Em entrevista à Advocatus, as sócias da Sérvulo falam das taxas de sucesso dos contribuintes em litígios contra a AT e da relação jurídica fiscal que se estabelece entre o Estado e contribuintes.
Teresa Pala Schwalbach está na Sérvulo desde 2015 e é sócia no departamento de Fiscal. Mestre em Business Administration, pela ESADE Business School em Barcelona, em associação com a Universidade Católica Portuguesa, em 2009, foi Top Senior Tax Consultant, na Deloitte, entre 2005 e 2012. Concluiu um curso sobre Sistemas Fiscais Africanos da CPLP, no Instituto de Direito Económico e Fiscal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em 2014. Pós-graduada em Gestão para Juristas, pela Escola de Gestão Empresarial da Universidade Católica Portuguesa, em 2008 e em Fiscalidade, pela Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa, em 2006.
Ana Moutinho Nascimento está na Sérvulo desde 2014, é sócia no departamento de Fiscal e tem atividade centrada em contencioso tributário. Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e pós-graduada em Gestão Fiscal das Organizações, pelo IDEFE – Instituto Superior de Economia e Gestão, em 2004, frequentou cursos e pós-graduações nas áreas da contabilidade e gestão na Faculdade de Direito, da Universidade Católica Portuguesa e da justiça administrativa e fiscal no Centro de Estudos de Direito Público e Regulação, da Faculdade de Direito, da Universidade de Coimbra, em 2006 e 2009, respetivamente. É Árbitra no Centro de Arbitragem Administrativa, desde 2012.
Em entrevista à Advocatus, as sócias da Sérvulo falam das taxas de sucesso dos contribuintes em litígios contra a AT, fiscalidade verde e da relação jurídica fiscal que se estabelece entre o Estado e os contribuintes.
Qual a importância do contencioso tributário para a definição de relação jurídica fiscal que se estabelece entre o Estado e os contribuintes?
O contencioso tributário é uma peça fundamental na relação entre o Estado e os contribuintes. É através dos mecanismos de reação do contencioso tributário, que os contribuintes podem, junto da Administração Tributária (AT)e dos tribunais, contestar a legalidade dos atos em matéria tributária ou das liquidações de impostos, que são emitidos em seu nome. A própria definição das regras que devem ser respeitados pela Administração Tributária nos procedimentos de emissão de atos de liquidação, nos procedimentos de inspeção ou mesmo nos processos de execução, são essenciais para garantir que, em cada momento, são respeitados os princípios e as garantias dos contribuintes.
Há, no entanto, ainda, um trabalho importante a fazer na divulgação do que são os deveres e direitos dos contribuintes nos seus contactos com a AT. Muitos contribuintes que não sabem que cada vez que lhes é exigido um dado montante a título de imposto tem, também, de lhes ser comunicado o motivo pelo qual esse montante lhes está a ser exigido e os meios que dispõem para contestar as razões que são indicadas. Desconhecendo estes deveres a que a Administração Tributária está obrigada, acabam por não solicitar que essa informação lhes seja entregue.
Atualmente, há um cuidado acrescido por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira em respeitar as garantias dos cidadãos, mas é importante continuar o caminho que se tem vindo a construir, por forma a garantir que há uma observância efetiva e não meramente formal dessas garantias. É, igualmente, importante melhorar a forma de comunicação com os cidadãos, no sentido de a tornar mais clara e acessível. A linguagem utilizada na comunicação com os contribuintes, apesar de formalmente correta, é muitas vezes de difícil compreensão por parte dos cidadãos.
A legislação fiscal é cada vez mais complexa e o número de obrigações de natureza tributária que são exigidas aos cidadãos é cada vez maior. A par disto, os poderes de fiscalização e de cobrança coerciva ao dispor da Administração Tributária são cada vez mais eficazes. O respeito pelos princípios do procedimento e o efetivo acesso a meios de defesa, por partes dos contribuintes, são essenciais no equilíbrio da relação que se estabelece entre o Estado e os sujeitos passivos, em cada um dos respetivos momentos.
Qual o perigo a nível de reformas fiscais – ou a sua falta – com a marcação de eleições legislativas antecipadas?
A marcação de eleições legislativas antecipadas pode trazer vários riscos no que se refere a reformas fiscais, especialmente em contextos de instabilidade política ou crise económica. Um desses riscos consiste, por exemplo, na paralisação de reformas em curso. A título exemplificativo, refira-se o trabalho da Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário e das Garantias dos Contribuintes. Esta Comissão foi criada em julho de 2024, com o objetivo de promover a celeridade, a simplicidade e a eficácia do processo e procedimento tributários. A mesma foi encarregue de criar um projeto de alterações legislativas nas matérias acima mencionadas no prazo de seis meses, prorrogável por mais três meses.
