“Agricultores são vistos quase como criminosos”, lamenta Capoulas Santos

"Agricultores sentem-se órfãos e quando há um pretexto para protestar, protestam", diz o antigo ministro da Agricultura. Capoulas Santos estranha falta de antecipação da ministra para evitar cortes.

“Um incidente infeliz.” É desta forma que o antigo ministro da Agricultura classifica o facto de os agricultores terem sido informados de que haveria um corte de 35% e 25% nos apoios aos ecorregimes, do primeiro pilar da Política Agrícola Comum (PAC). “Causa-me alguma estranheza, como é que, havendo esse défice, não se tivesse tido a perceção que ele existia e pedido a autorização antecipadamente” para uma ajuda de Estado, critica Luís Capoulas Santos.

“Mas não sei se, caso não tivesse ocorrido, os protestos não teriam tido lugar na mesma pelo efeito de contágio que tiveram um pouco por toda a Europa“, admite.

Estes protestos foram alimentados, na sua opinião por “um caldo de cultura que se foi avolumando”. “Nos últimos anos, os agricultores têm vindo a ser muito desvalorizados pela sociedade e pelos poderes políticos”, seja nacionais, seja comunitários. “Ao nível dos governos nacionais, aí também posso incluir Portugal, tem havido uma clara desvalorização do Ministério da Agricultura. Foi-lhe retirado o setor das florestas, alguns setores da área da veterinária, foram extintas as direções regionais da Agricultura”, enumera o antigo ministro que foi eurodeputado e relator da reforma da PAC.

Na sociedade são vistos quase como criminosos, inimigos do ambiente, que contaminam, que usam água demais. Há uma crítica muito forte e um discurso pseudo-ambientalista, que nos empurra quase para o paleolítico, para recolha, para deixar a natureza completamente intacta”, lamenta. “Isso é uma utopia” alerta Capoulas Santos.

O antigo ministro defende que os agricultores devem ser envolvidos na discussão da nova reforma da PAC. “Porque hoje, os agricultores são pessoas cultas, que utilizam já enorme tecnologia”, sublinha recordando a frase célebre de “há mais tecnologia hoje num tomate do que num Ferrari“. Capoulas Santos alerta ainda para a necessidade de se chegar a um entendimento nesta política verdadeiramente comum — aplicam-se as mesmas regras do Ártico até ao Mediterrâneo, do Atlântico até ao Mar Negro — porque a alternativa é uma renacionalização e, “isso significa que quem tem mais poder económico para apoiar os seus, ajudá-los a sempre mais do que quem tem menos disponibilidades orçamentais”, avisa.

Se fosse ministro da Agricultura que medidas teria tomado, sabendo que no dia seguinte haveria a ameaça dos agricultores saírem à rua para protestar?

É um cenário que não se coloca em termos práticos. Teria, primeiro que tudo feito, o que estivesse ao meu alcance para prevenir os acontecimentos. Criou-se um caldo de cultura nos últimos anos, em Portugal e na Europa, que mais tarde ou mais cedo, iria culminar numa erupção deste tipo. Para quem acompanha de perto a realidade agrícola europeia, isto não é propriamente uma surpresa. Talvez tenha sido uma surpresa a dimensão que os protestos alcançaram e a forma como o efeito de contágio tão rapidamente se propagou. Existe um conjunto de causas que foram enchendo o balão que agora, em cada um dos Estados-membros, pequenas faíscas incendiaram. No caso português, a faísca foi o anúncio de um alegado corte nalguns pagamentos agrícolas; em França terá sido a pressão sobre os preços dos cereais decorrentes de alguma abertura do mercado, designadamente da Ucrânia. Em todos os sítios há pequenas razões de queixa que, conjugadas com as grandes razões que se têm vindo a acumular, culminaram nestes protestos. Nestas circunstâncias, o melhor é sempre prevenir. Quando se trata de remediar, porque não há alternativa, trata-se de identificar quais são os problemas que causam maior celeuma e procurar dar-lhes resposta. Penso que foi isso que o Governo português fez ao ter anunciado a anulação do corte, poucos dias depois de o ter anunciado.

Criou-se um caldo de cultura nos últimos anos, em Portugal e na Europa, que mais tarde ou mais cedo, iria culminar numa erupção deste tipo. Isto não é propriamente uma surpresa. Talvez tenha sido uma surpresa a dimensão que os protestos alcançaram.

Foi um emendar de mão? Corrigir o erro perante a pressão das ruas, como dizia o líder da bancada parlamentar Eurico Brilhante Dias?

Sim. É verdade. A senhora ministra justificou-o como um erro da administração.

Faz sentido uma ministra justificar-se de uma medida deste tipo com uma falha de comunicação do presidente do IFAP?

Não estou por dentro do acontecimento. Conheço os factos: o IFAP fez uma comunicação escrita aos agricultores, dando-lhes conta desse corte.

