Sofia Mateus, recentemente nomeada sócia de capital da CMS Portugal fala, em entrevista à Advocatus, sobre a Agenda do Trabalho Digno (ATD), que acaba de fazer dois anos.
Sofia Mateus, recentemente nomeada sócia de capital da CMS Portugal, ainda se lembra do dia em que entrou no escritório: “tinha 24 anos feitos há pouco mais de um mês.” Desde então trabalha na sociedade fundada por um homem que diz ter tido o privilégio de “observar e crescer como exemplo maior de ética e postura profissional, capacidade infindável de trabalho, rigor e humildade”, Rui Pena. São mais de 20 anos de experiência na área do Direito do Trabalho, nomeadamente no contencioso, que nos trazem a esta conversa sobre um dos temas do momento: a Agenda do Trabalho Digno (ATD), que acaba de fazer dois anos.
Quais foram os principais objetivos da ATD quando foi lançada em 2021, e como evoluiu o seu enquadramento jurídico desde então?
A ATD teve como principais objetivos melhorar as condições de trabalho, conciliar a vida profissional e familiar e combater a precariedade laboral. A iniciativa visava assegurar que os trabalhadores tivessem acesso a condições de trabalho (mais) dignas, com direitos laborais e sociais adequados, promover a igualdade de oportunidades e promover ainda a negociação coletiva.
Muito sucintamente, a publicação da Lei n.º 13/2023, reforça a proteção dos trabalhadores, regula áreas como o teletrabalho, reforça direitos na parentalidade e prevê a utilização de algoritmos e inteligência artificial no trabalho, mas também acaba por se revelar pouco flexível em algumas matérias para as entidades empregadoras, como por exemplo, no despedimento.
Quais as medidas legislativas mais significativas adotadas nesse período desde então, a nível prático?
Destacaria as que visam acompanhar as grandes transformações sociais a que assistimos com o COVID-19 e a evolução no campo digital. Refiro-me à Lei n.º 83/2021, que regulamenta o teletrabalho e introduz o “direito à desconexão”; e, claro, a Lei n.º 13/2023, que introduz as grandes alterações ao Código do Trabalho e incluiu disposições sobre a utilização de algoritmos e inteligência artificial, nomeadamente no que respeita ao dever de informação, ou até mesmo àqueles trabalhadores independentes que são considerados como dependentes economicamente e que recentemente deu lugar a ações de fiscalização da ACT com vista ao combate dos ‘falsos recibos verdes’.
Em que áreas a ATD teve maior impacto positivo?
Do lado dos trabalhadores houve uma maior proteção no que respeita ao dever de informação e ao reforço dos seus direitos. Houve também uma maior regulação do teletrabalho – a meu ver com espaço para melhorias. Já do lado das empresas não sei se podemos referir-nos propriamente a um impacto positivo. Ficou a faltar maior flexibilidade e adaptação das relações laborais àquela que vai sendo a realidade do mercado de trabalho.
Como avalia a efetividade da lei do teletrabalho (Lei n.º 83/2021) e do “direito à desconexão” após três anos de vigência?
Há ainda um grande estigma na nossa sociedade de que temos de estar sempre disponíveis e que, pelo facto de não estarmos, podemos vir a perder o emprego. Não diria que seja bem assim. É preciso ver que às vezes há situações que são, de facto, urgentes e carecem de uma resposta fora de horas, mas há cada vez mais a perceção de que uma pessoa mentalmente saudável é uma pessoa mais produtiva, e isso ‘só’ é possível se houver um equilíbrio entre a vida profissional e pessoal e um efetivo descanso.
“A ACT tem um papel crucial na fiscalização, mas faltam-lhe recursos. Embora a tenha intensificado, especialmente em áreas como a precariedade laboral e segurança e saúde no trabalho, ainda existem desafios significativos”
O combate aos falsos recibos verdes e aos contratos a termo excessivos melhorou?
Nos últimos tempos tem havido maior ação de fiscalização da ACT no combate aos falsos recibos verdes. No entanto, esta figura faz sentido existir até porque há pessoas que preferem ter a sua autonomia e independência e a lei não se deveria sobrepor a essas situações. O mesmo se diga em relação aos contratos a termo resolutivo. As empresas têm muitas vezes a necessidade de contratar por curtos períodos de tempo em determinadas circunstâncias. Não devemos é partir do princípio que qualquer recibo verde ou contrato a termo celebrados pelas empresas são falsos.
Quais são as principais falhas ou lacunas na aplicação da ATD?
Como já referido, ficou a faltar uma maior flexibilidade no momento da contratação e mesmo na cessação. Maior flexibilidade não é sinónimo de maior precaridade. É de maior liberdade e transparência, o que leva a uma maior produtividade com claros benefícios, tanto para os trabalhadores, como para as empresas.
