O sócio da SRS, José Moreira da Silva, esteve à conversa com a Advocatus e disse aceitar a ideia da multidisciplinaridade que está a ser preparada pelo Governo.
O presidente da Associação das Sociedades de Advogados de Portugal (ASAP) e também sócio da SRS, José Luís Moreira da Silva, dá uma entrevista à Advocatus onde defende que os advogados não podem ser diabolizados em função dos clientes que representam, aceita a ideia da multidisciplinaridade que está a ser preparada pelo Governo, à semelhança do que é feito na Europa, e refuta o regime de “transparência fiscal” a que as sociedades estão sujeitas, sublinhando que esta forma de tributação é uma violação do princípio da igualdade.
A vossa ASAP reúne nos órgãos sociais advogados das maiores, mas também das médias sociedades de advogados. Ainda existe um fosso entre essas duas realidades?
A ASAP reúne como associadas, sociedades de todas as dimensões, desde sociedades com mais de 200 advogados, até às de menor dimensão, de tipo familiar, sendo que todos estes tipos de sociedades estão devidamente representados nos órgãos sociais da ASAP. Incluindo também sociedades portuguesas e de origem fora de Portugal. Bem como do Norte, do Centro e Sul e Regiões Autónomas.
Temos a vontade de ter uma associação verdadeiramente representativa da realidade das sociedades de advogados de Portugal, o que acho que conseguimos. Essa ampla participação é importante para podermos falar em nome das sociedades de advogados, como é nossa ambição e a razão da nossa existência.
Deixe-me dizer-lhe que não existe qualquer fosso entre sociedades de dimensão diversa, o que existe é uma realidade diferente, com espaço para todas e com total liberdade para cada uma se organizar como entender e prestar os seus serviços da melhor maneira que considere. Vão sempre existir grandes sociedades a par de outras de menor dimensão, havendo mercado para todas essas realidades.
E ainda faz sentido falar de uma advocacia do Norte e uma de Lisboa, em contexto sociedades de advogados?
Entendo que não. Cada vez mais temos sociedades de advogados de grande dimensão com sede no Norte, dotadas de estabelecimentos em Lisboa, como o seu contrário. Temos também sociedades com alguma dimensão com sede nas Regiões Autónomas, pelo que a origem geográfica hoje já não é uma limitação, até pelos meios tecnológicos existentes.
De que forma “usa” a sua experiência como sócio da SRS na ASAP?
Acho importante o Presidente do Conselho Diretor da ASAP deter experiência enquanto sócio de uma sociedade de advogados, pois isso permite-lhe saber do que está a falar e bem compreender os problemas que as sociedades de advogados enfrentam. Entendo que essa minha experiência pode ser uma mais valia ao serviço da ASAP, com bons resultados, espero.
Como se prepara um jovem advogado para a advocacia do futuro?
A advocacia em Portugal está bem diferente, para muito melhor, do meu tempo de início de carreira, há mais de 30 anos. Nessa altura as sociedades de advogados eram poucas e estavam apenas a dar os seus primeiros passos em Portugal, não assumindo a dimensão que hoje possuem, nem em termos de número de sociedades, nem em termos de número de advogados. Hoje são uma realidade incontornável, que veio acrescentar um serviço especializado e diferenciado aos seus clientes.
Com a cada vez maior profusão de leis e regulamentos é muito difícil a prática da advocacia individual, tal como eu a praticava no meu início de carreira, pois os clientes, designadamente os internacionais e as grandes empresas portuguesas, exigem um tipo de serviço que só as sociedades de advogados conseguem oferecer.
Claro que há sempre lugar ainda para a advocacia em prática individual e essa é uma opção que os jovens advogados têm de fazer, mas entendo que a escolha pela integração numa sociedade de advogados lhes permite uma carreira de futuro e com horizontes infinitos, capaz de lhes proporcionar uma valorização profissional que não conseguem obter de outra forma.
Nas nossas associadas a formação contínua e o desenvolvimento de um plano de carreira é algo muito levado a sério e é apelativo para jovens advogados em início de carreira.
Como se faz este “esclarecimento do trabalho feito pelas sociedades de advogados junto da opinião pública, destruindo ideias feitas e preconceituosas”?
Faz-se, por exemplo, também com estas entrevistas. Mas é um processo que vai demorar, como todos os que envolvem esclarecer e alterar ideias preconcebidas, mas que reputamos essencial.
Eu próprio e todos os meus colegas nos órgãos sociais da ASAP estamos totalmente ao dispor dos meios de comunicação social para esclarecer qualquer dúvida que possa surgir sobre o funcionamento das sociedades de advogados e sobre as suas atividades em geral.
