Bastonária da Ordem dos Contabilistas alerta que generalidade dos salários terá de ser reprocessada. Pede apoios às empresas a fundo perdido e um teto de faturação mais alto para sócios-gerentes.
A atual escalada do desemprego poderia estar a ser ainda mais pronunciada, não fosse “a esperança” dos empresários no futuro e a sua abertura às várias medidas lançadas pelo Executivo. Quem o diz é a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC). Em entrevista ao ECO, Paula Franco elogia a flexibilidade e simplificação do novo regime do lay-off, mas alerta que a generalidade dos salários terá de ser reprocessada à medida que se forem clarificando algumas dúvidas.
No pacote de apoios preparado pelo Governo em resposta à pandemia, faltaram empréstimos a fundo perdido, aponta a mesma responsável, que se diz preocupada com o endividamento das empresas. Paula Franco aplica o mesmo raciocínio ao diferimento de uma parte das contribuições sociais e impostos, deixando a pergunta: “Quando é que as empresas vão conseguir equilibrar as contas para retomar e investir?”
Já sobre o apoio anunciado para os sócios-gerentes, a bastonária considera que é insuficiente e não cobre a maior parte dos portugueses nessa situação. Isto porque a ajuda está limitada a 60 mil euros de faturação anual, um teto que Paula Franco defende que devia ser elevado para 200 mil euros.
Que avaliação faz, em traços gerais das várias medidas para apoiar as empresas e os trabalhadores que foram lançadas pelo Governo face à pandemia de coronavírus?
O Governo baseou-se em duas medidas: uma com base no financiamento e outra com base em apoios — no fundo, o lay-off — que pressuponham apoios diretos do Estado às empresas. Estas opções têm os seus prós e contras. Os maiores contras, vejo nas linhas de financiamento. Primeiro, pela dificuldade das empresas com menos estrutura e menos resultados acederem a elas, por causa dos riscos que apresentam. E depois, o facto de criarem endividamento nas empresas portuguesas, que acho que não é um aspeto positivo. Quanto às questões do lay-off, [este regime] tem uma flexibilidade grande e uma simplificação nos procedimentos, embora tenha existido alguma confusão em determinados enquadramentos, porque por muito que se queira simplificar estas não deixam de ser matérias complexas.
As medidas podiam ter ido mais além e acho que precisavam de ser complementadas com alguma parte de empréstimos a fundo perdido. Esperemos que ainda venham para a retoma [da economia] subsídios e apoios relacionados com essa possibilidade.
O desemprego poderia ter aumentado muito mais, não fosse a capacidade de resiliência dos empresários em acolher estas medidas e ter esperança nelas.
Vemos o desemprego disparar, incluindo os processos de despedimento coletivo. O lay-off simplificado chegou demasiado tarde e ficou demasiado tempo envolto em dúvidas e incerteza, tendo acabado por abrir a porta a esses despedimentos?
Os empresários portugueses tiveram uma resposta muito positiva e deixo uma palavra de apreço quer a estes quer aos contabilistas certificados, uma vez que juntos tentaram aproveitar estas medidas no sentido de serem muitas empresas a recorrerem ao lay-off e poucas — ou menos — a irem para opção do despedimento. Isso foi muito positivo, significa que as empresas têm esperança, significa que as empresas querem continuar a manter os seus postos de trabalho. O desemprego poderia ter aumentado muito mais, não fosse a capacidade de resiliência dos empresários em acolher estas medidas e ter esperança nelas.
Claro que as medidas nunca são tão rápidas quanto gostaríamos, até porque são muitas e num curto espaço de tempo houve muitas empresas a solicitá-las, o que leva sempre a que exista alguma dificuldade no tratamento de todos os pedidos. Tanto quanto sabemos, esta semana vai ser uma semana importante no pagamento dos apoios. Os apoios já têm vindo a ser pagos, a conta-gotas, à medida que vão sendo tratados. O horizonte do Governo para pagar estas apoios era a data de 28 de abril e, tanto quanto sei, estão a ser feitos todos os esforços para conseguir que nessa data estejam pagos a maior parte dos apoios. Acredito que esta semana vai fazer muita diferença para os empresários e para a sua esperança.
O Governo indicou que o apoio do lay-off simplificado será pago entre os dias 24, 28 e 30 de abril e a primeira quinzena de maio. Conseguiu perceber qual o critério para a distribuição das empresas por estes dias de pagamento?
Como está a ser feita por distritos, depende um bocadinho da capacidade de cada serviço da Segurança Social para tratar os pedidos. Neste momento, aquilo que o Governo pretende em relação aos apoios é tentar tratar todos os pedidos o mais rapidamente possível. Embora tenha sido dito que aqueles que tinham entrado até ao dia 8 ou dia 10 seriam pagos em primeiro lugar, verificámos uma grande mistura destas situações. Não foram bem os primeiros, não foram bem os últimos. Depende muito das situações e conforme se vai conseguindo tratar a informação, vão sendo processados. Depende das zonas.
