João Lima Cluny, sócio da Morais Leitão, contou como recebeu o convite para integrar equipa de sócios da firma e analisou o estado da justiça e da corrupção em Portugal.
João Lima Cluny, recente sócio da Morais Leitão, esteve à conversa com a Advocatus e contou como têm sido os 15 anos no escritório. Sublinhou que continua “apaixonado” pelo que faz e por poder contribuir para a “realização da Justiça”.
O advogado defende que qualquer análise que se queira fazer às contas e à faturação dos escritórios deve ter em consideração as “diferentes fórmulas que têm sido usadas”.
Licenciou-se em 2007 pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 15 anos depois já alguma vez se arrependeu de ter seguido Direito e a área de criminal, contraordenacional e compliance?
Curiosamente, quando acabei a Faculdade estava mais inclinado para as áreas de direito societário. No entanto, quando iniciei o estágio, a primeira rotação que fiz na Morais Leitão acabou por ser no departamento de criminal, contraordenacional e compliance e, confesso, percebi, relativamente rápido, que era esta a área em que queria trabalhar. É verdade que já passei por momentos de grande desânimo, em especial quando me apercebi, valha-me a ingenuidade, que, muitas vezes, as acusações e as decisões são proferidas por quem não parece ter os meios, próprios e institucionais, para o fazer e que o nosso sistema já não se rege pela máxima de que mais vale 100 culpados livres do que 1 inocente condenado. Mas, até hoje, não me arrependi, pelo contrário. Continuo apaixonado pelo que faço e por poder contribuir, à minha escala, para a realização da Justiça.
Desde 2007 que integra a equipa da Morais Leitão. Que balanço faz do seu percurso?
Faço um balanço francamente positivo. Julgo que tive a sorte de, em 2007, ser escolhido pela Morais Leitão, conjuntamente com um grupo de estágio com ótimos juristas e hoje, muitos deles, grandes advogados, e de integrar imediatamente o departamento a que atualmente pertenço. E acho que, durante estes 15 anos, procurei corresponder ao que a Morais Leitão esperava de mim, tal como a Morais Leitão correspondeu sempre, e de forma particularmente impressiva, ao que esperava de uma sociedade com as suas características.
Tive o privilégio de trabalhar em diversos assuntos extraordinariamente interessantes, de ajudar pessoas e empresas nas mais diversas situações e de aprender com um conjunto de advogados reconhecidamente de excelência. Imagine a sorte que é para um rapaz de 22 anos poder lidar com alguns dos casos em que trabalhei e de o poder fazer ao lado de advogados com a capacidade daqueles com quem eu tive o privilégio de aprender.
Por outro lado, na Morais Leitão encontrei um conjunto de valores que prezo e diversas pessoas que se tornaram amigos para a vida.
Qualquer análise que se queira fazer às contas e faturação das sociedades de advogados deve sempre ter em consideração as diferentes fórmulas que têm sido usadas.
Nunca ponderou mudar de escritório?
Acho que a ideia acaba por passar, em determinada altura, pela cabeça de todos nós, mas, no meu caso, mais numa perspetiva de como seria, do que uma vontade de mudança efetiva. A verdade é que a Morais Leitão sempre me apresentou um plano de carreira claro e no qual me revia, que foi cumprido na íntegra e sempre me senti reconhecido pelo que procurei oferecer à sociedade.
Este ano foi promovido a sócio. Como recebeu esta nomeação?
Com natural satisfação. Significou, para mim, um reconhecimento da sociedade de características consentâneas com aquelas que pretende para o seu colégio de sócios. E eu espero estar à altura de corresponder a este novo desafio. E fiquei particularmente feliz por poder ter ascendido a esta categoria conjuntamente com vários colegas de estágio. Significa que a sociedade olha para dentro e que a aposta para a fase de estágio é uma aposta na pessoa e não um simples preencher de necessidades momentâneas.
Qual é a responsabilidade que um sócio possui dentro da sociedade?