Um corte entre 35% e 25% nas candidaturas aos ecorregimes de agricultura biológica e produção integrada.

Uns dias depois o Governo veio anunciar a anulação desse corte e a reposição dos cerca de 60 a 70 milhões de euros que passarão a constituir uma ajuda do Estado e, portanto, terá de ir solicitá-la a Bruxelas. Causa-me alguma estranheza, como é que, havendo esse défice, não se tivesse tido a perceção que ele existia e pedido a autorização antecipadamente. Foi o incidente infeliz. Mas não sei se, caso não tivesse ocorrido, os protestos não teriam tido lugar na mesma pelo efeito de contágio que tiveram um pouco por toda a Europa.

O caldo de cultura a que se referiu.

Há um caldo de cultura que se foi avolumando ao longo destes anos. Nos últimos anos, os agricultores têm vindo a ser muito desvalorizados pela sociedade e pelos poderes políticos. Na sociedade são vistos quase como criminosos, inimigos do ambiente, que contaminam, que usam água demais. Há uma crítica muito forte e um discurso pseudo-ambientalista, que nos empurra quase para o paleolítico, para recolha, para deixar a natureza completamente intacta. Isso é uma utopia. É impossível alimentar a humanidade sem interferir na natureza. Há uma população mundial crescente, que exige cada vez mais alimentos, e parte dela tem ainda grandes deficiências alimentares. Esta desvalorização do agricultor por parte da sociedade e da própria comunicação social que enfatiza tudo o que na agricultura corre mal. Os muitos sucessos passam completamente ao lado.

Causa-me alguma estranheza, como é que, havendo esse défice, não se tivesse tido a perceção que ele existia e pedido a autorização antecipadamente. Foi o incidente infeliz.

Uma desvalorização também do próprio Governo português que escolheu uma ministra com pouco peso político?

Também dos poderes políticos, ao nível da União Europeia e dos Estados nacionais. Trabalhei com vários comissários com enorme força e peso político, como foi Franz Fischler, Mariann Fischer Boel, Dacian Cioloş, Phil Hogan. Agora temos um comissário, o senhor Janusz Wojciechowski, que é polaco, que ainda não apareceu. Já viu alguma declaração do comissário europeu da Agricultura perante estes acontecimentos?

Temos tido sempre Ursula von der Leyen a tomar a iniciativa.

Von der Leyen, o comissário grego, também Dombrovskis, têm sido vários comissários. A própria reforma da Política Agrícola Comum, que decorreu durante três ou quatro anos e que entrou em vigor este ano, quem comandou a negociação por parte da Comissão Europeia foi o vice-presidente da Comissão Frans Timmermans, [com a pasta do Clima]. É como se o comissário europeu da Agricultura não existisse. Os agricultores europeus, sentem um défice de defesa e representação deles próprios nas instâncias europeias. Ao nível dos governos nacionais, aí também posso incluir Portugal, tem havido uma clara desvalorização do Ministério da Agricultura. Foi-lhe retirado o setor das florestas, alguns setores da área da veterinária, foram extintas as direções regionais da Agricultura. Curiosamente, foram as primeiras direções gerais a serem instaladas fora de Lisboa, no primeiro Governo do Dr. Mário Soares, em 1976.

Capoulas Santos, ex-ministro da Agricultura, em entrevista ao ECO - 07FEV24
“Na negociação desta reforma da PAC, algum desequilíbrio na negociação entre os setores que tradicionalmente se confrontam: ambiente e agricultura”, disse Capoulas Santos, ex-ministro da Agricultura.Hugo Amaral/ECO

Há um conjunto de causas para o descontentamento dos agricultores.

Desvalorização dos agricultores, mal tratados na comunicação social, com uma tutela europeia fraca ou inexistente, com uma desvalorização no seio dos governos, dos ministérios, que, não é por acaso, que em Portugal é o último da hierarquia do Governo. Mais burocracia para o acesso às ajudas. A pressão sobre os preços em baixa, fruto da abertura dos acordos comerciais. Mas há acordos, que também têm justificação. Por exemplo, o acordo da UE com os países ACP, África, Caraíbas e Pacífico. Quer dizer que todos os países da África, das Caraíbas e do Pacífico podem pôr os seus produtos agrícolas na União Europeia a taxas de zero. E dir-se-á, mas isso vai provocar a entrada no mercado de alguns produtos que podem ser concorrenciais. Mas é algo que tem a ver também com a política de apoio ao desenvolvimento e de combate à emigração. Ao facilitar que estes produtos entrem na Europa a custo zero, estamos a contribuir também para que os fluxos migratórios possam ser menores. Isto é um conjunto de equilíbrios que tem de ser doseado. E por último, esta última reforma introduziu um conjunto de exigências sobre os agricultores, de natureza ambiental, que são naturalmente justificáveis — a agricultura tem de ser cada vez mais compatibilizável e com a sustentabilidade e com as boas práticas ambientais — mas, têm de ser encontradas soluções gradativas. Por exemplo, a União Europeia recuou na proposta que tinha para reduzir o uso de pesticidas em 50% dos pesticidas até 2030.