No caso dos trabalhadores em lay-off que encontrem um novo emprego, o novo salário abate aos dois terços garantidos pelo regime, incluindo no apoio da Segurança Social. Mas se for o empregador original a pagar a mais não há abatimento. Isto faz sentido?
O pressuposto do lay-off é que o trabalhador fique salvaguardado com dois terços do seu salário. Quanto é atingido esse pressuposto, não há apoio da Segurança Social, o que não quer dizer que a sua entidade patronal não queira pagar acima não o possa fazer. O que está em causa é o apoio da Segurança Social e não o que o empregador vai pagar. Claro que o empregador, estando assegurados os dois terços, também se pode refugir nisso.
Mas se for o empregador a pagar acima dos dois terços, não se perde o apoio da Segurança Social. Já se o adicional for fruto de um novo emprego perde-se esse apoio…
É isso mesmo. O facto da entidade empregadora pagar acima dos dois terços é uma opção, por isso não entra na salvaguarda dos dois terços.
Ainda temos uma grande dúvida que tem a ver com o processamento de salários em meses que comecem a meio, nomeadamente o mês de março ou de abril.
Tudo somado, que dúvidas é que ainda persistem em relação ao novo lay-off, num momento em que começam a ser processados os salários de abril?
Ainda temos uma grande dúvida que tem a ver com o processamento de salários em meses que comecem a meio, nomeadamente o mês de março ou de abril. A Segurança Social, por escrito, deu sempre uma explicação, embora politicamente o secretário de Estado tenha dito que a sua interpretação é diferente e que é esta que vai prevalecer. Até agora, não tivemos por escrito esta confirmação e isso tem uma implicação grande nos salários.
De acordo com com interpretação que resulta da lei e que a Segurança Social já por duas vezes transmitiu à Ordem, os trabalhadores vão ficar com um salário menor e o apoio é menor. O que significa que, se a interpretação for outra, temos aqui dois tipos de problemas. Primeiro, o salário vai ser maior, esta vai ser a parte positiva do lado do empregador. Mas por outro lado e em segundo lugar, as entidades empregadoras podem também não querer pagar mais do que está refletido na lei.
Aquilo a que se está a referir é o entendimento de que se um trabalhador ficar em lay-off a meio do mês, se já tiver os dois terços do salário assegurados no resto do mês, não tem direito a mais nada, certo?
Exatamente. As respostas que temos por escrito da Segurança Social é isso que dizem, mas o secretário de Estado da Segurança Social diz que não é assim. Estamos, portanto, a aguardar a vinculação para que tudo seja, depois, ajustado em função disso, com a salvaguarda de que as entidades empregadoras, perante a lei, podem não querer pagar mais aos trabalhadores.
Há processamentos de salários feitos de forma diferente e processamentos de salários que, em princípio, precisão de ajustamento. Todos eles, diria.
Mas neste momento em que se começa a processar salários que orientação está a ser adotada pela generalidade das empresas?
Depende. Há processamentos de salários que estão a ser feitos de uma forma e há processamentos de salários que estão a ser feitos de outra, de acordo com os softwares informáticos. A sugestão da Ordem foi que se mantivessem tal como estavam, independentemente de uma ou de outra interpretação, e quando as situações estiverem completamente clarificadas então fazer o reprocessamento e o ajustamento em conformidade com isso.
Acerca do processamento de salários, março já terá sido um mês difícil nomeadamente com o apoio excecional à família. Abril adivinha-se ainda mais complexo?
Em março, já se aplicou o apoio à família e o lay-off. Em março, em termos de processamento de salários, foi confuso. Há processamentos de salários feitos de forma diferente e processamentos de salários que, em princípio, precisarão de ajustamento. Todos eles, diria. Os que foram feitos de uma forma e os de outra — até porque também temos a isenção dos 23,75% (TSU) que também não estava completamente clarificada. Tudo isso leva a que, provavelmente, existam no futuro alguns ajustamentos. Aquilo que a Ordem recomenda, quer em relação a março, quer em relação a abril, é esperar todos os esclarecimentos para depois fazer o reprocessamento.
Portanto, diz-me que a generalidade dos salários abrangidos pelas medidas extraordinárias vai ter de ser acertada e ajustada, nos próximos meses?
Provavelmente, sim. Só com muita sorte é que tudo baterá certo.
Esta falta de clareza legislativa levou a atrasos no processamento e pagamento de salários?
