Helena André diz que Portugal "sai-se muito bem na fotografia" com as políticas tomadas face à pandemia. Sobre o teletrabalho, a ex-ministra assume-me como defensora, mas reconhece que há perigos.
Os últimos meses ficaram marcadas pelo “maior experiência da história da humanidade” do teletrabalho, regime que Helena André defende, ainda que reconheça os perigos e tentações à espreita.
Em entrevista ao ECO, a ex-ministra do Trabalho e atual diretora do Centro das Atividades para os Trabalhadores da Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que o trabalho remoto não tem de ser sinónimo de perda de influência dos sindicatos nem de força das lideranças, sublinhando que pode ser vantajoso tanto para trabalhadores como para empregadores.
Sobre Portugal, Helena André diz que o Executivo de António Costa “sai-se muito bem na fotografia” com as respostas “rápidas” encontradas face à crise pandémica, mas avisa que vêm aí tempos “muito duros”, sendo essencial identificar os setores com potencial para a criação de emprego, mesmo em pleno de surto de Covid-19.
A pandemia levou milhares de trabalhadores portugueses ao teletrabalho. Considera que o trabalho remoto veio para ficar?
Essa é uma pergunta à qual é muito difícil de responder, na fase da pandemia em que nos encontramos. Se olharmos um bocadinho para o que aconteceu no mês de março e em alguns meses subsequentes, em praticamente todo o mundo, o que vimos foi que, com o confinamento das pessoas em casa, houve um aumento massivo do número de pessoas em teletrabalho. Parece que, durante a pandemia e o confinamento, muitas empresas que já tinham praticado o teletrabalho como aquelas que nunca tinham recorrido a esta forma de prestação de trabalho passaram a fazê-lo. Estamos perante a maior experiência de teletrabalho do mundo e da história da humanidade. Isto terá consequências a longo prazo relativamente às quais ainda não temos muita informação.
Temos que pensar que, com a tecnologia certa, bons níveis de comunicação e alguma reorganização do trabalho, o potencial de tarefas que podem ser feitas à distância é muito mais elevado do que podia pensar antes. Mas acho que não é a mesma coisa falar do recurso ao teletrabalho antes da pandemia, durante a pandemia e aquela que poderá ser a sua utilização no pós-pandemia. Durante a pandemia, o recurso ao teletrabalho trouxe uma série de dificuldades para os pais que trabalham, para os cuidadores. A dificuldade do trabalho a partir de casa foi sempre em crescendo.
O teletrabalho pode colocar algumas questões relativamente à privacidade e à proteção de dados. Há sempre alguns empregadores que querem fiscalizar se os trabalhadores estão ou não a trabalhar.
Que problemas são levantados pelo teletrabalho? Pelo que me diz, compreendo que antecipa que os problemas de hoje não são os mesmos de ontem e não serão os mesmos do pós-pandemia…
Exato. As circunstâncias em que as pessoas passaram a ter de fazer o teletrabalho, com a família em casa, são completamente distintas do teletrabalho em circunstâncias normais. Por isso é que digo que temos de estudar as consequências daquilo que aconteceu neste período de confinamento.
E que vantagens há no teletrabalho, na sua opinião?
Há vantagens e inconvenientes. Se olharmos para as vantagens, do ponto de vista do trabalhador, o teletrabalho permite uma maior autonomia e uma maior flexibilidade na organização dos tempos de vida, permite uma melhor conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar e permite uma maior qualidade de vida, já que o trabalhador poupa o tempo que gastaria nos trajetos entre casa e trabalho. Penso que esta última é uma vantagem não só do ponto de vista do trabalhador, mas também do ambiente.
O teletrabalho também pode resultar num menor número de despesas, por exemplo em termos de transportes para ir para o trabalho, em refeições que se tem de fazer fora de casa. Há uma série de vantagens do ponto de vista do trabalhador. Por exemplo, pode abrir novas oportunidades de emprego para as pessoas com dificuldades de mobilidade, porque dá uma maior liberdade na prestação do trabalho e uma maior possibilidade de procura de trabalho.
Para o empregador também há vantagens. O empregador tem uma redução dos custos da operação, tem uma capacidade de gerir melhor os seus espaços, tem eventualmente uma melhoria da produtividade do trabalhador, poderá ter uma redução do absentismo, poderá ter uma maior diversificação da mão-de-obra: Pode, por exemplo, contratar pessoas que se encontram noutros espaços geográficos.
Claro que não são só boas notícias. Há também uma série de inconvenientes. Do ponto de vista do trabalhador, temos um risco de isolamento social, temos um risco de deficiência na comunicação com os outros colegas de trabalho, temos um risco de mais horas de trabalho ou mais dificuldades no acesso à formação profissional, independentemente da lei que rege o teletrabalho preveja que nada disto aconteça.
