Como é que Putin pode ser processado por crimes de guerra na Ucrânia?

  • Joana Abrantes Gomes
  • 23 Março 2022

Joe Biden apelidou Putin de "criminoso de guerra" e o procurador-geral do TPI anunciou a abertura de uma investigação a possíveis crimes de guerra na Ucrânia. Mas como pode Putin ser processado?

Joe Biden, Josep Borrell e Boris Johnson são alguns dos líderes que já condenaram a invasão russa da Ucrânia com a expressão “crime de guerra”. Mas pode o Presidente da Rússia vir a responder judicialmente por eles? Peritos jurídicos explicam à Reuters (acesso livre/conteúdo em inglês) que um processo contra Putin e outros líderes russos enfrentará grandes obstáculos e pode levar anos até uma condenação.

Em primeiro lugar, importa perceber o que define um crime de guerra. Segundo o Tribunal Penal Internacional (TPI), crimes de guerra constituem “graves violações” das Convenções de Genebra, um conjunto de tratados que definem as normas para as leis internacionais relativas ao Direito Humanitário Internacional em tempos de guerra. A antiga União Soviética ratificou estas convenções em 1954, mas a Rússia revogou o reconhecimento de um dos protocolos em 2019, permanecendo signatária dos restantes acordos.

À luz da guerra na Ucrânia, esta, apoiada pelo Ocidente, tem acusado as tropas russas de atacarem civis indiscriminadamente. Por seu lado, a Rússia — que descreve a sua invasão da Ucrânia como uma “operação militar especial” — nega atacar civis e afirma que o seu objetivo é “desmilitarizar e desnazificar” a Ucrânia, o que Kiev e os países ocidentais consideram não ter fundamento. No entender de especialistas jurídicos, entre as “graves violações” podem constar o ataque deliberado a civis e o ataque a alvos militares legítimos, em que as baixas civis seriam “excessivas”.

Certo para já é que, no passado dia 2 de março, o procurador principal do TPI, Karim Khan, anunciou a abertura de uma investigação sobre possíveis crimes de guerra na Ucrânia, depois de receber pedidos de 41 países membros do tribunal (entre os quais Portugal). Ressalva-se, contudo, que o âmbito da investigação “abrange quaisquer alegações passadas e presentes de crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou genocídio cometidos em qualquer parte do território da Ucrânia por qualquer pessoa a partir de 21 de novembro de 2013”, lê-se no website do TPI.

Nem a Rússia nem a Ucrânia são Estados parte do Estatuto de Roma, o tratado que estabeleceu o TPI, e Moscovo não reconhece sequer a instância judiciária. Mas a Ucrânia deu a sua aprovação ao tribunal para investigar alegadas atrocidades cometidas no seu território entre 21 de novembro de 2013 até 22 de fevereiro de 2014, tendo prorrogado este período para abranger os alegados crimes em curso cometidos em todo o território da Ucrânia a partir de 20 de fevereiro de 2014, ou seja, após a anexação da Crimeia pela Rússia.

A Rússia, por seu lado, pode decidir não cooperar com o TPI e qualquer julgamento será adiado até que um arguido seja detido. No entanto, isso “não impedirá o tribunal internacional de prosseguir com a sua acusação e emitir os seus mandados de detenção”, ressalvou à Reuters a professora de Direito da Universidade Americana Rebecca Hamilton.

No caso de os procuradores conseguirem demonstrar “motivos razoáveis para acreditar” que foram cometidos crimes de guerra, o TPI emitirá um mandado de detenção, mas uma condenação implica que o procurador prove que um arguido é culpado, o que vai para além de uma dúvida razoável, sublinham os especialistas.

Para a maioria das acusações, isso exige que se prove a intenção do arguido em cometer o alegado crime. Uma forma de o fazer seria um procurador mostrar que não havia alvos militares na área de um ataque e que não se tratou de um acidente. “Se continuar a acontecer repetidamente e a estratégia parecer ser a de atingir civis em áreas urbanas, isso pode ser uma prova muito poderosa da intenção de o fazer“, disse Alex Whiting, professor na Faculdade de Direito de Harvard.

A investigação de crimes de guerra pode centrar-se em tropas, comandantes militares e chefes de Estado. Neste caso, o procurador pode apresentar provas de que Putin ou outro líder estatal cometeu um crime de guerra ordenando diretamente um ataque ilegal ou sabendo que estavam a ser cometidos crimes e falhou em impedi-los.

Astrid Reisinger Coracini, professora do Departamento de Direito Internacional da Universidade de Viena, considera que a equipa do TPI enfrenta um desafio que consiste em apresentar provas que liguem os crimes no terreno a ordens de líderes superiores. “E quanto mais alto for [o cargo que ocupa], mais difícil se torna”, acrescentou.

Por exemplo, a ser verdade que a maternidade e o teatro bombardeados pelas forças russas emMariupol estavam marcados como abrigos para crianças, tais ataques enquadram-se na definição de crimes de guerra, segundo os peritos jurídicos. Porém, conseguir que haja uma condenação pode ser difícil.

Além dos desafios que enfrentam em muitos casos para provar a sua intenção e ligar diretamente os líderes a ataques específicos, os procuradores podem ter dificuldade em obter provas, incluindo depoimentos de testemunhas que possam estar a ser intimidadas ou relutantes em falar.

No caso da guerra na Ucrânia, os procuradores do TPI já revelaram que vão verificar se vídeos e fotografias disponíveis publicamente podem constituir provas de crimes de guerra, o que, apesar de não ser “um processo rápido”, só “o facto de as coisas já estarem em movimento é um sinal realmente forte“, sublinhou a professora Rebecca Hamilton.

Levar os arguidos a julgamento também pode ser difícil, sendo quase certo que Moscovo se recusará a cumprir possíveis mandados de detenção. Aí, o TPI terá de localizar potenciais arguidos para verificar se estes viajam para países onde podem ser detidos.

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