Na minha visão, um sócio tem diversas responsabilidades. Mas, entre aquelas que me parecem mais relevantes, julgo sobressair a de saber captar, nomeadamente através do seu trabalho diário, novos assuntos que permitam às suas equipas crescer e desenvolverem-se. Ainda que haja, e deva haver, diferentes perfis de sócios — esta multiplicidade apenas nos permite ser mais fortes — há algo que, a meu ver, tem de estar sempre presente: garantir a continuidade e a evolução da atividade e crescer e fazer crescer os mais jovens. Permitir que estes tenham as oportunidades que me foram concedidas. Existem, igualmente, características essenciais como a de olharmos sempre para o todo e para o interesse coletivo. Essa forma de pensar tem sido, a meu ver, uma das bases do sucesso, estabilidade e sentimento familiar que se sente na Morais Leitão.
Considera que os relatórios de contas dos escritórios de advogados deveriam ser públicos?
Sinceramente, atento ao tipo de atividade desempenhada, o sigilo e a confidencialidade que o próprio Estatuto da Ordem dos Advogados nos impõe — e bem —, não vejo razão clara para que tal aconteça (mais a mais quando as entidades competentes têm, obviamente, acesso às mesmas). Importante é — e isso já acontece — saber-se quais os contratos e seus valores celebrados com entidades públicas. No mais, qualquer análise que se queira fazer às contas e faturação das sociedades de advogados deve sempre ter em consideração as diferentes fórmulas que têm sido usadas para apresentar resultados: faturação nacional vs internacional, inclusão de IVA ou não, etc. Sem isso, estamos a analisar coisas diferentes como se da mesma coisa se tratasse.
Recentemente a ministra da Justiça relativizou os dados de um estudo europeu sobre a perceção de corrupção na Justiça. Compartilha desta posição ou defende que existem motivos para nos preocuparmos com a corrupção?
Considero, desde logo, que é importante compreender adequadamente o contexto do estudo e aquilo a que, efetivamente, os magistrados terão respondido. De todo o modo, qualquer perceção que aponte para possíveis atos corruptivos no seio da Justiça deve ser motivo de preocupação e especial atenção. A análise, no entanto, tem de ser feita de forma abrangente.
Desde logo, temos de olhar para as carreiras das magistraturas: o que fazer para as tornar mais apelativas e interessantes? Como é que podemos conseguir que haja cada vez mais alunos a pretender seguir as magistraturas por convicção? Infelizmente, atualmente, assistimos (já acontecia quando fui aluno e agravou-se agora enquanto professor) a um cada vez maior afastamento destas carreiras. Basta pensar que o CEJ já ficou, inclusivamente, com vagas por preencher. O que estamos a fazer mal?
Ora, a falta de motivação gerada por estas carreiras, os parcos meios de que dispõem para realizar as suas funções — que são de soberania — acabam, também, por as transformar em potenciais (e apetecíveis) focos de corrupção.
Temos, portanto, de olhar para estas funções com a relevância que elas efetivamente têm: as de acusadoras e julgadoras de cidadãos e empresas. Não devem ser desempenhadas sem a formação necessária e num contexto de potenciais carreiras de recurso, e não podem ser remuneradas de forma totalmente desajustada à relevância que têm.
Mas há mais, não podemos acreditar numa Justiça adequada quando os nossos Tribunais não têm as mínimas condições para exercer as suas funções. Como é que um cidadão que se vê acusado consegue apreender verdadeiramente uma condenação que é proferida em instalações absolutamente indignas ou por magistrados a quem, por vezes, nenhuma oportunidade é dada para aprofundar os seus conhecimentos acerca da matéria que estão a julgar?
Se acrescentarmos a esta realidade o facto de existir uma tendência generalizada para coartar os meios de recurso das decisões proferidas, percebemos o cocktail explosivo que se está a criar.
Um juiz que tem nas suas mãos processos em que se discutem montantes de enorme relevância e sabe que a sua decisão não tem recurso está, ele próprio, numa situação de exposição que não tem qualquer justificação válida.