Assumindo que este prazo foi prorrogado por três meses, o mesmo terminou no passado mês de abril. Encontrando-se o atual Governo apenas em gestão, não pode prorrogar a duração desta comissão.
Neste momento, não é ainda conhecido publicamente o resultado do trabalho desta Comissão. Caso a mesma tenha conseguido finalizar o seu trabalho, este poderá ser aproveitado para futuras reformas legislativas. Contudo, se os trabalhos não tiverem sido finalizados, então o trabalho desta Comissão poderá sair prejudicado, pois já não possui mandato para continuar até existir novo Governo que decida (se o decidir) prorrogar as funções da mesma.
Finalmente, pode verificar-se um atraso na execução de fundos europeus. Reformas estruturais (nomeadamente fiscais) constituem, por vezes, contrapartidas para a libertação de fundos europeus, como é o caso do PRR. Um governo de gestão não tem mandato político pleno para negociar ou implementar reformas exigidas por Bruxelas.
Como está a evoluir a tributação verde em Portugal?
A Lei da Fiscalidade Verde, que entrou em vigor em 2015, promoveu uma reforma da fiscalidade ambiental. Este diploma, que aprovou um regime de incentivo ao abate de veículos em fim de vida, trouxe alterações às normas fiscais ambientais com impacto em diversas áreas da economia, sobretudo nos sectores da energia e emissões, transportes, água, resíduos, ordenamento do território, florestas e biodiversidade e foi aprovado.
Com o Orçamento do Estado para 2024, foram promovidas as últimas alterações à Lei da Fiscalidade Verde, nas matérias relativas à contribuição sobre embalagens de utilização única e à taxa de carbono sobre viagens aéreas em aeronaves e sobre as viagens aéreas, marítimas e fluviais. No último trimestre de 2024, foi aprovado pelo Governo um conjunto de medidas relacionadas com a mobilidade verde, com o objetivo expresso de acelerar a descarbonização do transporte de mercadorias.
A legislação portuguesa tem já procurado promover incentivos à descarbonização dos transportes, à incorporação de fontes de energia renovável e à criação de novos produtos e processos produtivos de baixo teor de carbono, por forma a melhorar o desempenho energético e ambiental das empresas.
Importa fazer uma avaliação rigorosa da tributação criada, que garanta que a sua cobrança se continua a justificar e que cumpre os objetivos pretendidos, sob pena dos tributos criados se tornaram meramente em novas fontes de receita.
Finalmente, pode verificar-se um atraso na execução de fundos europeus. Reformas estruturais (nomeadamente fiscais) constituem, por vezes, contrapartidas para a libertação de fundos europeus, como é o caso do PRR. Um governo de gestão não tem mandato político pleno para negociar ou implementar reformas exigidas por Bruxelas”
Houve uma falta de vontade política para a reforma legislativa da legislação processual tributária até aqui?
A legislação processual tributária tem sido alvo de alterações pontuais ao longo dos anos, de que são exemplo as alterações introduzidas ao Código do Procedimento e Processo Tributário, no final do ano passado, para regulamentar das citações e notificações eletrónicas, ao permitir-se a utilização da Plataforma Eletrónica de Registo e Transmissão de Ofícios do Banco de Portugal.
Apesar das alterações introduzidas aos mecanismos processuais no âmbito da jurisdição tributária pela Lei n.º 118/2019, de 17 de setembro, nomeadamente a nível dos recursos, e do reforço das garantias dos contribuintes e de simplificação processual promovidos pela Lei n.º 7/2021 de 26 de fevereiro não se pode falar, em nenhum dos casos, numa verdadeira reforma.
Como anteriormente referimos, em julho do ano passado, foi constituída uma Comissão para a Revisão do Processo e Procedimento Tributário e das Garantias dos Contribuintes com o objetivo declarado de promover a celeridade, a simplicidade e a eficácia dos processo e procedimentos tributários, pelo que existia uma declarada vontade política de reformar a legislação processual tributária. Sem prejuízo do importante impacto que futuras alterações legislativas possam trazer, a justiça tributária necessita sobretudo de um reforço dos meios humanos e materiais, quer na fase do procedimento quer do processo tributário.
