamento no país, que serão distribuídos por organizações de ajuda humanitária que se encontram no terreno e com quem a Fundação tem estado a trabalhar no apoio aos refugiados.

A sociedade que tem José Soares dos Santos como presidente executivo, diz que este apoio junta-se à contribuição financeira de cinco milhões de euros que a Jerónimo Martins repartiu de forma igual por cinco organizações que estão ativas no auxílio a pessoas na Ucrânia e aos refugiados. Também a Biedronka e a Fundação Biedronka alocaram já o equivalente a cerca de dois milhões de euros (10 milhões de zloty) para apoio alimentar e não alimentar aos refugiados ucranianos na Polónia.

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