Veja-se o caso do Tribunal de Concorrência, Regulação e Supervisão. Faz algum sentido termos um alegado Tribunal especializado, sem que se forneça aos magistrados que ali desempenham funções a formação e a experiência adequadas para julgarem casos de uma complexidade técnica extrema? Mas, pior do que isso, quando estamos a julgar milhões e milhões de euros em coimas, é aceitável que a decisão seja proferida por um único juiz, sem gravação das sessões da audiência de julgamento e sem possibilidade de recurso quanto à matéria de facto?
É um perfeito absurdo e leva-nos a uma total falta de controlo da atividade jurisdicional. E é ainda mais absurdo se pensarmos que num processo de natureza civil basta uma ação ter um valor superior a 5.000 euros para que haja possibilidade de recurso com maior abrangência. Ou se pensarmos que, em processo-crime, em muitos casos, para além da possibilidade de recurso sobre a matéria de facto, os processos são julgados por um coletivo de juízes.
Ou seja, em processos que respeitam a montantes, na grande maioria das vezes, muito superiores ao máximo da multa passível de ser aplicada em processo-crime, não temos qualquer controlo. Existe — e verifica-se na prática — uma autêntica desresponsabilização dos juízes, que acaba, por vezes, por ter reflexo na qualidade das decisões, e coloca estes magistrados numa posição de permeabilidade (à qual são alheios) que não pode ser aceite.
O duplo grau de jurisdição e as decisões colegiais são, aliás, das ferramentas mais adequadas para controlar possíveis desvios ao sistema, pelo que a tendência, que existe e já não se esconde, de limitar a possibilidade de recurso (sob a capa falsa do excesso de garantias de defesa) é um erro, grave, e que este estudo sobre a perceção da corrupção na Justiça expõe de forma ainda mais clara.
Existe — e verifica-se na prática — uma autêntica desresponsabilização dos juízes, que acaba, por vezes, por ter reflexo na qualidade das decisões, e coloca estes Magistrados numa posição de permeabilidade (à qual são alheios) que não pode ser aceite.
A nível empresarial, considera que os canais de denúncia podem ser um bom instrumento no combate à corrupção?
Considero que os canais de denúncia, bem como as medidas de compliance que têm vindo a ser exigidas pelo legislador — os planos de prevenção da corrupção, os códigos de conduta, entre outros — são instrumentos que irão ter efetivo impacto no combate à corrupção. A consciencialização das empresas e dos seus elementos para os comportamentos que não são admissíveis e a formação adequada e frequente (os instrumentos sem esta formação de pouco ou nada servem) são o caminho certo para uma redução efetiva de atos corruptivos.
Penso também que o legislador podia e devia ter ido mais longe nas consequências positivas que a implementação efetiva destes instrumentos e a formação adequada dos colaboradores devia ter na desresponsabilização das empresas por condutas ilícitas praticadas pelos seus colaboradores. Não se trata de recompensa, mas sim de deixar claro que as empresas não sofrerão as consequências dos atos daqueles que agem contra as regras definidas internamente. É preciso, mais vezes, e de forma mais clara, separar o que é efetivamente feito com conhecimento, no interesse e em nome da empresa, daquilo que é feito pelo colaborador, para além do que verdadeiramente era vontade da empresa e contra as indicações que lhe foram transmitidas.
Paralelamente, é árbitro e mediador do Tribunal Arbitral do Desporto de Portugal. Qual é a grande mais-valia da utilização da arbitragem?
As duas principais mais-valias são a especialização dos árbitros e a celeridade dos processos. A possibilidade de ver um litígio decidido por quem compreende a matéria que está a ser discutida é algo que, na verdade, não devia ser uma vantagem. Todos nós devíamos ter o direito de ver um litígio decidido por quem, efetivamente, percebe o que se está a discutir. Infelizmente, porém, esta realidade nem sempre sucede nos tribunais do Estado, mesmo naqueles que são intitulados de especializados.
