Compra de 750 mil milhões em energia aos EUA triplica valores atuais e é tida como irrealista
Falta de poder por parte da Comissão para ditar que empresas comprem mais energia aos Estados Unidos, tal como limitações em termos de oferta e procura, tornam acordo irrealista, dizem especialistas.
Os Estados Unidos e a Comissão Europeia fecharam, este domingo, um acordo comercial que irá fixar as tarifas aduaneiras ditadas por Washington nos 15%, ao invés dos 30% anunciados. Uma das condições às quais o bloco europeu acedeu foi a compra de cerca de 750 mil milhões de dólares em combustíveis norte-americanos, do gás natural à energia nuclear.
“Nós vamos aumentar a nossa cooperação energética. Compras de produtos de energia dos Estados Unidos irão diversificar as nossas fontes de fornecimento e contribuir para a segurança energética da Europa“, afirmou Ursula von der Leyen, num discurso posterior às negociações. No mesmo, indicou que o bloco europeu espera substituir o gás natural e petróleo russos com compras “significativas” de gás natural liquefeito norte-americano, assim como petróleo e produtos de energia nuclear.
Num esclarecimento posterior, emitido esta terça-feira, a Comissão adiantou que os 750 milhões de dólares de compras energéticas, equivalentes a 700 mil milhões de euros, deverão ser adquiridos ao longo dos próximos três anos.
“O acordo comercial recentemente anunciado entre os EUA e a UE evitou o pior cenário – uma guerra comercial de grande escala – e reduziu a incerteza”, concede Christoph Berger, Diretor de Investimento (CIO) em Ações da Europa, Allianz Global Investors (AllianzGI). Mas “é necessária mais clareza sobre a forma como a UE vai gerir alguns dos compromissos assumidos“, como é o caso destas compras de energia.
Também Nuno Ribeiro da Silva, ex-secretário de Estado da Energia e ex-Ceo da Endesa em Portugal, agora consultor, frisa que existem poucos detalhes disponíveis sobre as quantidades em causa, mas entende que o acordo “não violenta a Europa” na medida em que o Velho Continente já era, “naturalmente” importador de energia, e acredita que estará aqui em causa sobretudo importação de gás natural liquefeito e petróleo.
“É difícil perceber como é que a componente energética do acordo comercial EUA-UE pode ser cumprida“, escreve Simone Tagliapietra, associado sénior do think tank Bruegel. As importações energéticas totais da União Europeia, com origem nos Estados Unidos, em 2024, totalizaram cerca de 70 mil milhões de dólares. “O acordo implica que de repente mais do que se triplique este volume ao longo dos próximos três anos. É pouco provável, tanto por motivos de procura como de oferta“, conclui a mesma fonte.
As importações energéticas totais da União Europeia, com origem nos Estados Unidos, em 2024, totalizaram cerca de 70 mil milhões de dólares.
O analista do Bruegel observa que, do lado da procura, são dinâmicas de mercado que ditam as escolhas das empresas energéticas, “e a Comissão Europeia não tem palavra a dizer nesta matéria”. Em paralelo, olhando à oferta, “é importante considerar que capacidade adicional de exportação por parte dos Estados Unidos tanto em GNL, como petróleo e combustíveis nucleares pode demorar mais tempo a desenvolver que os três anos que são o horizonte previsto para o acordo“.
"O acordo implica que, de repente, mais do que se triplique este volume ao longo dos próximos três anos. É pouco provável, tanto por motivos de procura como de oferta.”
Na mesma linha, o ex-secretário de Estado da Energia e agora consultor na mesma área, João Galamba, afirma: “Desvalorizaria completamente todos os elementos do acordo que falam ou de investimento europeu, ou compra de material militar e energia“, tendo em conta, precisamente, que a presidente da CE “não tem poder ou capacidade para assumir esse compromisso”, e que “quem compra gás natural são a empresas e compram de acordo com as suas negociações privadas”, além de que estão em vigor contratos de longo prazo.
Uma vez que as compras estão efetivamente nas mãos das empresas, “se não houver necessidades de gás, as empresas não vão importar. Não vão ser os governos a comprar gás e guardar nos isqueiros“, graceja Nuno Ribeiro da Silva, sublinhando que o acordo aponta um “número de referência”, pois “não são valores de contratos rigorosos feitos entre empresas”, mas “a sua materialização está dependente das necessidades efetivas”.
"É um grande erro geoestratégico e não parece ser possível fisicamente as duas partes cumprirem o acordo.”
“Não faz sentido aumentar a dependência dos EUA desta forma. É um grande erro geoestratégico e não parece ser possível fisicamente as duas partes cumprirem o acordo, face às limitações físicas, económicas e ambientais que existem”, entende, por seu lado, o engenheiro eletrotécnico Gonçalo Aguiar. Além disso, há o tema da segurança energética, no qual o acordo, em particular no que diz respeito ao petróleo, seria “penalizador”. Isto porque no primeiro trimestre de 2025, cinco países (EUA, Noruega, Cazaquistão, Líbia e Arábia Saudita) forneceram 56% do petróleo à UE, numa tendência em linha com a do ano 2024. “Após este acordo os EUA passarão a ser praticamente o único fornecedor dessa quantidade de petróleo”, alerta Gonçalo Aguiar.
