Inteligência artificial pode trazer "soluções verdadeiramente mágicas" para problemas do sistema de ensino português, antecipa Miguel Herdade. E impacto no trabalho também será significativo, projeta.
A revolução tecnológica proporcionada pela inteligência artificial (IA) não é um “catástrofe inevitável“. As potencialidades que lhe estão associadas são muitas, tanto no ensino como no mercado de trabalho. Mas há que ser proativo e começar já a preparar os alunos e profissionais para as alterações que estão à espreita. O retrato é traçado pelo diretor associado do londrino Ambition Institute, entidade que se dedica à formação de professores.
Em entrevista ao ECO, Miguel Herdade, que é também governador de uma escola primária em Londres, indica que a IA pode mesmo trazer “soluções verdadeiramente mágicas” para os problemas do sistema de ensino português, libertando, por exemplo, os professores da carga burocrática e deixando-lhes mais tempo para outra tarefas fundamentais.
O especialista em educação debruça-se ainda sobre o potencial impacto da IA na redução das desigualdades na educação e deixa críticas ao sistema português, que diz ser caracterizado por um fosso entre ricos e pobres.
Sobre o mercado de trabalho, Miguel Herdade — que participou recentemente no ciclo de conferências “Challenging the Future” do BNP Paribas — realça que esta tecnologia pode impactar de modo significativo a formação contínua dos trabalhadores, adaptando-a especificamente à empresa e às funções desempenhadas.
Podemos encontrar soluções verdadeiramente mágicas para os maiores problemas do nosso sistema de ensino, sobretudo no curto e médio prazo. Estou a pensar especificamente no caso português.
Comecemos pelo retrato mais global. Em traços gerais, de que modo é que a inteligência artificial vai mudar o ensino?
A inteligência artificial e os modelos de linguagem como o famoso ChatGPT vão trazer alterações muito profundas ao sistema de ensino. Admito que posso estar a ser demasiado otimista, mas podemos encontrar soluções verdadeiramente mágicas para os maiores problemas do nosso sistema de ensino, sobretudo no curto e médio prazo. Estou a pensar, aliás, especificamente no caso português. Vejo, por exemplo, que a inteligência artificial pode ajudar a retirar carga burocrática dos professores.
E pode democratizar o ensino?
A inteligência artificial pode também ajudar-nos a diminuir o fosso entre ricos e pobres na escola. Este é sem dúvida um dos pontos mais problemáticos nas escolas públicas portuguesas, que só se tenderá a agravar tendo em conta o enorme dano que a pandemia causou nos nossos alunos, sobretudo nos de contextos mais desfavorecidos. A inteligência artificial pode ajudar-nos a libertar recursos nas escolas que podem (e devem) ser reinvestidos nos alunos de contextos socioeconómicos mais baixos. Como disse, estou a pensar apenas no curto prazo. O problema é que esta oportunidade, se for mal aplicada, pode na verdade ter o efeito oposto e criar mais um elemento de desvantagem aos alunos mais pobres, caso não demos os recursos tecnológicos e humanos para estes alunos aproveitarem a inteligência artificial. Temos de evitar a todo o custo que só as famílias mais ricas e escolas em zonas mais favorecidas tenham acesso a estas ferramentas.
Quão preparadas estão as escolas e universidades para abraçar a inteligência artificial, com todas essas potencialidades que lhes estão associadas?
Acho que não estão, mas também não sei se era justo esperar que tivessem. É natural que a adaptação tome o seu tempo e passe também por decisões imediatistas e de curto prazo. O pânico de os alunos usarem o Chat GPT para fazer trabalhos levou algumas universidades em países com a Suécia e a Austrália a fazerem exames em papel e lápis. Penso que é uma reação, digamos, natural e instintiva.
Os professores queixam-se, e com toda a razão, que há demasiada burocracia e carga administrativa nas escolas. Há muitas tarefas que podem ser automatizadas e com isso podemos aumentar a satisfação e produtividade dos professores.