Sentimos que é necessário prestar os devidos esclarecimentos, até por a nossa atividade ser complexa e muito técnica e poder não ser devidamente apreendida pelos jornalistas e pela população em geral, gerando muitas vezes dúvidas e erros de perceção.
Estamos cá para esclarecer e tentar tirar todos os mal-entendidos.
Que ideias preconceituosas são essas?
Com toda a frontalidade, passa-se muitas vezes a ideia que as sociedades de advogados encobrem negócios ruinosos para o Estado ou defendem criminosos que não deviam ser defendidos. Está também difundida na opinião pública a visão errada que as sociedades de advogados desempenham uma atividade apenas de lobistas de negócios.
É manifestamente uma ideia falsa, perniciosa e errada!
Mas não vale a pena bater contra a parede ou assobiando para o ar, antes o que tem de ser feito, na nossa opinião, é explicar pedagogicamente a nossa atividade de forma a que todos a possam entender e estar sempre disponíveis para o fazer em todo o lugar.
As sociedades de advogados são constituídas por advogados, inscritos na Ordem dos Advogados e sujeitos às regras estritas de deontologia profissional. Praticam atos próprios dos advogados e são um elemento essencial para o acesso ao Direito e à Justiça. Como é referido no artigo 20.º da Constituição, todos têm direito à informação e consulta jurídicas, ao patrocínio judiciário e a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade. É uma garantia essencial dos direitos fundamentais reconhecidos pelo nosso Estado de Direito. Sem advogados, também em organização de sociedades, não há Justiça e não há Estado de Direito.
Um discurso de ódio, como se tem ouvido, em populismos estéreis, igualando os advogados aos seus clientes, é a denegação total do conceito de Justiça e de Estado de Direito, não podendo ser defendido. Toda a pessoa tem direito a ser defendido por um advogado, todos sem exceção, não podendo haver condenações fora do Tribunal ou na opinião pública. Os advogados, todos, incluindo os organizados em sociedades, têm também essa missão de serviço público, de defender intransigentemente a Justiça e o Estado de Direito, sem exceções.
E só um discurso populista e demagogo pode pretender que os advogados não possam assessorar juridicamente negócios, sejam eles quais forem, pois esse é um típico ato próprio de advogados, o de negociar e redigir contratos, como o é o de aconselhamento jurídico, tal como o enuncia a Lei 49/2004.
Não podemos ficar indiferentes aos discursos que tentam diabolizar as sociedades de advogados apenas por elas exercerem as suas típicas funções, constantes dos atos próprios de advogados, sempre em nome e em defesa dos seus Clientes, como o nosso Estatuto nos obriga.
Mas sabemos que isto tem de ser explicado e desmistificado e também sabemos que o esclarecimento demora tempo. Estamos cá para isso.
Quais são os grandes temas que as sociedades de advogados necessitam de ver discutidos? O que está na vossa agenda como prioridades?
Temos alguns assuntos prementes que estão em discussão há já algum tempo e que urge encontrar rapidamente uma solução.
Um deles é o estatuto fiscal das sociedades de advogados. Ainda típico de uma realidade hoje totalmente ultrapassada, as sociedades de advogados são as únicas sociedades de profissionais, com os solicitadores, a quem ainda não é permitido serem tributadas nos termos do IRC, antes estão adstritas ao que a lei apelida, mal, de transparência fiscal. O conceito significa que os rendimentos da sociedade não são tributados na sociedade, mas apenas nos seus sócios individualmente. Isto significa que as sociedades de advogados não são efetivamente sociedades, mas ainda junções informais de advogados para exercerem em conjunto a sua atividade, contra o que sucede para todas as restantes profissões, como os engenheiros ou médicos, por exemplo.
Está em causa um regime do passado que não reconhece a enorme evolução que sucedeu na advocacia em Portugal, acompanhando o que se faz lá fora.
Estamos ainda a falar de uma frontal violação do princípio da igualdade, pois não só este tratamento fiscal não tem igual em outras sociedades de profissionais, como já nem sequer corresponde ao regime aplicável a outras sociedades de advogados que sejam filiais de sociedades de advogados estrangeiras a exercer em Portugal, a quem se aplica o regime do país de origem, que não é o de transparência fiscal. A uma sociedade de advogados inglesa, norte-americana ou espanhola a exercer em Portugal através de uma sua filial, não se aplica o mesmo regime que se aplica a uma sociedade de advogados portuguesa. Esta flagrante desigualdade não pode continuar.