Uma medida que o Parlamento Europeu já tinha chumbado.

Sim, mas sobre esta matéria não há um poder vinculativo do Parlamento. Há aqui um grande fã, pretensamente ambientalista, para dar resposta a setores de sociedade que têm, esses sim, pela positiva, um grande peso na comunicação social e depois desequilibra-se para o lado da produção. Os agricultores têm de ser os maiores defensores do ambiente e têm de ser envolvidos nessa causa. A União Europeia, aliás, até justifica os apoios que lhes dá para que façam boas práticas ambientais, porque é a forma pela qual se pode justificar que os contribuintes dêem parte dos seus impostos para apoiar a atividade agrícola. Não só porque protegem o ambiente, gerem a paisagem de que todos beneficiamos, mas ao mesmo tempo, porque isso também permite que os preços dos produtos agrícolas se tenham mantido estáveis ao longo das últimas quatro ou cinco décadas. Os agricultores foram apoiados com o dinheiro dos contribuintes para que pudéssemos ter alimentos sãos, com qualidade e em quantidade. Este equilíbrio entre ambiente, agricultura e consumidores é uma relação que tem sido pouco estimulada e que é pouco valorizada. E os agricultores sentem-se órfãos e quando há um pretexto para protestar, protestam.

Este equilíbrio entre ambiente, agricultura e consumidores é uma relação que tem sido pouco estimulada e que é pouco valorizada. E os agricultores sentem-se órfãos e quando há um pretexto para protestar, protestam.

Disse também no início da nossa conversa que era bom que se tivesse acautelado previamente os problemas que poderiam surgir no setor agrícola. O que se poderia ter acautelado em termos de medidas?

Quando existe um acontecimento, a solução mais fácil é sempre dizer que podíamos preveni-lo e devíamos fazê-lo. Quando ficamos doentes era melhor que tivéssemos prevenido do que depois ir tratar a doença.

Esta era uma doença que já estávamos a vê-la a acontecer.

Houve, talvez, do ponto de vista da negociação desta reforma da PAC, algum desequilíbrio na negociação entre os setores que tradicionalmente se confrontam: ambiente e agricultura E não sei se a participação e o envolvimento dos agricultores foi o adequado.

Ainda vamos a tempo de melhorar? De rever esta PAC?

Todas as reformas — e já participei em três, em situações diferentes, uma delas como ministro e duas como relator no Parlamento Europeu — são processos muito longos que exigem um conjunto de compromissos contraditórios. Quando fazemos uma política comum, e a agricultura é verdadeiramente a única política comum da União Europeia, aquela em que é de aplicação obrigatória nos Estados-membros, estamos a falar de uma agricultura que tem de ser aplicada com as mesmas regras do Ártico até ao Mediterrâneo, do Atlântico até ao Mar Negro, com uma diversidade enorme planície, montanha, países mais desenvolvidos, menos desenvolvidos. Depois tem de ser negociada de forma tripartida. Ou seja, o Parlamento Europeu tem uma palavra decisiva — cerca de 700 deputados de todas as famílias políticas, o Conselho — onde estão os governos: 27 governos de esquerda, direita, liberais, de coligação; e ainda a Comissão Europeia, já que qualquer alteração que se faça nos regulamentos e que a Comissão não concorde exige unanimidade no Conselho. É um processo muito complicado. Por isso demora vários anos e acaba num conjunto de compromissos e que tente satisfazer todos. E às vezes, esse satisfazer todos acaba por introduzir algumas incongruências.

Hoje, os agricultores são pessoas cultas, que utilizam já enorme tecnologia. Há aquela célebre frase que há mais tecnologia hoje num tomate do que num Ferrari.

Tem de haver um esforço de adaptação das regras comuns e a PAC está a evoluir um pouco nesse sentido, mas acaba por ser, também, um perigo, porque se a PAC deixar muito de ser uma política comum, volta a ser renacionalizada. E se se renacionaliza uma política comum, isso significa que quem tem mais poder económico para apoiar os seus, ajudá-los a sempre mais do que quem tem menos disponibilidades orçamentais. Isto é tudo um equilíbrio muito instável, que exige uma intensa negociação, mas sobretudo uma intensa participação. Porque hoje, os agricultores são pessoas cultas, que utilizam já enorme tecnologia. Há aquela célebre frase que há mais tecnologia hoje num tomate do que num Ferrari. São pessoas que têm de ser envolvidas nesta discussão. Quer no plano europeu e talvez também nos planos nacionais, esse envolvimento não tenha sido o suficiente.

  • Diogo Simões
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