Em Portugal, fala-se muito de escassez de recursos (humanos e não só) nas escolas públicas. Isso pode prejudicar o aproveitamento das potencialidades da IA? De que modo?
Ainda é cedo para saber responder a essa pergunta. Contudo, há a possibilidade de usar a inteligência artificial para libertar recursos escassos, como o tempo dos professores, precisamente para colmatar essa falta de mão de obra. Os professores queixam-se, e com toda a razão, que há demasiada burocracia e carga administrativa nas escolas. Há muitas tarefas que podem ser automatizadas e, com isso, podemos aumentar a satisfação e produtividade dos professores, trazendo de volta a atratividade de uma profissão tão importante para o futuro do país.
E o facto de termos um corpo docente muito envelhecido, pode ter impacto?
Sim, pode. Provavelmente vai ter. Há de facto alguma evidência que aponta para o facto de os professores mais velhos terem mais dificuldade em usar novas tecnologias. Apesar disso, há uma maneira de ver o copo meio cheio quanto a esta situação. Até 2030, cerca de 40% dos professores vão reformar-se. Isto é bastante dramático e, se não fizermos nada, pode mesmo pôr em causa o nosso sistema de ensino. Aliás, neste momento, há dezenas de milhares de alunos sem aulas em determinadas disciplinas por falta de professores. Mas isto não é uma fatalidade. Pelo contrário. Há imensas medidas que podemos implementar para resolver o problema da falta de professores. O que temos de fazer agora é recrutar 35 mil professores que estão em falta até ao fim da década. Muitos desses professores vão ser de outras gerações e até de outros contextos profissionais, e isso pode ser uma oportunidade para fazer a transição da educação na era da inteligência artificial.
Tendo escolas com poucos recursos e com docentes envelhecidos, estamos a prejudicar a própria abertura das próximas gerações a essas tecnologias, o que poderá até impactar o potencial dessas pessoas enquanto profissionais? De que modo?
Não tenho a certeza absoluta disso. O Google como motor de busca apareceu quando eu andava na escola, e os meus professores eram péssimos a usar a Internet, mas nem por isso os alunos deixaram de adquirir essas competências. As dinâmicas com que as crianças e jovens aprendem a usar estes sistemas são bastante mais orgânicas e naturais do que pensamos.
O Estado não confia nas escolas em Portugal. Por isso restringe-lhes a liberdade sobre o seu orçamento. Isso seria impensável numa escola inglesa, que tem imensa flexibilidade orçamental em investir em equipamentos ou até em formação.
Como comparam as escolas portuguesas e britânicas, neste ponto? As britânicas estão mais preparadas?
As escolas inglesas têm uma vantagem competitiva muito grande, por duas razões. A primeira é que na Inglaterra as escolas têm muito mais flexibilidade e autonomia. Por isso, têm mais facilidade em inovar e adaptar-se. Pelo contrário, as escolas em Portugal têm imensa dificuldade, por exemplo, até em gastar dinheiro. O Estado não confia nas escolas em Portugal, nem nos seus diretores e professores, e por isso restringe-lhes a liberdade sobre o seu orçamento. Isso seria impensável numa escola inglesa, que tem imensa flexibilidade orçamental em investir em equipamentos ou até em formação.
Mas em Inglaterra há mais recursos para fazer esses investimentos.
O que a Inglaterra tem também é um investimento muito maior, quer do setor público como do setor privado em investir em projetos de inteligência artificial na educação. O Governo inglês, aliás, tem já um investimento para criar materiais de ensino para os professores usarem que são gerados por inteligência artificial. A par disto, à boa maneira inglesa, que tem uma sociedade civil muito mais forte do que a nossa, há também uma série de institutos, fundações e empresas que já investiram ou doaram dinheiro a organizações de ensino para estudar, testar e desenvolver projetos no terreno que usem estas tecnologias.
O que é que as escolas portuguesas poderiam, portanto, tirar como lição?