Este regime arcaico prejudica enormemente as sociedades de advogados portuguesas e cria uma desvantagem concorrencial gritante. Prejudica a criação de emprego – as sociedades portuguesas são responsáveis por mais de 5 mil empregos diretos e muitos mais milhares indiretos – prejudica o desenvolvimento de novas tecnologias e a exportação de serviços. É hoje muito difícil a uma sociedade de advogados portuguesa concorrer como igual perante uma sociedade estrangeira em mercados potenciais, como os de países africanos de língua portuguesa, também por causa desta desvantagem fiscal, com as ineficiências financeiras que acarreta.
Outro importante tema que temos como central do nosso mandato é a inovação tecnológica na advocacia, o que chamamos de advocacia 4.0. Tínhamos tudo programado para ser o centro das nossas discussões no Encontro da ASAP que teve de ser adiado para 2021, por causa da COVID. É um debate fundamental para o futuro da advocacia em Portugal e que tem já nalgumas das nossas associadas projetos pioneiros muito relevantes, que merecem ser conhecidos.
O que mudou na realidade da prática societária, face há uma década?
Mudou muito a realidade. Vai ser muito interessante conhecer os resultados do inquérito que estamos a realizar junto das associadas, em conjunto com a Católica, que vai atualizar o último inquérito que fizemos em 2013.
Desde logo o mais visível é o aumento de dimensão das sociedades de advogados. Hoje são já várias as que têm mais de 100 advogados e existem sociedades com mais de 300.
Mas outras mudanças e muito mais relevantes sucederam. A gestão tornou-se mais profissional, com advogados a dedicarem-se quase em exclusivo a essa função, coadjuvados por gestores profissionais e por um conjunto cada vez mais alargado de business services. Estes hoje, vão desde financeiros, marketing, recursos humanos e IT, até logística e business knowledge e development, sendo que a função de IT se tem vindo a expandir para a inteligência artificial.
Ainda existem muitas sociedades que se dedicam ao contencioso e societário apenas, como há outras que escolheram práticas especializadas, como financeiro, urbanismo ou PI. Mas cada vez mais temos sociedades multipractice, que possuem todas ou quase todas as especialidades de prática jurídica no seu interior, sendo esta uma das razões para o seu crescimento.
Um advogado, desde o estágio, tem enormes capacidades de crescimento profissional e de desenvolvimento, com planos de carreira estruturados, dentro das sociedades, pois estas funcionam cada vez mais como uma empresa, embora especial, por manterem sempre a relação entre advogados, isto é, entre profissionais liberais, com autonomia técnica e uma especial deontologia e funções também de serviço público da Justiça.
Também tem aumentado o investimento permanente em responsabilidade social e uma preocupação crescente com o ambiente e o estatuto dos seus colaboradores, para além dos seus Clientes.
O que tem de mudar na prática societária?
As sociedades de advogados portuguesas têm vindo a adaptar-se rapidamente aos novos tempos e ao que de melhor se faz no estrangeiro, até porque a concorrência é global e temos sociedades estrangeiras, com estabelecimentos em Portugal ou não, a prestarem serviços a empresas portuguesas, como temos várias sociedades portuguesas a prestar serviços no estrangeiro, em plena concorrência com outras.
Mas ainda temos um caminho a percorrer, sendo que a maioria das sociedades ainda está longe desse estádio mais desenvolvido, pois isso exige dimensão e capacidade económica, que não está ao alcance ainda de todos.
Por exemplo, os enormes desenvolvimentos que se têm vindo a fazer, internacionalmente, em termos de inteligência artificial aplicada aos serviços da advocacia, não estão ao dispor de todos, pelo elevado valor que acarretam. Nem todas as sociedades podem usufruir do apoio de business services ou de um gestor profissional. Na maior parte dos casos ainda são os sócios que têm de dedicar parte do seu tempo a essas tarefas.
Há assim, ainda um longo caminho a percorrer, mas estamos na direção certa.
Num escritório de maior dimensão, perde-se muito a relação pessoal e mais tradicional entre advogado/cliente?
Não forçosamente. A advocacia depende muito de uma relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, pelo que essa estreita interconexão vai sempre existir. Acho que mesmo em sociedades de maior dimensão esta relação do advogado com o cliente se mantém.
Claro que quando o cliente é uma grande empresa a relação pode tornar-se mais impessoal, pois a relação muitas vezes estabelece-se entre os diretores e o advogado e não com o acionista dono da empresa, mas nunca vai desaparecer. Mesmo quando o Cliente interage com vários advogados dentro da sociedade, há normalmente um sócio responsável que mantém o relacionamento.
Que tipo de contactos pretendem ter junto da Magistratura Judicial e do Ministério Público?