Não creio. As empresas têm os dados suficientes para o fazerem (o processamento de salários). O que pode haver depois são ajustamentos. Não acho que se justifique o não pagamento por este motivo. Por isso é que a Ordem recomendou desde o início que cada um interprete da melhor forma e depois faça os ajustamentos necessários para que tudo isto fique certinho. Não podemos querer que numa situação em que, no espaço de um mês foram publicados cento e tal diplomas, tudo esteja clarificado.
O limite da faturação [do apoio para os sócios-gerentes] devia ser muito superior, pelo menos até 200 mil euros.
Que avaliação faz das medidas para os membros dos órgãos estatutários, os sócios-gerentes?
Ficaram muito aquém. O limite dos 60 mil euros de faturação faz com que a maior parte dos sócios-gerentes não tenha apoio. O valor é extremamente baixo. Os sócios-gerentes são, na prática, também trabalhadores das próprias empresas e, por isso mesmo, acho que este apoio fica muito aquém face aos descontos e contribuições. No fundo, têm contribuições iguais às dos trabalhadores dependentes e, portanto, os apoios deviam ser também em conformidade com a remuneração declarada. E o limite da faturação devia ser muito superior, pelo menos até 200 mil euros, que é horizonte que se aplica ao regime simplificado. Acho que pelo menos até esse valor era aquilo que deveria ter ficado.
A insuficiência desses apoios poderá de certo modo “incentivar” os despedimentos, tornando mais vantajoso, por exemplo, fechar as portas do que continuar a pagar salários nesta altura mais difícil?
Os apoios para os sócios-gerentes quando têm trabalhadores também são, de alguma forma, simpáticos, mesmo não sendo diretos, nomeadamente com a isenção das contribuições para a Segurança Social. Diria que o apoio que têm com essa isenção é bastante significativo; Se calhar até mais significativo que o apoio monetário que possa existir em termos de valor.
Para os sócios-gerentes com trabalhadores em lay-off, essa isenção da Segurança Social é muito significativa. Portanto, não é por aí que se incentiva o fecho das empresas e a ida dos trabalhadores para o desemprego. Acho que o apoio não é de todo de desvalorizar.
Preocupa-me um bocadinho a gestão e o planeamento de tesouraria das empresas, com esta possibilidade de empurrarem para a frente os pagamentos [das contribuições e impostos] e depois não terem capacidade para fazer face a eles.
Sobre o pagamento de impostos e das contribuições sociais. O Governo flexibilizou essas obrigações durante este trimestre. Que avaliação faz desta medida?
Essa flexibilização é importante para que as empresas, neste momento em que tiveram de fechar as portas e não têm tesouraria, possam gerir de alguma forma a sua tesouraria, no imediato. É importante que se ressalve que vão ter de as pagar mais tarde. Preocupa-me um bocadinho a gestão e o planeamento de tesouraria das empresas, com esta possibilidade de empurrarem para a frente os pagamentos [das contribuições e impostos] e depois não terem capacidade para fazer face a eles.
A questão é, portanto, semelhante à das linhas de financiamento. É um endividamento do futuro…
Imagine, com isto tudo, quando é que as empresas vão conseguir equilibrar as contas para retomar e investir?
Os contabilistas também têm a sua linha da frente que é assegurar que a economia não morre e que os empresários e as empresas têm a possibilidade de subsistir a tudo isto, ajudando-os muitas vezes de forma gratuita.
Os contabilistas estão a trabalhar, neste momento, para empresas que, em alguns casos, já estão sem liquidez. Como é que os contabilistas têm vivido esta situação? Tem havido empresas a pedir a redução dos preços dos serviços dos contabilistas?
Os contabilistas têm estado a lidar com esta situação de uma forma heroica. Os contabilistas também têm a sua linha da frente que é assegurar que a economia não morre e que os empresários e as empresas têm a possibilidade de subsistir a tudo isto, ajudando-os muitas vezes de forma gratuita.
A maior parte dos contabilistas não desceu as suas avenças, nem têm que o fazer, porque estão a trabalhar com o mesmo ritmo e intensamente para os empresários. Não é uma atividade que tenha parado. É uma atividade que tem tido continuidade e ainda maior do que a que tinha anteriormente.
A maior parte dos empresários está sensível a isto e teve no seu contabilista o seu braço direito, alguém que o ajuda nesta fase tão difícil. Por isso, a maior parte deles só deixará de pagar avenças se não tiver qualquer tipo de possibilidade. Os contabilistas não têm apoios, até porque mantêm a sua faturação. O apoio aos contabilistas é a manutenção das avenças para que possam continuar a acompanhar os empresários da melhor forma.
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Limite da faturação para apoio aos sócios-gerentes “devia ser, pelo menos, 200 mil euros”, diz bastonária dos contabilistas
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