António Jaime Martins foi eleito presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados (OA) nas eleições de março. O advogado foi eleito com cerca de 71% dos votos. Leia a entrevista.
António Jaime Martins foi eleito presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados (OA) nas eleições da Ordem dos Advogados que decorreram em março. O advogado foi eleito com cerca de 71% dos votos.
António Jaime Martins está inscrito na Ordem dos Advogados desde 1996, é fundador da ATMJ – Sociedade de Advogados e exerce advocacia nas áreas de Direito Bancário, Direito Imobiliário e da Construção e da Contratação Pública. É também árbitro em arbitragens ad hoc. Foi presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados (OA) nos triénios 2014-16 e 2017-2019 e vice-presidente do mesmo Conselho no triénio de 2011-2013 com os pelouros da formação, do acesso à profissão e do centro de arbitragem. E foi ainda candidato a bastonário da OA nos dois últimos atos eleitorais.
Membro convidado da Comissão de Acompanhamento do Código dos Contratos Públicos em representação da Ordem dos Advogados no triénio 2011-2013, delegado nomeado junto do Tribunal de Contas no triénio de 2008-2010, Presidente do Conselho de Gestão do CAL – Centro de Arbitragem de Litígios Administrativos, Comerciais e Civis da Ordem dos Advogados no triénio 2008-2010. Foi também membro de Júris de Agregação na Ordem dos Advogados, de Júris de Avaliação de Auditores de Justiça no Centro de Estudos Judiciários e docente entre 1998 e 2003.
Leia a entrevista à Advocatus.

Quais são as prioridades do Conselho Superior da Ordem dos Advogados para este mandato?
As prioridades do Conselho Superior centram-se na defesa da independência da advocacia, na credibilização da justiça disciplinar na Ordem dos Advogados e no desentorpecimento da emissão de laudos de honorários.
A independência da advocacia é a pedra angular do direito de defesa dos cidadãos e dos legítimos interesses das empresas num Estado de Direito democrático e na sua defesa não transigiremos. Teremos, pois, prioridade absoluta em: i) salvaguardar o sigilo profissional e a inviolabilidade dos escritórios; ii) combater as buscas ou quebras de confidencialidade que não respeitem o Estatuto; iii) defender os profissionais que, no cumprimento dos seus deveres deontológicos, recusem testemunhar contra os próprios clientes.
Por outro lado, queremos implementar uma justiça disciplinar célere e desmaterializada, com processos disciplinares mais transparentes, imparciais e bem fundamentados, tirando pleno partido das novas tecnologias. Pretendemos, por exemplo, a desenvolver uma solução digital para a tramitação disciplinar, de forma a que os advogados possam acompanhar os processos em tempo real, apresentar peças processuais eletronicamente e receber notificações de forma segura, eliminando o papel. Paralelamente, propomo-nos concentrar a ação disciplinar nos comportamentos mais gravosos, filtrando e arquivando liminarmente as queixas infundadas – infelizmente comuns, como as motivadas apenas por divergências sobre honorários ou de retaliação sobre os patronos e defensores no SADT por parte dos beneficiários – para libertar recursos e dar prioridade aos casos onde está em causa uma violação séria dos deveres deontológicos.
Em contrapartida, infrações deontológicas graves terão um tratamento disciplinar firme e consentâneo, pois só assim preservaremos o prestígio da classe e a confiança do público. Além disso, pretendemos assegurar a equidade e transparência do sistema disciplinar: os arguidos em processos internos merecem decisões imparciais e decisões tendo por base critérios coerentes e harmonizados, que não dependam do Conselho de Deontologia que os julgue.
Paralelamente, propomo-nos concentrar a ação disciplinar nos comportamentos mais gravosos, filtrando e arquivando liminarmente as queixas infundadas – infelizmente comuns, como as motivadas apenas por divergências sobre honorários ou de retaliação sobre os patronos e defensores no SADT por parte dos beneficiários – para libertar recursos e dar prioridade aos casos onde está em causa uma violação séria dos deveres deontológicos”
Que marca pretende deixar no Conselho Superior?