Quais são os tipos mais comuns de litígios entre contribuintes e a AT em Portugal?
Os litígios mais comuns no contencioso tributário são os processos de impugnação seguidos dos embargos/oposição, dos recursos de contraordenação e, finalmente, das ações administrativas. Da nossa experiência, diríamos que os processos relativos ao IRC, IRS e ao IVA serão, provavelmente, os mais comuns.
No que concerne a private clients/high net worth individuals, os litígios prendem-se com diferentes interpretações de certas normas fiscais, seja devido à sua redação ambígua, seja porque tal redação é omissa quanto a certos aspetos importantes para a sua aplicabilidade. Como exemplo deste segundo cenário, discute-se, neste momento, sobretudo na arbitragem tributária com vencimento a favor dos contribuintes, a interpretação a conferir ao artigo 5.º, n.º 3 do Código do IRS, particularmente no que se refere à tributação da componente de rendimento nas retiradas efetuadas dos comummente designados por seguros unit-linked.
Os custos de advogados e processos judiciais são um entrave para os contribuintes contestarem decisões da AT?
Os custos com advogados e com as custas dos processos judiciais são um entrave à contestação das decisões da Administração Tributária.
A apresentação de uma reclamação graciosa ou recurso hierárquico não está sujeito a taxas e podem ser subscritos pelos próprios sujeitos passivos. Sucede que, na maior parte dos casos, os contribuintes não dispõem dos conhecimentos necessários para exercerem os seus direitos de forma eficaz, pelo que havendo meios é sempre aconselhável recorrer ao apoio de um especialista. Por sua vez, nos tribunais tributários são exigidas custas, é obrigatória a constituição de mandatário e os processos demoram vários anos até que seja proferida uma decisão final. Deste modo, os identificados custos, associados à dedução de meios de defesa contra as decisões da Administração Tributária, constituem um forte desincentivo ao seu exercício efetivo.
Quais as taxas de sucesso dos contribuintes em litígios contra a AT (tendência)?
De acordo com o Relatório Anual do Funcionamento da Arbitragem Tributária, para 2023, as decisões a favor dos contribuintes foram de cerca de 63% nos tribunais arbitrais, mas se atendermos ao valor económico em discussão, desce para cerca de 50%. Este último valor é mais próximo dos números revelados num Relatório anterior, do CIDEFF, quanto à taxa de sucesso nos tribunais tributários. Deste Relatório, resultou que nos tribunais tributários os contribuintes que recorrem das decisões da Autoridade Tributária ganham, em média, 45% das ações.
Sucede que, na maior parte dos casos, os contribuintes não dispõem dos conhecimentos necessários para exercerem os seus direitos de forma eficaz, pelo que havendo meios é sempre aconselhável recorrer ao apoio de um especialista. Por sua vez, nos tribunais tributários são exigidas custas, é obrigatória a constituição de mandatário e os processos demoram vários anos até que seja proferida uma decisão final”
Como é garantido o princípio da igualdade entre grandes empresas e pequenos contribuintes?
Excelente pergunta — e bastante pertinente –, sobretudo num sistema fiscal complexo como o português, onde muitas vezes se discute se há um tratamento equitativo entre grandes empresas e pequenos contribuintes (particulares e PME).
O ponto de partida para esta discussão encontra-se na Constituição da República Portuguesa, nomeadamente no artigo 13.º que consagra o Princípio da Igualdade, segundo o qual “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
Neste contexto, o artigo 104.º da Lei Fundamental vem, ainda, determinar que a tributação deve ser efetuada de acordo com o Princípio da Capacidade Contributiva, isto é, os impostos devem atender à capacidade económica real de cada contribuinte.
Estes princípios carecem de instrumentos legais e administrativos que os executem. Entre tais instrumentos, encontra-se, desde logo, a própria legislação fiscal – e, em particular, a Lei Geral Tributária – que impede discriminações arbitrárias entre contribuintes de diferentes dimensões, encontrando-se a Autoridade Tributária e Aduaneira adstrita a atuar de acordo com princípios de imparcialidade e igualdade de tratamento.
Adicionalmente, existem, atualmente, sistemas de análise de dados e cruzamento automático de informação, que dificultam o tratamento desigual.
Na prática, e não obstante a existência de tais mecanismos, existem alguns desafios. Tendencialmente, as grandes empresas dispõem de mais recursos técnicos e jurídicos, pelo que o acesso à justiça fiscal pode revelar-se desigual, na medida em que os custos e complexidade dos tribunais tributários e da arbitragem tributária podem penalizar contribuintes com menos capacidade financeira.