"A União Europeia deverá diversificar as suas energéticas e não ficar também demasiadamente dependente dos EUA.”
Por seu lado, o economista sénior do Banco Carregosa, Paulo Monteiro Rosa, entende que “reforçar as compras de energia aos EUA é uma decisão estratégica relevante para a União Europeia”, em particular num contexto geopolítico marcado por incertezas e tensões, nomeadamente a guerra na Ucrânia e as dificuldades nas relações com a Rússia, “mas a União Europeia deverá diversificar as suas fontes energéticas e não ficar também demasiadamente dependente dos EUA“, defende. Além de outras parcerias, o economista realça que a Europa deve apostar na eficiência energética e nas energias renováveis, a bem da independência.
Acordo exige que importações dos EUA disparem
Descortinando os números, aos 750 mil milhões de dólares ao longo de três anos correspondem 250 mil milhões por ano, o equivalente a cerca de 215 mil milhões de euros. Este último valor corresponderia a 57% do total de importações de energia em 2024, indica Gonçalo Aguiar, engenheiro eletrotécnico.
Olhando combustível a combustível, Gonçalo Aguiar nota que os EUA já destinam quase metade de todas as suas exportações de GNL para a União Europeia, cujo principal fornecedor foram precisamente os EUA, país de onde vieram 45,3% destas importações, ou cerca de 18,75 mil milhões de euros. “Portanto, [os EUA] só poderão, no máximo, duplicar as exportações deste combustível para cobrir as importações da UE de GNL na totalidade“, analisa o engenheiro eletrotécnico. Isto, assumindo que o consumo europeu não sobe, o que é o mais provável, além de que “a capacidade de receção desse GNL está já bastante saturada”.
Podem também reduzir-se, por exemplo, as importações de gás natural em estado gasoso da Noruega e substituí-las por GNL, “no entanto, isto não traria benefícios para a UE, pois o gás natural norueguês custa quase três vezes menos que o gás natural liquefeito dos EUA”, conclui Aguiar. João Galamba sublinha que “a política europeia é no sentido de reduzir o volume total de gás“.
No caso do petróleo, em 2024, os EUA exportaram no total para todo o mundo 1,5 mil milhões de barris de petróleo, segundo dados da Agência Internacional de Energia citados por Aguiar, o que totalizou 320 mil milhões de dólares. “Um pouco mais de metade deste montante (53%) teria de ser vendido à UE para se cumprir com o acordo“, remata o mesmo. Em 2024, a União Europeia importou 261,9 mil milhões de euros em produtos petrolíferos, sendo a maior fatia proveniente dos EUA, de 16,1%, o correspondente a cerca de 41,9 mil milhões de euros.
Olhando à rubrica referida na nota de esclarecimento como “produtos de energia nuclear”, Gonçalo Aguiar realça que não é claro se contempla a compra de combustível nuclear (urânio) ou se a compra de reatores nucleares para produção de energia elétrica.
Na opinião de Paulo Monteiro Rosa, considerando o consumo energético europeu e a necessidade de reduzir dependências externas críticas, “faria sentido que as importações energéticas provenientes dos EUA representassem perto de um terço dos 250 mil milhões de dólares”, ou seja um máximo de 95 mil milhões de dólares. O economista divide o “mix” ideal em 50 mil milhões de euros de importação de petróleo, 30 mil milhões de euros de gás natural liquefeito e 2 mil milhões de euros em energia nuclear.
“Importa manter uma política de diversificação que evite uma dependência excessiva de um único parceiro, garantindo assim um equilíbrio entre segurança energética, custos e autonomia estratégica”, remata o economista sénior do Banco Carregosa.
Portugal pode receber mais gás em Sines
Olhando aos efeitos em terras lusas, o mesmo indica que, devido à “localização geográfica estratégica” na costa atlântica da Europa e às infraestruturas existentes, “Portugal poderá beneficiar do aumento das importações de GNL“. Isto porque o país dispõe do terminal de Sines, “um dos maiores e mais modernos da Europa para regaseificação de GNL”, capaz de receber grandes volumes de gás natural liquefeito e distribuí-lo para o mercado nacional e para a Península Ibérica.
Um reforço nas importações deste gás permite a “Portugal ser um ponto-chave na diversificação das fontes de energia da Europa, contribuindo para a segurança energética regional e potencialmente aumentando a sua importância estratégica no mercado energético europeu“, defende.
Nuno Ribeiro da Silva prevê que, a haver de facto algum reforço nos níveis de importação de GNL, “pode trazer uma utilização mais intensa do terminal de Sines“, tanto para injeção na rede de gás como para transvases, ou seja, armazenar o gás temporariamente em tanques e até redirecionar para outras zonas Europa.
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