A fiscalização pela ACT tem sido suficiente para garantir o cumprimento das normas? Quais as críticas ao sistema de sanções?
A ACT tem um papel crucial na fiscalização, mas faltam-lhe recursos. Embora a tenha intensificado, especialmente em áreas como a precariedade laboral e segurança e saúde no trabalho, ainda existem desafios significativos. Creio que não devemos olhar para a ACT como inimigo, mas como aliado. Como já ouvi, é melhor as empresas aplicarem o dinheiro em melhores condições de trabalho e formação, do que no pagamento de coimas. Há, assim, um papel importante na prevenção também.
Como é que a crise económica e inflação (2022–2024) impactaram as metas da ATD, especialmente no que diz respeito a salários dignos?
O impacto foi claramente negativo. No universo empresarial português, já é desafiante as empresas acompanharem o aumento do salário mínimo decretado com a ATD sem perda de competitividade, o que se agudiza, naturalmente, quando vem acompanhado de uma crise económica/inflação. Às empresas também devem ser dadas condições para o poderem fazer. Para que haja uma dignidade real em termos remuneratórios tem que se apostar em maior produtividade e na revisão do impacto da carga fiscal no trabalho.
Que avanços houve na proteção de trabalhadores imigrantes, jovens e pessoas com deficiência? Persistem situações de exploração?
No que respeita aos trabalhadores com deficiência há já legislação que prevê a necessidade de cumprimento de quotas para pessoas com deficiência. Já quanto aos jovens, poderia destacar as alterações no que ao período experimental e estágios respeita. No caso dos imigrantes, é verdade que persistem situações de exploração e, como sabemos, estes têm sido fundamentais para dar resposta à falta de mão de obra, além de que em 2024 contribuíram com mais de 3.600 milhões de euros para a Segurança Social. Assim, creio que é essencial que as empresas se comecem a preparar para a implementação do Regulamento que prevê banir o trabalho forçado nos produtos comercializados na União Europeia.
A legislação contra o assédio laboral e a discriminação tem sido aplicada de forma eficaz? Há jurisprudência relevante nesse período?
Desde há uns anos que se tem vindo a falar mais sobre assédio no local de trabalho, assim como de discriminação. Esta última, mais ao nível salarial. Neste aspeto a legislação tem sido eficaz no sentido em que prevê que as empresas são obrigadas a agir disciplinarmente sempre que tenham conhecimento de alguma alegada situação de assédio. Se depois essa situação configura assédio ou não é algo a apurar em sede própria. É importante que as empresas estejam sensibilizadas para a necessidades de produzirem Códigos de Conduta robustos que ofereçam respostas efetivas a situações de assédio laboral, assim como de prevenção de situações de discriminação.
Que reformas legislativas ainda são necessárias para consolidar o trabalho digno em Portugal?
É necessário reforçar as medidas de fiscalização e criar uma maior flexibilidade permitindo uma maior liberdade no que, por exemplo, à organização e tempo de trabalho respeita, pelo menos em alguns setores de atividade com especificidades diferenciadas, ajustando-os às exigências próprias daquelas áreas.
“No universo empresarial português, já é desafiante as empresas acompanharem o aumento do salário mínimo decretado com a ATD sem perda de competitividade, o que se agudiza, naturalmente, quando vem acompanhado de uma crise económica/inflação”
Como o crescimento da economia de plataformas (Uber, Glovo) desafia os princípios desta Agenda? É preciso nova regulamentação?
Em bom rigor, não desafia. A esmagadora maioria dos Tribunais considera que a atividade dos estafetas através das plataformas não corresponde a um contrato de trabalho. Portanto, a alegada desproteção social destes profissionais, a existir, é a mesma que todos os trabalhadores independentes, de qualquer atividade, verificam.
Todavia, caso se pretenda discriminar positivamente os prestadores de serviços em plataformas, o que é uma discussão legítima, será preciso nova regulamentação.
Por outro lado, tem que se analisar a contribuição das plataformas para o crescimento de outras atividades económicas e respetivo aumento de salários, como por exemplo, no setor da restauração.
Qual o balanço da mediação laboral como alternativa aos tribunais em conflitos sobre dignidade no trabalho?
A mediação laboral é uma forma eficaz de resolução de conflitos em alternativa aos tribunais de trabalho. No entanto, não é muito utilizada, talvez por desconhecimento e, por outro lado, porque pressupõe o acordo das partes para se sujeitarem à mediação. É uma forma de resolução rápida e menos onerosa dos conflitos, podendo contribuir para um ambiente de trabalho mais harmonioso e colaborativo.
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Agenda do Trabalho Digno. “Do lado dos trabalhadores houve uma maior proteção no que respeita ao dever de informação e ao reforço dos seus direitos”
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