Ainda assim, estão em curso tentativas de reforço da equidade quer a nível nacional, quer internacional. Como exemplos, refiram-se as iniciativas de transparência fiscal internacional (como a DAC6 ou o BEPS) e, em Portugal, as medidas de automatização, tais como o IRS automático, que facilitam procedimentos, sobretudo para pequenos contribuintes.
O Portal das Finanças e a submissão eletrónica de recursos melhoraram o acesso à justiça fiscal?
Genericamente falando, o Portal das Finanças e as suas múltiplas valências trouxeram melhorias concretas no acesso aos serviços da AT e à justiça fiscal. Abordando especificamente o tema da submissão eletrónica de meios de reação, a sua submissão via Portal contribui para incrementar a eficiência, conveniência e abrangência destes mecanismos.
De facto, existe uma redução de barreiras burocráticas e geográficas, dado que os contribuintes podem apresentar reclamações graciosas, impugnações, pedidos de revisão ou de arbitragem tributária online, sem deslocações aos serviços, num sistema acessível 24h/dia.
Para além disso, existe uma desmaterialização dos processos, o que deveria promover uma maior eficiência e transparência processual, facilitando a monitorização do estado do processo. No entanto, ainda subsistem algumas limitações para os contribuintes mais vulneráveis ou com menor literacia digital, o que desafia a plena realização do princípio da igualdade no acesso à justiça tributária. Para além disso, a linguagem do Portal pode ser vista como de difícil compreensão para quem não seja especialista em fiscalidade.
Apesar da automatização, há atrasos na análise de pedidos, especialmente nos serviços de atendimento digital (e-balcão) e, por vezes, parece que existe um claro objetivo, por parte dos funcionários da AT, de encerramento de processos após uma primeira resposta preliminar ao contribuinte – talvez para cumprimento de objetivos – quando, na perspetiva deste, o processo não se encontra resolvido.
Tendencialmente, as grandes empresas dispõem de mais recursos técnicos e jurídicos, pelo que o acesso à justiça fiscal pode revelar-se desigual, na medida em que os custos e complexidade dos tribunais tributários e da arbitragem tributária podem penalizar contribuintes com menos capacidade financeira”
A automatização de liquidações (como o e-fatura) reduz erros ou aumenta litígios?
A resposta é ambivalente, porque a automatização das liquidações tem efeitos claramente positivos na redução de erros materiais, mas também introduz potencial para novos litígios, sobretudo ligados a erros de comunicação, interpretações legais automáticas e ausência de supervisão por técnicos da AT.
Ao automatizar o apuramento de impostos com base em dados eletrónicos (assim como o e-fatura, que indica as despesas dedutíveis), reduz-se o risco de erro manual por parte do contribuinte ou do técnico da AT que efetua a análise dos dados.
O sistema cruza, automaticamente, dados de diferentes fontes (como seja o ficheiro SAF-T para reporte das faturas emitidas, declarações de rendimentos de IRS e IRC, declarações mensais de remunerações), reduzindo discrepâncias, assim como deteta omissões, duplicações ou inconsistências com maior rapidez.
Por exemplo, o IRS automático permite gerar liquidações em poucos segundos, com base em dados certificados. Contudo, os automatismos geram – eles próprios – problemas e novos tipos de litígios.
Podem existir lapsos ou erros de terceiros que se repercutem no contribuinte. Se um fornecedor submete uma fatura com um lapso num NIF ou na natureza da despesa, o sistema pode automaticamente recusar deduções a um contribuinte. Ora, estes erros não são imediatamente detetáveis e podem dar origem a contencioso.
Por outro lado, ao longo dos anos, temo-nos deparado com situações de interpretações da legislação fiscal feitas de forma “automática” e rígida porque efetuadas por um algoritmo. Os algoritmos do sistema da AT foram criados com base em determinados pressupostos, sem atender a exceções ou contextos específicos.
Um exemplo com que nos debatemos, durante muitos anos, prendeu-se com uma regra muito específica sobre o tratamento fiscal de mais-valias mobiliárias, existente na Convenção de Dupla Tributação (CDT), celebrada entre Portugal e a Suécia (e, entretanto, denunciada por este último Estado, já não se encontrando em vigor). Esta norma constituía uma exceção à regra geral das CDTs nesta matéria e o algoritmo fiscal não a reconhecia.