Gostaria de deixar como legado um Conselho Superior que seja o suporte da autorregulação da Profissão, mais forte e credível, para dentro e para fora, verdadeiramente autónomo e independente. Isso passa, antes de mais, por conquistar a autonomia administrativa e financeira dos órgãos jurisdicionais da Ordem dos Advogados, um objetivo pelo qual estamos fortemente empenhados. A independência do Conselho Superior e dos restantes órgãos disciplinares não deve ser proclamada nos estatutos; deve, outrossim, refletir-se na sua capacidade de agir sem amarras administrativas e financeiras. Hoje, o Conselho Superior depende quase em absoluto do Conselho Geral e do Bastonário em termos orçamentais e logísticos, chegando ao ponto de não ter recursos técnicos básicos como suporte informático ou aquisições de bens e serviços. Essa dependência fragiliza a atuação do órgão jurisdicional máximo. A marca que pretendo deixar é a de um Conselho Superior dotado de meios próprios e gestão autónoma, capaz de decidir e gerir os seus processos internos com agilidade e isenção, sem interferências indevidas. Se conseguirmos obter dotação orçamental própria e autonomia na gestão de recursos, o Conselho Superior estará mais bem preparado para cumprir as suas elevadas responsabilidades na autoregulação da profissão. Isso traduzir-se-á em decisões disciplinares mais céleres, numa tramitação mais simplificada e numa proteção acrescida contra quaisquer pressões externas. Em última instância, quero que, no final deste mandato, o Conselho Superior seja reconhecido como um órgão jurisdicional verdadeiramente independente, eficaz e respeitado, deixando um exemplo duradouro para o futuro da Ordem dos Advogados. O mesmo se diga relativamente aos restantes sete órgãos jurisdicionais, ou seja, os Conselhos de deontologia, para cuja autonomia administrativa e financeira nos bateremos de igual modo.

Quais as principais entropias no Conselho Superior da OA?
Infelizmente, identificamos alguns estrangulamentos históricos no funcionamento do Conselho Superior que urge resolver. Um dos principais é o atraso crónico na emissão dos laudos de honorários devidos aos Colegas. Este é um problema grave: demoras prolongadas no pagamento dos honorários comprometem a dignidade profissional, pois os Advogados têm direito a ser remunerados de forma justa e atempada pelos serviços que prestam. Ora, a realidade é que muitos Advogados aguardam meses – quando não anos – pelo processamento dos seus laudos, o que é inadmissível. Esse atraso sistémico mina a confiança na Ordem e causa compreensível frustração entre os Colegas.
As causas desse bloqueio são várias. Por um lado, persistem procedimentos excessivamente burocráticos e pouco digitalizados, o que retarda a tramitação. Por outro, há um défice de recursos humanos dedicados a esta tarefa: o atual Conselho Superior, devido à sua nova composição, conta com menos 9 advogados instrutores para tratar dos laudos do que os anteriores conselhos, já que os membros cooptados juristas de reconhecido mérito (que integram agora o órgão, sendo que, nenhum deles é ou foi magistrado ou procurador), não intervêm na sua tramitação. Isso significa mais trabalho distribuído por menos Advogados, agravando o atraso. Surpreendentemente, o Conselho Superior não tem qualquer apoio interno de Advogados para realizar essa tramitação e emitir pareceres que possam servir de base às decisões das Secções. Isto é tanto mais surpreendente, quanto as receitas geradas pela cobrança de emolumentos devidos pela emissão dos laudos têm superado as verbas disponibilizadas para a contratação de relatores (em 2024, as receitas foram o dobro das despesas com esse tipo de apoio). Tal situação é paradoxal – o serviço de emissão de laudos existe para servir os Advogados e não para criar excedente financeiro na Ordem dos Advogados. Não faz sentido que a Ordem lucre à custa da demora nos pagamentos devidos aos próprios Advogados que se atrasam, em parte, havendo litígio, por falta de emissão dos laudos em tempo útil. Tudo isto tem de ser repensado e mudado. Vamos a trabalhar para simplificar e acelerar procedimentos: desde a digitalização do processo de submissão e tramitação dos laudos até à possível afetação de mais meios humanos a esta área, para eliminar o volume de pendências existente. Resolver o atraso crónico dos laudos – devolvendo pontualidade a esses pagamentos – é fundamental para restaurar a dignidade profissional e a confiança dos membros na sua Ordem. Diria, portanto, que essa é hoje a principal “entropia” a remover, a par de outras ineficiências administrativas e financeiras que derivam da falta de autonomia e independência orçamental já referida.
Qual é o maior desafio que os advogados enfrentam hoje em Portugal (só um)?
