Exclusivo “Ainda vamos ter taxas de juro elevadas face àquilo que é o padrão normal”

Apesar de prever que as taxas de juro estabilizem entre 2% e 3%, a economista Cristina Casalinho afirma, em entrevista, que as taxas de juro ainda deverão manter-se elevadas durante algum tempo.

Após largos anos adormecida e até esquecida, a inflação voltou a assombrar a Europa. A galopante subida dos preços que se assistiu no último ano, trouxe consigo uma política monetária fortemente restritiva por parte do Banco Central Europeu (BCE) que tem sido marcada por subidas constantes das taxas de juro de referência. Em menos de um ano, com o intuito de controlar taxa de inflação na Zona Euro que chegou aos dois dígitos, o BCE já realizou oito aumentos consecutivos das taxas de juro, atirando-as para máximos de 2001. E não deverá ficar por aqui. O mercado antecipa mais um ou dois aumentos até ao final do ano.

Da banca à indústria, do orçamento familiar às finanças públicas, o impacto da política monetária de choque do BCE tem sido tremendo. O tema está e continuará a estar na ordem do dia, e será também o foco de discussão do Fórum anual do BCE que arranca esta segunda-feira em Sintra, e que conta com governadores de bancos centrais, académicos, especialistas do mercado financeiro para debater a “estabilização macroeconómica num ambiente de inflação volátil”.

Em entrevista ao ECO, Cristina Casalinho revela que a economia nacional começa a dar sinais de que a política monetária do BCE está a ter efeito. Isso é visível com o abrandamento da taxa de inflação, que passou de 10,14% em outubro para os atuais 3,98%. No entanto, alerta que ainda é cedo para fazer a festa. Sobretudo no que toca ao fim do ciclo de subida das taxas de juro do BCE. “Provavelmente ainda estamos na fase do overshooting alerta a economista, que depois de quase oito anos na liderança da Agência de Gestão da Tesouraria e Dívida Pública (IGCP) regressou ao BPI no final do ano passado para assumir as funções de diretora-executiva de Sustentabilidade do BPI.

Na primeira parte desta entrevista (a segunda parte pode ler aqui), Cristina Casalinho, que também é administradora não executiva da Fundação Gulbenkian, explica porque antecipa que as taxas de juro deverão situar-se no intervalo dos 2% a 3% no futuro e porque não se mostra preocupada com a gestão da dívida nacional com o arranque do processo de desalavancagem do balanço do BCE já partir de julho, apesar de reconhecer que continuamos a ter um stock de dívida elevado.

Depois de um longo período de taxas de juro baixas, desde o ano passado que as taxas têm subido a grande velocidade. Recentemente, a Euribor a 12 meses ultrapassou os 4% e o mercado antecipa que o BCE possa ainda realizar dois aumentos das taxas diretoras do BCE. Até onde podem ir as taxas de juro?

O movimento que estamos a assistir ainda é de subida. E enquanto o comportamento da inflação continuar como está, dificilmente existirão condições para que as taxas de juro não continuem a subir e não se mantenham a um nível relativamente alto no futuro próximo.

Não antevê o regresso a um ambiente de taxas de juro baixas para níveis próximos do passado recente?

As pessoas têm de se consciencializar de que a última década não é uma referência para a década presente, porque a última década foi particularmente anómala em relação ao comportamento das taxas de juro. Não podemos considerar que taxas de juro negativas como vivemos durante muitos anos sejam um padrão. São, pelo contrário, uma anormalidade. Provavelmente ainda estamos na fase do overshooting e ainda não chegámos à fase de correção das taxas para uma média histórica. Nesse sentido, ainda vamos ter taxas de juro elevadas, face àquilo que é o padrão normal.

Vê então com normalidade as taxas de juro entre 2% e 3% nos próximos anos?

Sim. Acreditando que também vamos ter taxa de inflação na ordem dos 2% e 3%, é normal que tenhamos taxas de juro compatíveis com essas taxas de inflação.

Antecipa que o BCE possa começar a cortar as taxas de referência no início do próximo ano, como alguns analistas antecipam?

Vai depender muito da evolução da atividade económica. O próprio BCE, nos últimos comentários que tem feito, tem enfatizado a ideia de que a condução da política monetária é dependente da informação económica, sendo que aqui o principal elemento é o controlo da inflação. E o que se pretende é que, com a subida das taxas de juro, haja algum arrefecimento económico, o que implica, por exemplo, um abrandamento da concessão do crédito e a procura seja também contida.

Em Portugal, tanto a concessão do crédito como a procura privada revelam um abrandamento considerável nos últimos meses. São sinais de que a política monetária está a funcionar como o esperado?