Consequentemente, durante mais de 10 anos, foram emitidas liquidações de IRS erradas, em que não foram reconhecidas isenções a contribuintes com o estatuto de Residente Não–Habitual. Embora a referida CDT já não se encontre em vigor e, portanto, já não se suscitem novas questões para o futuro, o contencioso referente a anos passados continua, em muitos casos, por resolver. Esta situação em particular – e outras semelhantes – geram mais contencioso que exige intervenção humana posterior.
A AT usa inteligência artificial para análise de processos. Isso pode prejudicar o contribuinte?
Prevê-se que a Autoridade Tributária implemente ferramentas de inteligência artificial (IA) para modernizar e tornar mais eficiente a sua atuação.
De acordo com a anterior secretária de Estado dos Assuntos Fiscais, a Dr.ª Cláudia Reis Duarte, pretende-se, com esta iniciativa, melhorar a seleção dos contribuintes e das situações que serão alvo de inspeção tributária, passando a ter por base critérios de risco mais precisos e fundamentados, ao invés de serem realizadas de forma aleatória. No entanto, a implementação da IA na fiscalização tributária pode, de facto, suscitar preocupações relacionadas com a transparência, a proporcionalidade e o respeito pelos direitos dos contribuintes.
Adicionalmente, as preocupações, que acima manifestámos, quanto aos automatismos existentes podem, igualmente, ser transpostas para o tema da IA.
Há cláusulas abusivas na legislação tributária que geram insegurança jurídica?
A legislação tributária portuguesa contém, de facto, cláusulas que, devido à sua ambiguidade e flexibilidade, podem ser consideradas abusivas ou geradoras de insegurança jurídica. Entre as principais causas, encontram-se: conceitos vagos e subjetivos; excesso de formalismos e obrigações complexas e falta de clareza nos regimes transitórios. Esses fatores podem criar dúvidas interpretativas que resultam em contencioso tributário.
Aliás, a legislação tributária contém, desde logo, no seu artigo 38.º da LGT, uma cláusula geral antiabuso que prevê que a AT possa qualificar como abusivas certas operações que envolvam uma “simulação” ou “fraude”, mas sem uma definição precisa de quais são os limites da legalidade. Este tipo de cláusula leva à insegurança jurídica, pois os contribuintes não têm uma linha clara entre o que é permitido e o que é considerado abuso.
Paralelamente, a legislação fiscal em Portugal é objeto de alterações legislativas frequentes. Inclusivamente, já existiram, no passado, alterações com carácter retroativo ou retrospetivo (como a revisão de benefícios fiscais ou a criação de novas obrigações), nem sempre com a devida proteção para o contribuinte, que fica sujeito a incertezas sobre os efeitos retroativos dessas mudanças.
Que mudanças na lei seriam necessárias para tornar o sistema mais justo?
As obrigações fiscais, especialmente para pequenos contribuintes e PMEs, podem ser extremamente complexas e difíceis de entender. Uma reforma que simplifique as declarações fiscais e crie procedimentos mais intuitivos poderia melhorar a equidade do sistema. Um exemplo, seria fundir obrigações fiscais. A SÉRVULO levou a cabo um estudo, em 2019, sobre as obrigações fiscais do setor da distribuição, em conjunto com a APED – Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição, que teve em vista sensibilizar o legislador para esta situação e propor medidas de simplificação. Uma das medidas, entre muitas, foi a criação de uma “conta corrente fiscal” entre os contribuintes e o Estado, a qual veio, em 2022, a obter acolhimento por parte do legislador e a ser implementada.
Não obstante, importa salientar que, em muitos casos, a legislação existente já acautela estes temas; existem, porém, normas que carecem de ser aplicadas com maior rigor ou clareza e procedimentos que poderão ser adotados com o objetivo de apoiar os contribuintes no cumprimento das suas obrigações fiscais e na sua tomada de decisão.
O que poderiam ser exemplos de tais normas que necessitam de maior rigor na sua aplicação ou de procedimentos a melhorar?
Parece-nos fundamental garantir maior transparência e apoio ao contribuinte, promovendo a educação fiscal e a clareza nas decisões da Autoridade Tributária (AT).
A AT deve ser mais transparente nas suas decisões, publicando orientações claras sobre a interpretação da legislação, mas agindo de forma preventivamente e não reativa.
Sempre que surge um novo regime, suscitam-se dúvidas sobre a sua interpretação. Em regra, A AT só se manifesta após os regimes se encontrarem em vigor há alguns anos e ser forçada a analisá-los. Nesse momento, muitos contribuintes podem já ter agido de boa-fé, mas com base em pressupostos erróneos que poderão despoletar eventuais liquidações adicionais de imposto.