Se tiver de eleger um só, como me pede, diria que o maior desafio atual é restaurar o respeito institucional e a cooperação dentro dos tribunais. Nos últimos anos, temos assistido a uma degradação preocupante do clima de relacionamento entre os diversos atores do judiciário – Magistrados, Advogados e Ministério Público. Aquilo que antes era, salvo exceções, um ambiente de cordialidade e respeito mútuo, foi dando lugar a um ambiente de crispação e desconfiança latente. Hoje, não é incomum um advogado ser alvo de insinuações de condenação em litigância de má-fé por parte de Magistrados, apenas por exercer com zelo os direitos adjetivos do seu constituinte. Em certos casos, verificam-se ameaças veladas e concretizadas de participação disciplinar contra Advogados, numa tentativa de os dissuadir de usar todos os meios processuais legítimos na defesa dos seus constituintes. Este ambiente adversarial mina profundamente a relação de confiança que deve existir entre quem aplica a justiça e quem assegura a defesa. E, pior ainda, colide com o superior interesse dos cidadãos e empresas, que esperam legitimamente que todos os profissionais forenses atuem de forma colaborativa para se alcançar uma decisão justa para o seu caso.
Por isso afirmo que precisamos urgentemente de resgatar o respeito e a urbanidade nos Tribunais. Todos os intervenientes no sistema – Juízes, Procuradores e Advogados – servem um objetivo comum: tornar efetivo o direito de acesso à justiça consagrado no artigo 20.º da Constituição. Somos parceiros no mesmo ideal constitucional de tutela jurisdicional efetiva, ainda que com papéis distintos. É crucial, portanto, reconstruir pontes de diálogo e colaboração entre as magistraturas e a advocacia. Da parte do Conselho Superior, tudo faremos para incentivar esse diálogo institucional franco, promover formações conjuntas e dissipar desentendimentos. Naturalmente, não transigiremos na defesa das prerrogativas da profissão: não aceitaremos intimidações ou tentativas de silenciar advogados no legítimo exercício do contraditório e da defesa dos seus constituintes. Mas acreditamos que, com respeito recíproco e comunicação, é possível regressar a um ambiente onde o confronto dê lugar à cooperação leal. Esse é o grande desafio – devolver aos tribunais um clima de respeito mútuo, condição indispensável para que a Justiça cumpra a sua vocação de serviço público imparcial. Sem isso, todas as outras reformas correm o risco de fracassar e de pouco valem se não houver civilidade, respeito na sua aplicação diária do direito, independência dos juízes e a devida preparação técnico-jurídica de todos os intervenientes.
Nos últimos anos, temos assistido a uma degradação preocupante do clima de relacionamento entre os diversos atores do judiciário – Magistrados, Advogados e Ministério Público. Aquilo que antes era, salvo exceções, um ambiente de cordialidade e respeito mútuo, foi dando lugar a um ambiente de crispação e desconfiança latente”
Como vê o impacto da inteligência artificial e da digitalização na advocacia nos escritórios mais pequenos e de prática individual?
Vejo esse impacto de forma dupla: extremamente potencializador, mas exigindo adaptações significativas. Por um lado, a revolução tecnológica tem um efeito democratizador no exercício da advocacia. Ferramentas de IA e plataformas digitais permitem hoje que um pequeno escritório ou um advogado em prática individual adquiram uma velocidade e qualidade de resposta que antes estavam reservadas apenas a médias e grandes sociedades. Por exemplo, um único advogado pode agora, recorrendo a um software de IA, pesquisar jurisprudência, analisar contratos ou elaborar minutas em questão de minutos, tarefas que outrora consumiam muitas horas de trabalho. Isto significa que os escritórios de menor dimensão que se modernizem, conseguirão prestar um serviço mais rápido e eficiente, competindo quase em pé de igualdade com estruturas maiores no que toca à produtividade, abrangência de informação e qualidade da resposta técnica. Em termos práticos, a IA permite automatizar inúmeras tarefas repetitivas – gestão de agendas, triagem de documentos, resposta a emails padrão, etc. – libertando tempo do advogado para se concentrar no que verdadeiramente agrega valor: a estratégia jurídica, o conselho personalizado, a comparência em tribunal, a relação de confiança com o cliente. Também a digitalização, no sentido mais lato (desde videoconferências até assinaturas eletrónicas e plataformas de gestão do escritório), reduz custos operacionais e amplia o alcance geográfico do Advogado, que pode atender clientes remotamente em qualquer ponto do país (ou do mundo). Em suma, a tecnologia está a nivelar o terreno: nunca foi tão fácil a um pequeno ou médio escritório ser tão ágil e sofisticado nos meios utilizados como agora.
