Como se desvenda o mistério das contas da dona do Montepio?
- Ana Batalha Oliveira e Alberto Teixeira
- 17 Março 2018
A Associação Mutualista saiu de um buraco de 250 milhões em 2016 para ter uma almofada 500 milhões em 2017. Mas como explicar este mistério das contas do Montepio? O ECO falou com um especialista.
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Qual é o mistério das contas da Associação Mutualista?
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O que é esta "borla fiscal" e como funciona?
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O que a Associação Mutualista (e os associados) podem ganhar e perder com isto?
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Qual é o risco para o Estado? Há perda de receita fiscal?
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A Associação Mutualista pode voltar a estar isenta de impostos?
Como se desvenda o mistério das contas da dona do Montepio?
- Ana Batalha Oliveira e Alberto Teixeira
- 17 Março 2018
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Qual é o mistério das contas da Associação Mutualista?
A Associação Mutualista apresentava em 2016 uma situação patrimonial deficitária: os capitais próprios eram negativos em 250 milhões, o que significava que o património da instituição era insuficiente face às suas responsabilidades financeiras. Mas num ano tudo mudou e os capitais da instituição passaram para terreno muito, muito positivo. Quanto? 510 milhões de euros.
Mas o que explica esta súbita e intrigante melhoria nas contas e que permitiu que mutualista saísse do buraco? Foi uma “borla fiscal” no valor de 808 milhões de euros de que associação beneficiou e registou nas contas 2017. Mas só recorreu a esta solução depois de ter abdicado da isenção de IRC, que a lei permite às IPSS, passando a pagar impostos.
O facto é que este rearranjo das contas da Associação Mutualista mereceu a reprovação de quase todos partidos, que consideraram tratar-se de uma “solução criativa” ou de “engenharia contabilística” utilizada para esconder a verdadeira situação da associação. Mas o que está realmente por detrás deste “truque contabilístico”?
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O que é esta "borla fiscal" e como funciona?
Em bom rigor, em vez de dizermos “borla fiscal” devemos dizer ativos por impostos diferidos. Estes representam o direito a um valor económico de uma potencial dedução fiscal futura e ficam registados no balanço do ano como ativos — embora a instituição só possa usufruir desta benesse fiscal na conta de resultados no futuro se, e quando, apresentar lucros tributáveis.
Estes ativos por impostos diferidos podem ser gerados de várias formas: através de prejuízos fiscais, do registo de imparidades ou da constituição de provisões face a responsabilidades.
No caso da Associação Mutualista, grande parte dos ativos por impostos diferidos foi gerado por via das provisões que a instituição registou por causa dos produtos mutualistas. Estas provisões são a “almofada” financeira que acautela as responsabilidades futuras relativas aos produtos da associação. Dos 808 milhões dos ativos por impostos diferidos gerados, 622,5 milhões de euros advieram das provisões — ou seja, uma fatia de 77%. Porque a mutualista não pagava impostos, estas provisões (que se podem comparar às imparidades com crédito da banca) não eram dedutíveis para efeitos de apuramento do lucro tributável ou prejuízo fiscal. Mas agora, com o fim da isenção de IRC, os encargos com estas provisões vão ser dedutíveis na totalidade para efeitos do resultado fiscal quando vierem a ser incorridos, à medida que os produtos vão chegando à maturidade.
Já os prejuízos fiscais constituíram aproximadamente um quarto dos ativos por impostos diferidos da mutualista: 202 milhões de euros. Estes prejuízos podem ser deduzidos aos lucros tributáveis que a Associação Mutualista vier a ter nos próximos cinco anos. Mas a dedução a efetuar em cada um dos períodos de tributação não pode exceder o montante correspondente a 70% do respetivo lucro tributável.
Resumindo, o registo de ativos por impostos diferidos é mais uma “borla contabilística” do que uma “borla fiscal”. Como explica Samuel Fernandes de Almeida, partner da Vieira de Almeida, acerca do funcionamento destes ativos: “Havendo a expectativa de tais prejuízos poderem ser utilizados no futuro, permitindo uma redução do imposto a pagar, as regras de normalização contabilística permitem o reconhecimento de um ativo diferido, (…) permitindo melhorar a situação líquida“.
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O que a Associação Mutualista (e os associados) podem ganhar e perder com isto?