Nesta medida, foi com bons olhos que vimos a publicação de extensas indicações sobre o novo Incentivo Fiscal à Investigação Científica e Desenvolvimento (IFICI). Ainda que numa fase embrionária do mesmo, já muitas questões e dúvidas se suscitaram no decurso do primeiro ano da sua vigência.
Nesta senda, para além de eventuais alterações legislativas, seria importante que a AT adotasse uma postura de apoio ao contribuinte. Muitos investidores procuram clareza na hora de investir em Portugal e procedimentos rígidos por parte da AT têm desmotivado tais investimentos. Por exemplo, um sujeito passivo pode solicitar que a AT emita uma informação vinculativa relativamente a uma situação concreta – antes que a mesma ocorra – que seja importante para si, ficando, assim, com certeza sobre como deve agir.
Um pedido de informação vinculativa pode ser apresentado por qualquer sujeito passivo, por outros interessados ou seus representantes legais. Ora, a nossa experiência, desde há 3/4 anos, diz-nos que um investidor que ainda não esteja estabelecido em Portugal – portanto, uma entidade não residente – verá ser-lhe negado tal pedido de informação com fundamento na falta de legitimidade para o efeito. Falta de legitimidade baseada apenas no facto de que tal investidor ainda não criou uma entidade jurídica em Portugal.
Este tipo de procedimento desincentiva o investimento em Portugal, pois a ausência de clareza – e este nítido afastamento do contribuinte numa fase tão inicial da sua instalação no País – preocupa investidores dada a incerteza do que podem esperar. Em alguns casos, acabam por optar por não avançar com os planos de investimento para Portugal.
Portugal deveria adotar um Tribunal Tributário independente, como em outros países?
Em Portugal, a independência e especialização dos tribunais tributários já está garantida. Compete, especificamente, aos tribunais tributários conhecer das ações de impugnação de atos de liquidação e das outras ações em que estejam em causa questões fiscais. Foram, também, já criados juízos tributários de competência especializada, nomeadamente, para conhecer de processos relativos a litígios emergentes de execuções fiscais e de contraordenações tributárias.
Mais do que uma alteração no desenho de toda a estrutura da jurisdição administrativa e fiscal, é necessário continuar a aposta no reforço dos meios humanos e materiais. A aposta no aumento do número de juízes, que há muito se exigia, está já a produzir resultados, o que desejavelmente irá conduzir a uma redução significativa dos processos pendentes e do período de tempo entre a entrada da ação e o trânsito em julgado da decisão.
Mais do que uma alteração no desenho de toda a estrutura da jurisdição administrativa e fiscal, é necessário continuar a aposta no reforço dos meios humanos e materiais. A aposta no aumento do número de juízes, que há muito se exigia, está já a produzir resultados, o que desejavelmente irá conduzir a uma redução significativa dos processos pendentes e do período de tempo entre a entrada da ação e o trânsito em julgado da decisão”
O funcionamento célere e eficiente da justiça tributária arbitral não provocou uma falta de investimento na justiça tributária estadual?
Os tribunais arbitrais vieram constituir um meio alternativo de resolução jurisdicional de conflitos no domínio fiscal. Não associamos o sucesso da arbitragem tributária a um movimento simultâneo de menor investimento nos tribunais tributários.
Os problemas que se faziam sentir nos tribunais tributários são anteriores à introdução no ordenamento jurídico português da arbitragem em matéria tributária. A arbitragem contribuiu para a redução de pendências nos tribunais tributários, desde logo, porque foram menos as ações que deram entrada nestes tribunais.
Nos processos de impugnação, as várias fases do processo arbitral não são muito diferentes das fases de um processo de impugnação judicial que corra termos nos tribunais tributários. O que revela que, dotando-se os tribunais tributários dos necessários recursos, também nesta jurisdição se poderá alcançar a desejada celeridade processual.
Não será realista considerar que os tribunais tributários conseguirão atingir o tempo médio de decisão de quatro meses e meio, que tem caracterizado os processos arbitrais. Não se pode deixar de ter presente que, em 2022, a duração média dos processos fiscais de primeira instância era de cerca de 47 meses, entretanto reduzida para 40 meses, em 2024. Neste contexto, e com as medidas que têm vindo a ser aplicadas, se for possível reduzir o tempo médio de decisão para emissão de uma decisão em primeira instância para um período entre os 12 e os 18 meses, será já uma verdadeira revolução.
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