Por outro lado, há um reverso da medalha: esta democratização tecnológica traz desafios importantes de literacia digital e de mudança cultural. Muitos Advogados em prática individual, especialmente de gerações mais antigas, deparam-se com dificuldades de aprendizagem no domínio de ferramentas como software jurídico avançado, sistemas de gestão em cloud ou mesmo as funcionalidades da inteligência artificial. A adaptação exige investimento em formação: é preciso aprender a utilizar a IA (saber fazer as perguntas certas, avaliar criticamente as respostas dos algoritmos, evitar depender cegamente de resultados automáticos), assim como garantir a segurança e confidencialidade dos dados dos clientes ao usar plataformas digitais. Além disso, a própria dinâmica de negócio da advocacia está a mudar – clientes habituados a serviços imediatos e online passam a exigir respostas mais céleres e soluções tecnológicas, o que pressiona os pequenos escritórios a modernizar-se para não perderem competitividade.
Em face disto, entendo que a Ordem dos Advogados deve ser um agente facilitador nesta transição, disponibilizando formação e apoio técnico para que nenhum Colega fique para trás. Aliás, uma das nossas metas institucionais é colaborar com os demais órgãos da Ordem, em especial com o Bastonário e o Conselho Geral, mais também com os regionais e as Deontologias, no incentivo à modernização dos escritórios, sem comprometer a deontologia profissional. Importa lembrar que a tecnologia é um meio e não um fim em si mesma: os escritórios de pequena e média dimensão terão grande vantagem se conjugarem o melhor dos dois mundos – a eficiência das novas ferramentas com a proximidade e confiança próprias do atendimento personalizado. Quem conseguir esse equilíbrio irá não só sobreviver, mas prosperar num mercado cada vez mais competitivo e digital. Em conclusão, vejo a IA e a digitalização como grandes aliadas dos pequenos escritórios, dando-lhes poder de fogo tecnológico; mas é necessário abraçá-las com preparação e sensatez, garantindo que todos os advogados adquiram a literacia digital indispensável para usar essas ferramentas de forma proficiente, ética e segura. Exte é outro grande desafio. Para os profissionais e para a sua Ordem. Talvez mesmo o mais exigente e difícil.
Há falta de transparência na profissão, em nome do segredo profissional?
Acredito que não há incompatibilidade necessária entre transparência na atuação profissional e o respeito pelo segredo profissional – ambos os valores podem e devem conviver. O segredo profissional é um dever nuclear do Advogado e uma garantia essencial para o cliente: sem confidencialidade absoluta, nenhuma pessoa se sente segura para revelar toda a factualidade ao seu Advogado, seja no que diz respeito à consultoria, seja no exercício do mandato forense. Portanto, a Ordem dos Advogados – e em particular o Conselho Superior – defenderá sempre de forma intransigente o sigilo profissional e a inviolabilidade do escritório do Advogado, que são corolários da independência da Advocacia e pedra angular dos direitos de defesa dos cidadãos e das empresas que representamos. Não transigiremos nessa matéria: seja contra tentativas de devassa de comunicações entre advogado e cliente, buscas ilegais em escritórios ou intimações de advogados para depor sobre assuntos confidenciais dos seus constituintes. Estaremos na linha da frente para obstar a tais violações. Salvaguardar o sigilo não é “esconder” algo indevido; é cumprir a lei e a nossa missão ética, protegendo o cidadão e as empresas que representamos.
Dito isto, essa proteção da confidencialidade não significa opacidade corporativa. Pelo contrário, somos os primeiros interessados em que a profissão de advogado seja transparente nos seus mecanismos de autorregulação e disciplinares. A confiança da sociedade na advocacia também depende de saber que existe escrutínio interno e consequências para comportamentos desviantes. Por isso, temos insistido numa justiça disciplinar transparente, rigorosa e exemplar. Os advogados acusados de infrações deontológicas têm direito a um processo justo, mas a comunidade também tem o direito de esperar que a Ordem atue quando necessário. Isso implica, por exemplo, que as decisões disciplinares sejam bem fundamentadas e, dentro dos limites legais, conhecidas nos seus termos essenciais. Não usamos o segredo profissional como manto para esconder falhas ou ilícitos de Colegas – usamos, sim, o processo disciplinar para os apurar com imparcialidade. Naturalmente, detalhes cobertos pelo sigilo (como informações privadas de clientes) são resguardados, mas a existência do processo e as sanções aplicadas – sobretudo em casos de clara violação ética – devem poder ser comunicadas à comunidade judiciária, ainda que de forma genérica.
Resumindo, transparência e segredo profissional não são inimigos. Continuaremos a defender vigorosamente o segredo profissional onde ele é devido, pois é um direito do cliente e um dever do Advogado. E, simultaneamente, continuaremos a aprimorar a transparência na atividade disciplinar da Ordem, garantindo que esta atua com objetividade e dá resposta às expectativas da sociedade. Dessa forma, a profissão mantém-se ética e íntegra sem trair o dever de confidencialidade que lhe está subjacente.