Queremos ser vistos como um interlocutor e um parceiro para discutir temas de Justiça. A relevância que as sociedades de advogados cada vez mais assumem penso que faz delas um parceiro imprescindível que não pode deixar de ser ouvido.
Pretende-se que a ASAP atue sempre que necessário em defesa dos nossos associados, em todos os assuntos sobre a Justiça e se possa afirmar como um parceiro construtivo, contribuindo positivamente e ativamente para a modernização e desenvolvimento da Justiça.
E qual a sua posição face à multidisciplinaridade nas sociedades de advogados?
Este tema tem recebido um debate aceso e vivo, mas nem sempre esclarecido.
A Ordem dos Advogados e o nosso Bastonário têm expressado uma posição totalmente contra, em linha com a posição que sempre defenderam desde a publicação da Diretiva Serviços de 2006. Mas outras vozes na advocacia têm defendido uma perspetiva mais liberal ou pelo menos de não oposição.
O que verificamos é que outros países europeus já permitem sociedades multidisciplinares ou pluridisciplinares, como a Espanha, a França, a Alemanha e o Reino Unido, tendo-o feito há mais de dez anos, mas com todas as cautelas, assegurando a verificação de conflitos de interesses e incompatibilidades, a independência e imparcialidade da profissão, designadamente a exclusividade dos atos próprios dos advogados, bem como os requisitos deontológicos próprios da advocacia.
Mas também vemos hoje, em Portugal, já várias auditoras internacionais a deterem sociedades de advogados, numa evidente situação de multidisciplinaridade encapotada.
Ou seja, hoje a proibição que consta do Estatuto da Ordem de Advogados é apenas uma proibição contra os Advogados, que são assim os únicos que estão proibidos de se estabelecerem em conjunto com outras profissões, numa limitação da concorrência que apenas nos afeta a nós.
O exemplo de outras jurisdições devia ser mais bem apreendido. Não se verificou o nascimento em massa de sociedades multidisciplinares. Pelo contrário, apesar da possibilidade de tal suceder, o que se verificou foi a manutenção em geral da exclusividade de sociedades de advogados, sem a introdução de outras profissões. Não acredito que em Portugal isso também não sucedesse. Ou seja, não acho que se fossem criar muitas sociedades multidisciplinares.
Seja como for – e parece que o atual Governo tem essa perspetiva em mente – deve ser sempre acautelado o que a Diretiva de 2006 já enunciava e o nosso diploma de 2010 que a transpôs refere, que sejam acautelados os conflitos de interesse, as regras deontológicas e os atos próprios do advogado, entre outros. Isso é imprescindível.
De que forma é que a advocacia societária mudou a sua forma de trabalhar com a Covid-19?
A COVID veio demonstrar a força das sociedades de advogados e uma das suas grandes vantagens. Colegas em prática individual sentiram muito mais negativamente a pandemia do que as sociedades em que cada advogado tinha sempre um Colega para o apoiar. Também se mostrou essencial o desenvolvimento tecnológico das sociedades, que permitiu rapidamente e sem problemas o trabalho remoto.
Nas sociedades maiores ainda hoje se mantém algum nível de rotatividade, com alguns Colegas a trabalhar de casa, alternadamente, o que tem feito repensar a necessidade de crescimento de espaços de escritório.
Quais são as principais vantagens de se exercer advocacia societária?
O não estar sozinho no exercício de uma prática difícil e complexa, podendo ter ao seu lado um colega com quem compartilhar as agruras da profissão, podendo prestar um serviço especializado e competente ao cliente.
Num mundo cada vez mais complexo, com uma profusão de legislação e com exigências cada vez maiores de parte dos clientes é quase impossível prestar um bom serviço sem ser em associação de colegas.
Esta parece-me uma das maiores vantagens.
E desvantagens?
Acho que não existem!
A não ser ainda a questão fiscal, que merece um melhor tratamento por parte do Governo.
A Ordem dos Advogados preocupa-se pouco com as sociedades de advogados?
Sentimos que a Ordem se preocupa com as sociedades, tendo neste atual mandato já sido designado o Presidente do Instituto das Sociedades de Advogados.
Mas, claro, que a Ordem não se pode dedicar em exclusivo às sociedades, pois tem de se dedicar também a todas as restantes maneiras de praticar advocacia, desde logo aos advogados que exercem em prática individual.
Essa foi a razão para a fundação da ASAP, para poder haver uma instituição que pudesse dedicar-se em exclusivo às sociedades de advogados e fazer o que a Ordem não pode ou não tem condições para fazer.
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José Moreira da Silva: “Há a ideia que as sociedades encobrem negócios ruinosos para o Estado ou defendem criminosos”
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