Miguel Cabrita: “Não temos a expectativa de que esta lei, por si só, resolva de um momento para o outro as questões de desigualdade entre homens e mulheres”

Atração, retenção e igualdade. A trilogia do talento chegou ao Ministério do Trabalho, e a sua importância é sublinhada pelo secretário de Estado do Emprego, Miguel Cabrita.

A nova lei de igualdade salarial entre homens e mulheres entrou em vigor a 21 de fevereiro. Porquê agora e porquê com este procedimento de relatório anual?

O objetivo desta nova lei da igualdade salarial é tentar criar instrumentos práticos para promover efetivamente uma realidade que, à luz da lei e à luz do que tem sido a evolução das nossas sociedades e da portuguesa em particular, já se esperaria que fosse porventura uma realidade. Ou seja, do ponto de vista jurídico, o princípio da igualdade salarial entre homens e mulheres – não só no plano salarial como noutros domínios – está perfeitamente estabilizado.

É verdade que há alguns sinais positivos, o gap salarial tem diminuído nos últimos anos, é verdade que quando pensamos nas novas entradas no mercado de trabalho, a diferença salarial nestas pessoas é menos significativa do que esta, mas tudo somado a diferença é esta: 15% nas remunerações base, 16% nas empresas com mais de 10 trabalhadores, 18% considerando os ganhos, 25% nos quadros superiores. E perante isto, tendo em conta a proteção legal que já existia e toda a mudança social que houve, só há dois caminhos: acharmos que já é suficiente a proteção, fazer o resto do caminho, ou achamos que isto não é aceitável, e portanto queremos criar novos mecanismos no fundo para ajudar a atingir esse princípio consagrado. Que, aliás, é um princípio jurídico mas que agora é um valor muito mais partilhado em Portugal do que foi no passado.

Miguel Cabrita, Secretário de Estado do Emprego, em entrevista ao ECO/PESSOAS - 07MAR19

Que instrumentos são estes e que dimensões tem esta lei?

A partir da informação que o Estado das próprias empresas, o Ministério do Trabalho vai produzir dois tipos de instrumentos: o primeiro, barómetros setoriais, vem com os primeiros resultados, no primeiro semestre deste ano e vai permitir um debate público e identificar os maiores problemas para podermos canalizar não só a atenção como a ação deste ponto de vista. Um segundo instrumento – que entrará em vigor no próximo ano – será, não só um barómetro setorial como um balanço empresa a empresa das desigualdades de género. A partir dos dados que as empresas já fornecem, vamos pedir informação adicional e a cada empresa vai ver devolvida essa informação tratada em termos de género É um ganho relevante porque permite detalhar o nosso conhecimento e também o conhecimento da empresa. Dir-se-á: mas as empresas não conhecem a sua realidade? Podem ou não conhecer mas, também, podem não fazer uma análise do ponto de vista do género.

O Governo está confiante de que as empresas vão analisar estes dados?

O objetivo dos barómetros setoriais é o conhecimento público. Do balanço empresarial, o objetivo é que cada empresa receba informação que, pode ter ou não mas nunca tratou do ponto de vista do género. Aquilo que será exigido às empresas é que, caso haja uma queixa ou caso a Autoridade para as Condições de Trabalho desencadeie algum tipo de ação neste âmbito, as empresas sejam capazes de demonstrar que, no fundo, as diferenças salariais que existem se devem a razões objetivas e não a uma prática discriminatória da qual podia até não haver consciência. Mas, para que isso possa ser demonstrado, tem de haver um conjunto de critérios objetivos que sejam mobilizados para isto. Este aspeto é importante porque, obviamente, esta informação também pode ser acedida pela ACT que saberá onde estão as situações de maior risco e poderá direcionar a sua ação e atenção para as empresas.

Esse acesso não existia até agora?

Existia mas os dados não eram tratados deste modo. Dá às empresas e à ACT um instrumento novo. A ACT vai poder notificar as empresas com níveis mais significativos de desigualdade e as empresas, por sua vez, terão um prazo para se poderem adaptar. Este mecanismo entra em vigor já em 2020 para as empresas com mais de 250 trabalhadores e depois, gradualmente, vai aplicar-se a empresas com mais de 50 trabalhadores, às médias e grandes empresas.