Não usamos o segredo profissional como manto para esconder falhas ou ilícitos de Colegas – usamos, sim, o processo disciplinar para os apurar com imparcialidade. Naturalmente, detalhes cobertos pelo sigilo (como informações privadas de clientes) são resguardados, mas a existência do processo e as sanções aplicadas – sobretudo em casos de clara violação ética – devem poder ser comunicadas à comunidade judiciária, ainda que de forma genérica”
E a deontologia, está de boa saúde na OA?
Do ponto de vista dos princípios e normas, a deontologia da advocacia em Portugal está bem regulada. O Estatuto da Ordem dos Advogados fornece um quadro ético claro, que a larga maioria dos profissionais segue conscienciosamente. Nesse sentido, podemos dizer que os “valores deontológicos” estão saudáveis e enraizados na cultura da classe. No dia a dia, os advogados portugueses, salvo exceções pontuais, pautam-se por elevados padrões de conduta, honrando os deveres de independência, lealdade, confidencialidade, urbanidade, etc.
Contudo, quando olhamos para a aplicação prática da deontologia – isto é, para a fiscalização e punição das infrações éticas – encontramos alguns aspetos que precisam de melhoria, para que se possa afirmar que a deontologia está plenamente “de boa saúde”. O principal desafio aqui é assegurar que a justiça disciplinar, que é o garante último do cumprimento das regras deontológicas, funcione de forma coerente, rápida e justa em todo o país. Na realidade, são identificáveis, por exemplo, desigualdades de critério disciplinar entre Conselhos de Deontologia. Hoje, uma mesma conduta pode merecer sanção diferente conforme seja julgada no Porto, em Lisboa ou noutra região – e isso é algo que deve ser corrigido. Essa discrepância não só pode gerar um sentimento de injustiça entre Advogados, o que fragiliza a autoridade da Ordem: a deontologia para ser forte tem deve ser aplicada de modo uniforme e previsível.
Para enfrentar esse problema, iremos promover uma maior coordenação nacional na área disciplinar. O Conselho Superior vai, assim, iniciar ciclos de encontros regulares com os Conselhos de Deontologia de todo o país, no sentido de harmonizar a jurisprudência disciplinar e alinhar procedimentos. Queremos partilhar entendimentos, fixar orientações comuns e, se necessário, propor alterações regulamentares que clarifiquem os padrões a aplicar. Não faz sentido que uma infração ética resulte em consequências díspares consoante o órgão que a julga, pelo que, iremos trabalhar para eliminar essa lotaria disciplinar. Ao mesmo tempo, investiremos na formação deontológica, reforçando junto dos Colegas a importância do cumprimento rigoroso das regras – prevenir é sempre melhor que punir.
Em suma, diria que a deontologia na OA tem bases sólidas e vive, em larga medida, bem. Mas manter a deontologia “de boa saúde” exige vigilância constante e aperfeiçoamento contínuo dos mecanismos de controlo. Com as medidas de uniformização e agilização que pretendemos implementar, acredito que a ética profissional sairá ainda mais reforçada. O nosso objetivo é que cada Advogado tenha plena consciência dos seus deveres e que, se alguém os violar gravemente, haja certeza de consequência justa e célere, independentemente do local.
Como avalia a cooperação entre a Ordem, o Governo e o Parlamento no último ano (com a anterior Bastonária e o Governo cessante)?
A cooperação institucional entre a Ordem dos Advogados e os poderes públicos no último ano conheceu alguns momentos de tensão e podia ter sido mais profícua. Reconheço que, durante o mandato da anterior Bastonária, a interlocução com o Governo e a Assembleia da República nem sempre alcançou os resultados desejáveis. Houve, por vezes, um divórcio de posições quanto a matérias da Justiça e iniciativas importantes – como certas reformas legislativas – avançaram sem o grau de consenso ou contributo da Ordem que teria sido ideal. Do lado do Governo cessante, é justo dizer que a Justiça não pareceu estar no topo da agenda e talvez a voz da Ordem não tenha sido ouvida com a atenção que merece. Do lado da Ordem, creio que também poderíamos ter explorado vias de diálogo mais eficazes, apesar do esforço empenhado do Conselho Geral cessante. O resultado global foi uma cooperação algo frustrada, patente na escassez de reformas estruturais concretizadas e numa perceção pública de distanciamento entre a classe profissional e o poder político.