As escolas em Portugal, sobretudo as públicas, estão bastante presas pela rigidez e centralização da gestão escolar. É um enorme problema, porque tira-lhes margem para inovar e testar coisas novas. Mas isso é uma opção política, de que penso que os portugueses e a sociedade portuguesa gostam. Ou, se não gostam, pelo menos não vejo grandes manifestações por uma escola pública menos rígida. Portanto, só nos podemos culpar a nós próprios.
É possível que consigamos ter programas e cursos de formação contínua completamente personalizadas para as competências de cada trabalho, para as funções concretas ou para empresas específicas.
Importa falar de ensino não apenas nas idades mais tenras. Falemos, então, de formação ao longo da vida. De que modo é que a IA irá impactar as necessidades de formação contínua dos trabalhadores?
É possível que consigamos ter programas e cursos de formação contínua completamente personalizadas para as competências de cada trabalho, para as funções concretas ou para empresas específicas. Há também um potencial grande de ter programas de mentoria e coaching dados por modelos de linguagem, como o ChatGPT. O potencial transformador é mesmo muito grande.
E as empresas portuguesas estão prontas para fazer essa aposta na formação? Que retrato traça?
O que sei é que Portugal ainda é – de muito longe – o país com a população adulta menos qualificada da Europa. Isso é uma desvantagem competitiva grande. Acho que as pessoas não têm muita consciência disto. Além de sermos o país com menos percentagem de pessoas que concluíram o 12.º ano, também não temos uma tradição forte de formação contínua de adultos. Penso que menos de 15% dos adultos faz formação. A boa notícia é que apesar deste atraso brutal, tivemos uma melhoria absolutamente extraordinária do sistema de ensino nos últimos 20 anos. Mas temo que agora deitemos tudo isto a perder com o Covid-19 e a falta de professores.
Falemos do mercado de trabalho. Desde a recuperação pós pandémica que as empresas têm sofrido com escassez de recursos adequados às vagas que disponibilizam. A IA terá um papel nessa dinâmica? Em que sentido?
Não sou especialista no mercado laboral, mas não tenho dúvidas que a transformação vai ser grande. Será que vamos ter desemprego em massa? Se isto levar ao aumento da desigualdade de rendimentos das famílias, muito provavelmente a escola não terá força suficiente para colmatar esse flagelo. Paradoxalmente, o Produto Interno Bruto dos países deve aumentar exponencialmente. Será que vamos ter de repensar os nossos modelos de impostos e redistribuição de rendimentos? Ou será que vamos conseguir tirar pessoas da pobreza a uma velocidade nunca antes vista? Não sabemos.
Em vez de estar sempre à espera do Estado ou dos fundos europeus, preferia uma sociedade civil forte e de mangas arregaçadas, que é parte ativa em dar soluções para os problemas sociais.
Os Governos deveriam estar a fazer mais para preparar os trabalhadores para essas novas tecnologias, evitando, por um lado, um agravamento da escassez de mãos e, por outro, esse desemprego?
Os governos e os privados também. Em vez de estar sempre à espera do Estado ou dos fundos europeus, preferia uma sociedade civil forte e de mangas arregaçadas, que é parte ativa em dar soluções para os problemas sociais.
Tudo somado. Como vê o futuro da formação e ensino, à luz da IA?
Tenho a certeza de uma coisa: esta revolução tecnológica não é uma catástrofe inevitável, que nos vai cair em cima e sobre a qual não temos qualquer controlo. Não é propriamente um tsunami ou um desastre natural que acontece de repente e que não podemos fazer quanto a ele. Pelo contrário, temos o poder de agir, moldar e usar este avanço a nosso favor. No caso da educação, mais do que um poder de agir, é mesmo uma grande responsabilidade que nós, os adultos, temos, e que, se bem utilizada, pode mesmo resolver alguns dos desafios de que falamos, como a desigualdade ou a falta de professores. Mas tem de haver ação, porque os milagres não acontecem sozinhos.
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“Com IA poderemos ter formação personalizada para competências de cada emprego”
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