A CITE vê também um poder reforçado pelo facto de poder passar a emitir pareceres vinculativos. A pessoa queixa-se que está num processo de discriminação, a CITE pode dar razão à pessoa e a empresa fica obrigada a corrigir a situação. Caso não o faça há todo um processo subsequente.

"A ACT vai poder notificar as empresas com níveis mais significativos de desigualdade e as empresas, por sua vez, terão um prazo para se poderem adaptar.”

Quais as expectativas do Governo em relação a esta lei?

Temos uma expectativa positiva uma vez que cria instrumentos práticos em relação a todos os intervenientes. Para os serviços públicos, em particular para a Autoridade para as Condições de Trabalho, para a reflexão e debate público destas questões, para as empresas porque elas próprias vão ter mais consciência, e para as pessoas. Esta lei tem alguns avanços na criação de direitos e de instrumentos mas, no fundo, a sua base jurídica, o princípio da igualdade e todas as formas como ele está hoje em dia consagrado, já existia. Contamos que seja uma ajuda e um incentivo a que as pessoas tenham mais poder para fazer valer os seus direitos.

Não temos a expectativa de que esta lei, por si só, resolva de um momento para o outro as questões de desigualdade entre homens e mulheres, até porque este não é um problema só português. O que não nos impede de querer progredir.

Que outras medidas têm sido tomadas para otimizar os efeitos destes objetivos?

Há um conjunto de outros passos que têm sido dados e que são relevantes, desde logo este Governo, para dar um exemplo, a lei da representação equilibrada nos conselhos de administração das empresas. Não é com a introdução de quotas. Costumo dizer que é uma expressão antipática mas para um problema ainda mais antipático, a baixa representação nas empresas cotadas em bolsa e com um poder de exemplo bastante significativo. Depois temos toda a dimensão de alargamento das redes de equipamentos sociais. Portugal fez um progresso muito rápido na década passada neste aspeto, somos o primeiro país europeu a cumprir as metas em termos da taxa de cobertura dos equipamentos sociais – creches, jardins-de-infância, e pré-escolar, que estamos a concluir e que é particularmente importante num país em que homens e mulheres trabalham a tempo inteiro. A ideia de voltar a ter um novo ciclo de alargamento da rede de veículos é outra das peças do puzzle que estão a ser colocadas no seu lugar.

Miguel Cabrita, Secretário de Estado do Emprego, em entrevista ao ECO/PESSOAS - 07MAR19

O Governo prevê aplicar quotas a outras empresas?

Desde logo serão os portugueses a decidir qual será o próximo Governo, não queremos antecipar-nos aos ciclos eleitorais. O passo que foi dado foi já muito significativo e, devo dizer que, muito à semelhança do que acontece com outras matérias que às vezes parecem coisas muito fracturantes, a lei foi aprovada com grande debate mas fará o seu caminho sem dúvida e trará os seus resultados. Terão de ser analisados os próximos passos daquela que for a evolução da situação. Neste ciclo, estamos a pôr em prática um conjunto de leis e avanços importantes, fará sentido que haja uma avaliação e uma reflexão em torno de saber se os passos que foram dados são já suficientes ou se, pelo contrário, serão precisos mais para voltarmos a aproximar-nos deste ideal que tem de ser prático da não discriminação entre homens e mulheres.

“Em Portugal temos um problema de insegurança das perspectivas de carreira, em particular entre os jovens.”

Muito se fala em atração e retenção de talento. Em relação ao re-skilling, o Governo está a fazer algo nesta matéria?

O nosso mercado de emprego mudou muito rapidamente. Por um lado, ainda bem que assim foi mas a verdade é que nos cria desafios novos. Há três anos, discutíamos os níveis elevados de desemprego e o desemprego de longa duração. Ainda temos questões sociais muito fortes associadas ao quadro do mercado de emprego – e sabemos qual foi o trajeto que percorremos na última décadas, as razões de tudo. Mas, muito rapidamente e muito mais do que se previa, estamos numa situação em que deixámos de ter como foco principal a preocupação com o desemprego elevado e passámos para uma situação em que, em virtude de estarmos com o desemprego nos níveis em que estamos e, também por razões demográficas em que tivemos muita emigração nos últimos anos, quem emigra são normalmente pessoas jovens e jovens adultos, muitas vezes os mais qualificados.