É precisamente para superar esse hiato que encaramos o novo ciclo, com novos interlocutores, como uma oportunidade para uma melhoria das relações institucionais com benefícios recíprocos para ambos os lados, sobretudo, para os utentes da justiça. Na minha ótica, a cooperação frutuosa exige duas coisas da Ordem: proatividade e coesão interna. Por um lado, ser proativo significa não esperar passivamente pelas iniciativas governamentais; significa antecipar problemas e apresentar propostas construtivas para a reforma da Justiça. A Ordem tem entre os seus associados, profissionais altamente qualificados e experiência no terreno – devemos colocar esse saber técnico ao serviço de sugestões concretas, em vez de nos limitarmos a reagir tardiamente a diplomas já preparados. Foi um erro, a meu ver, a Ordem em tempos recentes assumir muitas vezes um papel meramente reativo ou de contraponto. Não podemos ser uma associação fragmentada em querelas internas ou que aparece apenas para criticar – temos de ser um interlocutor credível, coeso e proativo junto do Ministério da Justiça, do Parlamento e dos demais decisores públicos. Por outro lado, a coesão interna é vital: se a Ordem se apresentar dividida ou com mensagens contraditórias, a sua força negocial dilui-se. A união da classe em torno de posições comuns reforça enormemente o peso institucional da OA nas discussões com o Governo. Mas, não bastam as proclamações, é necessária ação interna que aponte de forma clara nesse sentido, o que neste mandato ainda não se verificou.
No último ano, talvez nos tenha faltado essa voz e essa capacidade de iniciativa atempada. A minha avaliação é, pois, que há amplo espaço para melhorar a cooperação. E estou otimista de que iremos fazê-lo. O Conselho Superior está empenhado em contribuir para uma frente institucional unida da Ordem – trabalharemos lado a lado com o Conselho Geral e os Conselhos Regionais para apresentar uma agenda comum para a Justiça. Em suma, encaramos o futuro próximo com determinação de reforçar, através de mais diálogo, mais proatividade e mais coesão a defesa das reformas que o sistema de justiça reclama.
A cooperação institucional entre a Ordem dos Advogados e os poderes públicos no último ano conheceu alguns momentos de tensão e podia ter sido mais profícua. Reconheço que, durante o mandato da anterior Bastonária, a interlocução com o Governo e a Assembleia da República nem sempre alcançou os resultados desejáveis. Houve, por vezes, um divórcio de posições quanto a matérias da Justiça e iniciativas importantes – como certas reformas legislativas – avançaram sem o grau de consenso ou contributo da Ordem que teria sido ideal”
Que mudanças prevê para a profissão de advogado nos próximos 10 anos?
Prevejo mudanças profundas, ditadas sobretudo pela evolução tecnológica e pelos novos modelos de organização dos serviços jurídicos. A profissão de advogado dentro de 10 anos será, decerto, bem diferente da de hoje em vários aspetos.
Em primeiro lugar, a transformação digital e a inteligência artificial (IA) vão redesenhar o modo como trabalhamos. Já começamos a sentir isso, mas a tendência vai acelerar: tarefas rotineiras e processos de análise de informação serão amplamente automatizados. Softwares inteligentes farão triagem de documentos, pesquisa jurídica e até esboços de peças processuais num piscar de olhos. Com a maturação dos algoritmos de IA, é expectável que estes consigam não só extrair jurisprudência relevante, mas identificar padrões em decisões judiciais e propor soluções jurídicas de base em frações de segundo. O Advogado do futuro próximo terá, assim, de conviver e colaborar com “colegas digitais”. Isso não significa que sejamos substituídos, mas sim que a natureza do nosso trabalho se tornará mais estratégica e menos mecânico. Os advogados terão um papel reforçado como intérpretes e críticos das sugestões produzidas pela IA. Competências humanas como a empatia, o raciocínio ético, a criatividade na construção de argumentos e a capacidade de negociação serão ainda mais valorizadas, pois são insubstituíveis. Em contrapartida, áreas que hoje ocupam boa parte do tempo do Advogado, como a busca de jurisprudência ou a revisão de centenas de páginas de um contrato, serão feitas em instantes por máquinas. Haverá, portanto, uma necessidade de requalificação contínua: o Advogado de sucesso será aquele que dominar as ferramentas tecnológicas emergentes, sabendo potenciá-las em benefício dos clientes. Quem não acompanhar esta evolução poderá encontrar dificuldades, já que a eficiência proporcionada pela IA deixará de ser um diferencial e passará a ser um mínimo exigível no mercado. Em resumo, nos próximos anos a advocacia será mais tecnológica e orientada por dados, mas também mais focada nas capacidades intelectuais e relacionais do profissional, precisamente porque a parte operacional estará grandemente automatizada.