Quer dizer que está a fazer efeito. No entanto, os preços continuam relativamente altos face aos padrões históricos, se bem que já há alguns sinais muito significativos de que os principais fatores indutores da primeira vaga de inflação já estão em níveis muito contidos face àquilo que foi o seu pico. Em alguns casos, os preços já estão próximos dos níveis no início do fenómeno.

Embora tenhamos contido o fluxo de dívida nos últimos anos, que já foi uma mudança estrutural muito significativa, continuamos a ter o problema do stock.

A partir de julho, o BCE irá iniciar o processo de desalavancagem do seu balanço (quantitative tightening). Considerando que mais de 50% da dívida pública nacional está nas mãos do BCE – mais nenhum país tem uma dependência tão grande na Zona Euro. Que impacto poderá ter esta situação na gestão da dívida nacional? Será um desafio acrescido?

Diria que o nível de preocupação deve ser relativamente contido porque vamos ter dois fenómenos que se compensam parcialmente: se, por um lado, o BCE desalavanca e, portanto, reduz a sua exposição às dívidas soberanas, simultaneamente, a dívida portuguesa, em termos de percentagem do PIB, reduz-se, esperam-se superávites primários e, por isso, as necessidades de emissão também dever-se-ão conter. E esse é um aspeto positivo. Ainda recentemente, o Banco Portugal publicou, pela primeira vez, projeções para a evolução do rácio da dívida e em que, até 2025, é esperado que a dívida se situa abaixo dos 100% do PIB. Além disso, ao nível das agências de rating, observamos uma evolução muito favorável face à avaliação que é feita da capacidade creditícia de Portugal.

Cristina Casalinho, Diretora Executiva de Sustentabilidade do BPI, em entrevista ao ECO - 20JUN23
Cristina Casalinho, Diretora Executiva de Sustentabilidade do BPI, em entrevista ao ECOHugo Amaral/ECO

Não está preocupada com o nível de dívida de Portugal nem em relação à capacidade de o país financiar essa dívida decorrente do quantitative tightening do BCE?

Não estou tão preocupada porque há um número de fatores muito positivos que tendem a contrariar o efeito potencialmente negativo que é a diminuição de participação no mercado de dívida nacional de um grande investidor como é o BCE.

Porém, o stock da dívida pública irá continuar a crescer até um valor recorde de 282 mil milhões de euros, que se traduzirá num crescimento de 6,2% da dívida per capita por população residente (de 40 mil euros para 43 mil euros por residente) e os juros da dívida pagos anualmente quase que duplicarão para mais de 8,5 mil milhões de euros.

Apesar de tudo, a composição da dívida tem-se alterado nos últimos anos. Os empréstimos oficiais ainda têm um peso significativo no stock da dívida. Em 2020, não só os empréstimos europeus, mas sobretudo as compras do BCE por efeitos pandémicos — programa de compra de ativos associada à crise pandémica –, deram um sinal muito forte ao mercado de que crises de denominação de dívida na Europa estavam debeladas. Hoje, isso é visível com a curva de rendimentos de Portugal a apresentar, em algumas ocasiões, yields mais baixas do que as apresentadas pela própria União Europeia.

Mas não faria sentido haver uma estratégia de redução do stock da dívida, algo que aconteceu apenas por uma ocasião nos últimos 30 anos?

Apesar de continuarmos a ter um endividamento público elevado, ele está em declínio, assim como também está o endividamento privado. Após uma subida pontual durante a pandemia, tanto o endividamento das famílias como o das empresas se reduziu. Isso é bem visível no balanço dos bancos portugueses, em que o rácio de transformação [de depósitos em crédito] passou de 162% em 2010-2011, no pico da crise, para um rácio inferior a 100%. E quando se cortou a linha dos 100% e se achava que a tendência ia parar, continuou a reduzir-se, se bem que mais lentamente. E isso foi uma mudança significativa.

Controlou-se o fluxo de dívida, mas o stock permanece elevado. Não é um fardo demasiado pesado para a economia no presente, mas sobretudo para as gerações futuras?

Embora tenhamos contido o fluxo de dívida nos últimos anos, que já foi uma mudança estrutural muito significativa, continuamos a ter o problema do stock. A dívida externa continua lá. Mas mesmo o stock foi recomposto. Atualmente, dependemos menos de investimento de carteira e muito mais de investimento direto, que tem um caráter de estabilidade muito maior. É certo que há ainda debilidades, mas os fatores positivos alcançados na última década devem ser salientados, nomeadamente por parte do setor privado, que fez um trabalho muito louvável.

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