Isso provoca questões na retenção de talento…

Temos neste momento um problema de escassez de pessoas, em geral, sejam mais ou menos qualificadas. Não é por acaso que o emprego jovem e o desemprego de longa duração são áreas em que tem havido um comportamento do mercado de trabalho acima da média. O que significa que as empresas e o próprio mercado de trabalho estão a adaptar-se perante a falta de outros recursos humanos: a absorver pessoas mais velhas, desempregados de longa duração, o que não quer dizer que não tenhamos de melhorar a taxa de desemprego jovem, que ainda está na ordem dos 20%.

A fuga de talento está relacionada com que fatores?

Em Portugal temos um problema de insegurança das perspectivas de carreira, em particular entre os jovens. E creio que de maneira crescente..

Os dados são conhecidos: temos um nível de contratos não permanentes que está nos 22%, a média europeia é de 14%, portanto estamos acima da média. Se olharmos só para o setor privado, os níveis de contratação permanente estão acima dos 30%, o que quer dizer que 1 em cada 3 contratos são não permanentes. Dificilmente tem algum tipo de justificação do ponto de vista mais substantivo. E, nos jovens, são dois em cada três que são contratos não permanentes.

Foi-se criando esta ideia de que a entrada no mercado de trabalho devia ser feita através de contratos não permanentes.

Deve-se a quê?

Para já, às possibilidades legais que existem a este respeito e que o Governo, aliás, propõe reduzir. Foi-se criando esta ideia de que a entrada no mercado de trabalho devia ser feita através de contratos não permanentes. As pessoas habituaram-se, criou-se uma cultura no mercado de trabalho com base em contratos não permanentes, como se fosse uma espécie de período experimental alargado, que não é o que a lei diz. A lei diz que o trabalho não permanente deve ser justificado por um conjunto de razões que existem na lei mas que não devia ser um período experimental. No que diz respeito à questão do talento e à competição por talento e sua retenção, há hoje um conjunto de variáveis que são muito relevantes para que as empresas consigam fazê-lo e, uma das dimensões é a das perspetivas que as empresas dão às pessoas quando contratam ou, quando já têm as pessoas contratadas e querem mantê-las nas empresas. Há, claro, a questão salarial, as condições de trabalho… mas a questão da estabilidade é relevante para as pessoas, compreensivelmente, e para as empresas.

Ainda em relação ao talento, e às novas formas de trabalhar, como se podem enquadrar estas questões num eventual quadro legislativo?

Há uma dimensão crítica para a retenção de talento e que creio que as empresas estão rapidamente a perceber: além de um conjunto de outras mudanças em matéria de inovação e a evolução dos níveis salariais, há uma dimensão que é da própria qualidade e estabilidade dos vínculos salariais. Ou seja, hoje em dia tendo em conta que os níveis de desemprego estão nos 6,7%, uma das componentes mais relevantes para as pessoas para decidirem trabalhar numa empresa não é só o nível salarial, é também a sua perspetiva de carreira e de estabilidade.

A estabilidade é apenas vantajosa para as pessoas?

É interessante e um ponto muitas vezes desvalorizado, havia a ideia de que as políticas de recursos humanos competitivas eram as políticas que se baseavam numa fortíssima flexibilidade e numa forte rotação de recursos humanos. Ora, empresas que apostam numa forte rotação de recursos humanos são, por definição, empresas que acumulam pouco capital humano. Não estabilizam equipas nem capacidade de inovação. As empresas que conseguem inovar, criar valor acrescentado e melhorar os seus processos produtivos são empresas que têm equipas com experiência, com estabilidade, e para isso há muitos estudos sobre, e muita evidência empírica.

O calçado como exemplo

Mais informação, mais poder de ação, defende o secretário de Estado do Emprego. Miguel Cabrita dá o exemplo da iniciativa de associações e sindicatos do setor do calçado que fizeram um estudo entre as categorias profissionais e os setores, para procurar estudar as diferenças e desigualdades salariais. O trabalho, foi feito no âmbito da negociação coletiva, é uma prática que, espera o Governo, seja replicada.

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