Em segundo lugar, prevejo mudanças significativas nos modelos de exercício da profissão – nomeadamente a expansão da chamada “advocacia de plataforma”. Este conceito engloba novas formas de organização em que os advogados prestam serviços através de plataformas digitais ou estruturas alternativas às sociedades de advogados convencionais. Já se vislumbra internacionalmente (e começa a surgir em Portugal) a figura do “advogado em rede” ou “consultor jurídico independente afiliado”, ligado a uma plataforma que agrega vários profissionais. Nessas plataformas, o cliente pode descrever o seu problema e ser encaminhado para um advogado com a especialidade pretendida, muitas vezes podendo comparar perfis, preços e avaliações, de forma semelhante ao que sucede noutros serviços online. É uma espécie de “uberização” dos serviços jurídicos, se quisermos usar essa analogia: a intermediação é feita por uma aplicação ou portal, que fornece ao advogado a infraestrutura (marketing, tecnologia, faturação) e ao cliente a comodidade de acesso e escolha informada. Em vez de perseguir a tradicional carreira de associado num grande escritório, muitos profissionais poderão optar por ser prestadores de serviços independentes, alcançando clientela mais vasta através da internet e trabalhando remotamente com equipas multidisciplinares. A própria colaboração entre advogados de diferentes geografias será facilitada – poderemos ter advogados a formar equipas virtuais temporárias, reunindo competências específicas para certo projeto, e dissolvendo-se após atingir o objetivo.
Claro que estas mudanças trazem também desafios regulatórios e éticos. A Ordem dos Advogados terá de adaptar o enquadramento deontológico a estas novas realidades, garantindo que a qualidade do serviço e o sigilo profissional não ficam comprometidos num contexto de plataformas digitais. Teremos de discutir questões como a supervisão dessas plataformas, a responsabilidade profissional em ambientes virtualizados, a prevenção de captação ilícita de clientela online, entre outras. Mas creio que é possível encontrar um equilíbrio que acolha a inovação sem abdicar dos valores fundamentais.
Resumindo, a próxima década será de transformação acelerada para a advocacia. Veremos uma profissão mais tecnológica, mais global e provavelmente mais competitiva e diversificada nos formatos de prática. O advogado que alia competência jurídica sólida com domínio tecnológico e capacidade de adaptação estará na linha da frente. Aqueles que insistirem nos métodos tradicionais, ignorando as novas ferramentas e modelos, poderão enfrentar dificuldades num mercado em rápida evolução. Apesar de tudo, mantenho a convicção de que a essência da advocacia – a defesa intransigente dos direitos e interesses do cliente, com base na confiança pessoal e na ética – permanecerá insubstituível. As ferramentas mudarão, o “palco” poderá ser digital, mas o papel do Advogado como fiel guardião da justiça e conselheiro de confiança dos cidadãos e das empresas continuará a ser absolutamente necessário. Em suma, adaptaremos os meios, mas preservaremos os fins e os valores da profissão.

A Justiça foi esquecida nesta campanha eleitoral (a atual, para eleição dos deputados e Primeiro-Ministro)?
Infelizmente, sim – a temática da Justiça ficou praticamente esquecida no debate eleitoral recente, o que considero um erro estratégico e civilizacional. Quem acompanhou a campanha pôde notar que questões como saúde, educação, habitação ou impostos dominaram as agendas dos partidos e os tempos de antena, ao passo que a situação do sistema de justiça raramente mereceu mais do que lugares-comuns ou silêncio absoluto. Não vimos uma discussão aprofundada sobre o combate à morosidade dos tribunais, sobre o reforço dos meios judiciais ou sobre a modernização tecnológica da Justiça. Problemas crónicos – da falta de magistrados e funcionários às deficiências no acesso ao direito – simplesmente não foram tema “quente” na campanha, apesar de afetarem transversalmente cidadãos e empresas. Ora, isto é extremamente preocupante, porque sinaliza que, do ponto de vista político, a Justiça continua a ser tratada como um assunto menor, que não dá votos, e, portanto, facilmente relegado ao segundo plano.
Tal postura contrasta com a realidade: a Justiça é um pilar fundamental do Estado de Direito e do desenvolvimento económico e social. Basta lembrar que, no início deste ano, na solenidade de abertura do Ano Judicial, os mais altos dignitários – incluindo o Presidente da República e representantes dos tribunais superiores, Ministério Público e Ordem dos Advogados – enfatizaram publicamente a urgência de reformas profundas no sistema judicial e o momento crítico que enfrentamos. Há um consenso técnico sobre o que precisa de ser melhorado: agilização processual sem perda de garantias, gestão mais eficiente dos megaprocessos, atualização dos códigos e reforço dos meios humanos. E a campanha eleitoral teria sido o momento ideal para os partidos apresentarem propostas claras aos eleitores sobre como pretendem resolver os bloqueios da Justiça. Ao não o fazerem, perdem-se oportunidades de esclarecer o eleitorado e de gerar mandato político forte para as mudanças necessárias.
