Ex-ministra do Trabalho defende, repetidamente, que não se pode voltar atrás na Agenda do Trabalho Digno. Mas Ana Mendes Godinho admite que há "um risco brutal" de "cedência à ideologia ultraliberal".
“Um ano perdido em relação aos trabalhadores.” É assim que a ex-ministra Ana Mendes Godinho descreve os últimos 11 meses do Governo de Luís Montenegro, dizendo que não só houve recuos nalguns pontos (como no combate à precariedade) como ficaram por concretizar medidas que estavam previstas na Agenda do Trabalho Digno.
Em entrevista ao ECO, a ex-governante avisa que há “um risco brutal de cedência à ideologia ultraliberal no sentido de reversão de direitos conquistados pelos trabalhadores“, e salienta que, às vezes, “conquistas que demoraram décadas a conseguir podem ser deitadas abaixo” com relativa celeridade.
Esta é uma de duas partes da entrevista de Ana Mendes Godinho ao ECO. Na outra parte (que pode ler aqui), reflete sobre os dois anos da Agenda do Trabalho Digno, apela a um aumento permanente dos salários e deixa críticas à atuação do Governo durante o “apagão” energético.
Às vezes, conquistas que demoraram décadas a conseguir podem ser deitadas abaixo por medidas ultraliberais que não acreditam que é o trabalho que constrói a sociedade e impulsiona a economia.
Como é que viu o facto de o atual Governo ter deixado, logo no seu programa, a intenção de revisitar a Agenda do Trabalho Digno?
É um sinal de alarme para todos nós. As conquistas que conseguimos com a Agenda do Trabalho Digno resultaram muito até da legitimidade daquela que foi a evidência durante a pandemia, da quantidade de situações que estavam a descoberto, da quantidade de situações que precisaram de uma resposta diferenciada porque as pessoas estavam fora do sistema de proteção social. Não nos podemos esquecer e não podemos deixar que essa reversão aconteça. Acho que há um risco brutal de cedência à ideologia ultraliberal no sentido de reversão de direitos conquistados pelos trabalhadores. A verdade é que, às vezes, conquistas que demoraram décadas a conseguir podem ser deitadas abaixo por medidas ultraliberais que não acreditam que é o trabalho que constrói a sociedade e impulsiona a economia.
Várias medidas da Agenda do Trabalho Digno ficaram por regular. Este Governo prestou um mau serviço aos trabalhadores no último ano?
O que senti foi uma grande inatividade relativamente à implementação da Agenda do Trabalho Digno. Também vejo com muita apreensão o facto de não terem sido desencadeadas mais ações de cruzamento de dados, que permitem a deteção fácil de situações de precariedade ilegais. Considero que foi um ano perdido em relação aos trabalhadores, porque não só se andou atrás em algumas das medidas como não se andou em frente naquelas que precisam de concretização.
Uma das medidas da Agenda do Trabalho Digno que se tornou mais polémica foi o travão ao outsourcing após despedimentos coletivos. Quer explicar esta medida? Os empresários insistem que limita a liberdade de iniciativa.
Essa foi uma das medidas importantes para combater a precariedade. O grande objetivo desta medida foi garantir que não havia mecanismos de expedientes legais para contornar uma relação laboral normal de contratação para atividades essenciais de uma empresa. É uma medida antiabuso.
Mas não é sensível ao argumento de que faz parte da liberdade da empresa escolher como…
Há princípios laborais que não estão na liberdade das partes negociar. Há outros princípios constitucionais que se sobrepõem a essa liberdade contratual, que vêm da Constituição, nomeadamente quanto ao princípio do contrato de trabalho, que deve ser um contrato que não deve ser precário. Deve ser uma relação permanente. É um valor essencial na forma de organização da sociedade.

Apesar desses argumentos, a Provedora de Justiça enviou esta norma para o Tribunal Constitucional. Isso não é um sinal de que algo não correu assim tão bem?