Considera que a arbitragem é pouco utilizada?
Não. Acho que a arbitragem, e bem, ganhou o seu espaço e é hoje uma realidade enraizada e manifestamente bem-sucedida. É natural que a sua predominância continue a abarcar litígios em que estão envolvidas pessoas coletivas, mas assiste-se a uma consciencialização cada vez maior das suas vantagens.
Qual é o maior desafio que a arbitragem enfrenta neste momento?
O maior desafio, a meu ver, passa por ultrapassar um certo preconceito que se pretende criar em torno da arbitragem. Assiste-se, muitas vezes por parte de quem tem (ou devia ter) responsabilidades, a críticas não fundamentadas à seriedade dos que integram colégios arbitrais. A leviandade de algumas críticas preocupa-me, embora, na verdade, sejam um reflexo de uma certa forma de estar e, nalguns casos, de administrar a Justiça. E isso, sim, é que nos devia preocupar. Decisões sem prova que as sustentem. Decisões pouco ou nada fundamentadas. Fossem essas as críticas à arbitragem e, então, sim, teríamos um problema.
Enquanto professor universitário, o que acha que falta no ensino do direito?
Falta algo que, a meu ver, é essencial: mostrar aos alunos o que vão encontrar quando saírem da faculdade. O que é ser advogado. O que é ser magistrado. O que é ser notário. Como funcionam os julgamentos. Como se negoceia um contrato. As faculdades, na grande maioria dos casos, fornecem excelente formação jurídica mas, nem sempre, permitem aos alunos aperceber-se da utilidade dessa formação e da sua aplicação prática. No dia em que conseguirmos transmitir aos alunos os (bons) desafios que vão encontrar nestas carreiras, tenho a certeza de que ficarão mais entusiasmados. É essencial que percebam a utilidade do que aprendem e as faculdades, a meu ver, ainda não conseguiram atingir esse patamar. Claro está que há aquelas que estão mais perto disso, e a Nova School of Law continua a dar passos nesse sentido.
Quais são as perspetivas para daqui a 15 anos?
Faz-me uma pergunta particularmente difícil. Respondo-lhe com três perspetivas. Em termos da Justiça, nomeadamente a criminal e a contraordenacional, vejo com muita apreensão a tendência clara para coartar direitos de defesa. Espanta-me a facilidade com que nos esquecemos de tempos em que esses direitos inexistiam e quantos anos demorámos a conquistá-los. A defesa que hoje se faz com vista à abolição de vários destes direitos é preocupante e as suas consequências só são percebidas quando as pessoas enfrentam um processo. Quantas vezes já tive clientes que eram tão críticos acerca de tais direitos e, depois, confrontados com um processo, ficam perplexos com a realidade e com as consequências daquilo que defendiam. Portanto, nesta matéria, temo que nos próximos 15 anos possamos atingir um cenário muito preocupante. Em termos do futuro da advocacia, tenho grandes expectativas para ver as alterações que irão ocorrer com a forma como as gerações que agora estão a iniciar as suas carreiras encaram a profissão. A questão não é exclusiva da advocacia, mas sinto que iremos verificar uma mudança de paradigma. Aquela ideia que havia de querer fazer uma carreira num mesmo sítio e aquela outra de que a advocacia exige, muitas vezes, uma dedicação (nomeadamente em termos horários) muito relevante, parece-me que não se verificará num futuro próximo. Estou curioso para ver o que de bom resultará desta mudança. Finalmente, no que respeita à Morais Leitão, acredito que saberemos manter aquilo que nos tem caraterizado: qualidade, mas qualidade no contexto de uma Sociedade em que as pessoas se sentem bem, se sentem queridas e sabem que podem contar umas com as outras. Tem sido este espírito e esta forma de estar, solidária, que nos trouxe, com bons resultados, até aqui, e em que, acredito, iremos continuar a apostar.
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