Portanto, sim, diria que a Justiça foi a “grande esquecida” deste ato eleitoral, o que nos deve alarmar enquanto comunidade jurídica e enquanto cidadãos. Compete à Ordem dos Advogados tudo fazer para colocar a Justiça na agenda pública. Afinal, não há cidadania plena sem uma Justiça acessível, eficiente e credível. Esperemos que este “esquecimento” na campanha seja corrigido na ação governativa, sob pena de defraudarmos uma das promessas básicas da democracia – a de que todos, independentemente de quem sejam, podem contar com um sistema de justiça que funciona.
As sanções aplicadas a advogados em processos disciplinares são muito leves?
Essa perceção existe em alguns setores da opinião pública, mas não corresponde à realidade. Não creio que o problema resida na gravidade abstrata das sanções previstas – elas são adequadas e, para as infrações mais graves, podem mesmo conduzir à suspensão ou expulsão de um Advogado. A verdadeira questão está na morosidade e na falta de uniformidade com que essas sanções por vezes são aplicadas, o que dilui a sua eficácia e dá a sensação de excessiva brandura. Em muitos processos disciplinares, a sanção chega anos depois da infração ter ocorrido; quando finalmente é imposta, já o advogado em causa pode até ter reincidido ou, pelo contrário, já se tenha reabilitado, e o efeito dissuasor e exemplar da pena perde-se. Como se costuma dizer, “justiça tardia é injustiça” – uma decisão disciplinar que peca por tardia dificilmente cumpre plenamente a sua função. A perceção de leveza, a existir, decorre, pois, muito da morosidade e da falta de critérios uniformes. Não se trata, pois de corporativismo, mas de ineficiência procedimental.
Conscientes disso, procuraremos implementar mudanças precisamente para acelerar e harmonizar a justiça disciplinar, atacando a raiz da perceção errada de impunidade. Em primeiro lugar, ao agilizar os processos disciplinares, pretendemos que as decisões sejam tomadas num prazo razoável – idealmente próximo no tempo da infração. Com procedimentos mais céleres (inclusive graças à digitalização e a metodologias de gestão processual mais eficazes), a sanção aplicada terá um impacto muito mais pedagógico e dissuasor, mostrando aos pares e à sociedade que há consequências reais e imediatas para comportamentos não deontológicos. Em segundo lugar, a harmonização da jurisprudência disciplinar que já referi contribuirá para que haja coerência nas sanções: infrações equivalentes deverão acarretar respostas equivalentes, independentemente do conselho regional que julgue o processo. Isso aumentará o sentimento de justiça e de credibilidade das decisões.
Importa também esclarecer que não somos complacentes com infrações graves – bem pelo contrário. O Conselho Superior que agora inicia funções tem uma orientação muito clara nesse ponto: comportamentos que violem gravemente os deveres profissionais terão resposta disciplinar firme e eficaz, para salvaguardar o prestígio da advocacia e a confiança do público. O que não faremos é desperdiçar energias com “faltas de menor relevância” – não faz sentido perseguir disciplinarmente um Advogado por questões bagatelares, aplicando-lhe penas desproporcionadas. A nossa filosofia é concentrar os esforços nos verdadeiros desvios éticos e, nesses, atuar com rigor e tempestividade.
Assim, diria que a ideia de que as sanções disciplinares são muito leves resulta de uma visão incompleta da realidade. Quando o sistema disciplinar for mais rápido e uniforme – como nos propomos fazer – essa perceção tenderá a desaparecer. A sociedade poderá constatar que, havendo faltas graves, a Ordem intervém com celeridade e de forma adequada. E os próprios advogados sentirão que as regras são para cumprir, sob pena de punição proporcional, mas efetiva. Em última instância, o sucesso estará em fazer entender que a autoregulação da classe não é sinónimo de benevolência com os faltosos, mas sim de justiça interna bem aplicada. Tenho confiança de que, modernizando os processos e harmonizando os critérios disciplinares, conseguiremos demonstrar que a disciplina na Ordem dos Advogados nem é branda nem severa em excesso – é justa, que é exatamente o que se exige.
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“A Justiça foi a grande esquecida deste ato eleitoral”
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