Acho estranhíssimo que a Provedora de Justiça só tenha suscitado questões relativamente a princípios relativamente a uma das partes, aos empregadores. Não vi nunca suscitar nenhuma questão que tivesse que ver com as regras que protegem os trabalhadores. Acho isso estranho.
Portanto, está tranquila e confiante quanto à futura decisão do Tribunal Constitucional.
Estou tranquilíssima, no sentido de que é uma norma que consagra exatamente um princípio constitucional. Está na Constituição a valorização do trabalho como um pilar essencial da sociedade.
A Agenda do Trabalho Digno foi uma pedra no charco quanto ao reconhecimento de que os trabalhadores em plataformas digitais são trabalhadores como quaisquer outros.
Outra das medidas da Agenda do Trabalho diz respeito às regras do trabalho nas plataformas digitais.
A Agenda do Trabalho Digno foi uma pedra no charco quanto ao reconhecimento de que os trabalhadores em plataformas digitais são trabalhadores como quaisquer outros, e não são, nem é admissível que se considerem, como novas formas de escravatura nos tempos em que vivemos.
Mas não acha que Portugal foi precipitado na regulação do trabalho nas plataformas?
Pelo contrário, acho que fomos mesmo pioneiros. E com muito orgulho mostrámos ao mundo que estávamos no caminho certo da proteção dos trabalhadores, independente da forma pela qual eles prestem o trabalho.
Há dezenas de decisões de tribunais que não reconhecem um contrato entre as plataformas e os estafetas. Aliás, há sentenças que dizem que esta norma está a entupir os tribunais. Não acha que a norma precisa, pelo menos, de ser ajustada?
Naturalmente… Acho que qualquer alteração de fundo precisa de ser acompanhada e precisa de ser ajustada. Esse é mesmo o caminho: ajustar para clarificar, se houver dúvidas.
Mas o princípio base da norma acha que continua adequado à realidade?
Não só defendo como em todo o mundo essa tem sido a tendência dos tribunais. Já há sentenças no mundo inteiro a reconhecer estes trabalhadores como trabalhadores. Se for preciso afinar a lei, acho que é esse o caminho, para que não haja margem para dúvidas de que os trabalhadores em plataformas digitais são trabalhadores como qualquer outro. Aliás, foi nesse sentido que foi a diretiva europeia. Portugal foi precursor neste entendimento de que, independentemente da forma como a pessoa está a prestar o seu trabalho, não é isso que desclassifica a relação laboral.

Não devíamos ter esperado pela diretiva europeia para regular o trabalho nas plataformas digitais em Portugal?
Portugal participou ativamente na construção da diretiva. Fomos, aliás, desbloqueadores para conseguir que a diretiva fosse aprovada, porque considerámos que ela era mesmo essencial, porque é uma realidade que tem que ser regulada também a nível europeu. Não basta Portugal regular o trabalho nas plataformas, é essencial que seja regulado a nível europeu. Foi isso que conseguimos.
Apesar da Agenda do Trabalho Digno, o desemprego jovem é mais do triplo do que o desemprego global. O que é que ficou por fazer? O que faria neste momento se ainda estivesse no Governo?
Tal como o combate à precariedade com foco resulta, também acredito que o desemprego jovem precisa de mais foco para que consigamos atacar de uma forma mais evidente.
Quer concretizar?
Acho que é fundamental, e era uma das coisas que tínhamos assumido na revisão que fizemos do acordo de Concertação Social, uma medida que permita uma maior ligação entre os jovens e o mundo empresarial e uma entrada no mercado de trabalho mais rápida e mais fácil. Essa medida, infelizmente, não foi implementada, mas acho que podia fazer aqui verdadeiramente a diferença. É um dos programas que espero agora implementar. Aliás, agora, na minha candidatura à Câmara de Sintra, estou a trabalhar muito no programa, no sentido de conseguir ao nível do concelho implementar essa medida, já que não é feita a nível nacional.
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“Há um risco brutal de cedência à ideologia ultraliberal na reversão de direitos dos trabalhadores”
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