Em termos imediatos, esta solução reforça contabilisticamente o balanço da Associação Mutualista: deixa de apresentar uma situação patrimonial muito deficitária como aquela que observava em 2016 e passa a ter capitais próprios positivos de mais de 500 milhões de euros. Com isto, em termos daquilo que é perceção pública em relação à instituição, Tomás Correia trava alguma da desconfiança dos associados (atuais e futuros) em torno da viabilidade e sustentabilidade do grupo.
Porém, estes 808 milhões em ativos por impostos diferidos que foram reconhecidos nas contas de 2017 não estão garantidos. Eles representam um direito a receber um valor económico no futuro. A associação só poderá beneficiar destes ativos por impostos diferidos se realmente obtiver lucros nos próximos anos. Caso se mantenha com prejuízos nos próximos anos, a instituição terá automaticamente de deixar de reconhecer este ativo no seu balanço, voltando à situação deficitária em que se encontra realmente.
Por outro lado, à medida que vai registando lucros e os ativos por impostos diferidos vão sendo abatidos, este rearranjo contabilístico vai perdendo efeito nas contas. E serão os lucros a robustecer as finanças da associação mutualista.
Na prática, o Montepio ganha tempo para resolver os seus problemas, mas esta solução tem contrapartida: o fim da isenção de IRC.
Segundo Eugénio Rosa, economista e concorrente de Tomás Correia nas últimas eleições para a presidência da mutualista, “a perda da isenção vai prejudicar muito todos os associados, pois reduz ainda mais os benefícios, que já são poucos“. Isto porque, para além de passar a pagar IRC, também passa a pagar outros impostos como o IMI. O mesmo economista calcula que, caso a associação obtivesse 50 milhões de euros de lucro, “como passará a pagar cerca de 30%, sendo de IRC (21%), de taxa de derrama municipal (1,5%) e de derrama estadual (7,5%), que é o que paga a Caixa Económica, tudo isto faz reduzir os 50 milhões de euros em 15 milhões de euros. Portanto, ficará muito menos para distribuir pelos 620.000 associados do Montepio”.
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Qual é o risco para o Estado? Há perda de receita fiscal?
“Não há propriamente um risco para o Estado, pois os ativos diferidos não geram per si um impacto fiscal no ano do seu reconhecimento“, avança Samuel Fernandes de Almeida. Os prejuízos só serão deduzidos quando existirem lucros tributáveis. “O reconhecimento de um ativo diferido, permitindo melhorar a situação patrimonial e a situação líquida da empresa, não permite por si melhorar a situação fiscal ou permitir abusivamente uma redução da carga fiscal. É como se eu tivesse um crédito sobre um cliente e reconhecesse esse crédito no balanço pois sei que me vai pagar”, explica o especialista.
Na verdade, tendo em conta que anteriormente a Associação Mutualista já estava isenta de pagar IRC, o Estado só pode beneficiar com esta nova realidade: de uma situação em que obtinha zero receitas fiscais, pode passar a usufruir de contribuições da instituição a partir do momento em que esta registe lucros. Por exemplo, no caso dos prejuízos fiscais, só podem ser deduzidos 70% por cada exercício, pelo que 30% dos lucros somam às contas do Estado.
“O risco é a jusante, e consiste em avaliar se tais créditos fiscais estão efetivamente bem calculados”, assinala Fernandes de Almeida. Mas esta é uma prática comum, já utilizada por instituições financeiras, como bancos. “Se uma empresa tem prejuízos fiscais, sendo expectável que dentro do período de reporte desses prejuízos venha a ter lucro que permita utilizar os prejuízos, então deve reconhecer o ativo diferido, melhorando a sua situação patrimonial pois a empresa sabe que pagará menos imposto em virtude da sua utilização”.
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A Associação Mutualista pode voltar a estar isenta de impostos?
Sim. Basta cumprir cumulativamente os três requisitos contemplados na lei e esperar que a Autoridade Tributária assim o reconheça para que a isenção de IRC seja aplicada à instituição outra vez.
A isenção de IRC aplicada às IPSS rege-se pelo artigo 10.º do Código aplicado às pessoas coletivas, que define quais são os requisitos necessários para beneficiar deste estatuto. Exige-se que seja uma instituição de utilidade pública, que pelo menos metade dos lucros tenha sido afetada a essa função e que não exista qualquer interesse, direto ou indireto, dos órgãos estatutários nos resultados registados pela entidade.
Uma vez que os administradores da associação passaram a ter a possibilidade de usufruir de remunerações variáveis — entre os 25.000 e 31.000 euros mensais –, em função dos resultados da mutualista, o último requisito de isenção deixou de ser cumprido pela dona do Montepio, pelo que terá de começar a descontar em sede de IRC.