Ao mesmo tempo, julgo que [o teletrabalho] pode colocar algumas questões relativamente à privacidade e à proteção de dados. Há sempre alguns empregadores que querem fiscalizar se os trabalhadores estão ou não a trabalhar.
O teletrabalho, da forma como está regulado, é voluntário, procura responder às necessidades dos trabalhadores e dos empregadores e aquilo que faz é modificar a forma como o trabalho é realizado e não a relação de emprego trabalhador e empregador.
O teletrabalho como está hoje no Código do Trabalho precisa de ser ajustado à nova realidade? Em que sentido?
Quando eu trabalhava na Confederação Europeia dos Sindicatos e era uma das responsáveis desta organização, fui a negociadora do acordo quadro europeu sobre o teletrabalho. Isto foi em 2002. Aquilo que o Código do Trabalho fez em 2003 foi transpor praticamente todo o conteúdo do acordo europeu. Algumas coisas fez ainda melhor que o acordo europeu. O acordo europeu diz que o teletrabalho é voluntário. Muitas vezes não se tem esta noção porque nos tempos da pandemia deixou de ser voluntário, mas o teletrabalho, da forma como está regulado, é voluntário, procura responder às necessidades dos trabalhadores e dos empregadores e aquilo que faz é modificar a forma como o trabalho é realizado e não a relação de emprego, trabalhador e empregador.
Aquilo que define o teletrabalho é a forma como podemos organizar e executar o trabalho, usando as tecnologias da informação fora das instalações do empregador. Além de voluntário, o teletrabalho tem de ser compatível com a atividade desempenhada.
É importante não sobredimensionarmos as diferenças do teletrabalho relativamente a um trabalhador que está a trabalhar na empresa presencialmente e nas mesmas circunstâncias. O tratamento tem de ser igual. É importante que entendamos que o empregador tem de respeitar a legislação aplicável, os acordos coletivos, aplicar as regras da empresa e o trabalhador tem a responsabilidade de organizar o seu tempo de trabalho. Ou seja, as cargas de trabalho do trabalhador remoto são equivalentes às dos trabalhadores comparáveis nas instalações do empregador.
Em relação aos direitos coletivos, os trabalhadores remotos têm exatamente os mesmos. O nosso Código do Trabalho garante tudo isso. É tão protetor e tão justo como é o acordo europeu. Do meu ponto de vista, o Código do Trabalho estava adequado às circunstâncias. Agora tem de se aprofundar se existem áreas que precisam de ser olhadas, o que poderá ser feito através da negociação coletiva ou de alterações ao Código do Trabalho.
Eu sou defensora do teletrabalho. É uma forma de organização do trabalho importante. Se tivermos a capacidade de respeitar o que está na lei e nos acordos coletivos, poderá ser muito vantajoso para ambas as partes.
Os trabalhadores em teletrabalho ficam mais desprotegidos? E isso torna o direito a desligar mais urgente?
Se há algo a olhar de uma forma muito séria é o direito a desligar e o direito à privacidade dos trabalhadores. O direito a desligar — já temos França e Itália com legislação nesse sentido — é fundamental em relação à questão do teletrabalho. A garantia da linha de fronteira entre a vida pessoal, privada e familiar tem de ser respeitada.
Portanto, depois de termos dito que as condições dos trabalhadores em teletrabalho são as mesmas que as condições dos trabalhadores que não estão nesse regime, implica que as horas normais de trabalho devem ser mantidas e que o volume de trabalho e a exigência em termos de desempenho não podem ser diferentes em relação a outros trabalhadores. Do meu ponto de vista, temos de passar a uma avaliação centrada nos resultados do que o trabalhador faz e não no número de horas trabalhadas.
Eu sou defensora do teletrabalho. É uma forma de organização do trabalho importante. Se tivermos a capacidade de respeitar o que está na lei e nos acordos coletivos, poderá ser muito vantajoso para ambas as partes.
Como é que os responsáveis pela fiscalização das condições de trabalho, a ACT, por exemplo, se podem adaptar a essa modalidade?
Essa é uma das matérias que também terá de estar em cima da mesa. O Código do Trabalho prevê que possa haver uma fiscalização do empregador durante as horas de trabalho, mas penso que tudo isso tem de ser regulado à luz das experiências atuais. O problema dos abusos não está tanto do lado do trabalhador, mas do empregador e das formas sofisticadas de verificação se o trabalhador está em frente ao computador ou não.
Há outro aspeto importante que tem a ver com o facto de o teletrabalho poder ser, mas não ter de ser, a única forma de organização do trabalho. Temos em muitos países aquilo a que eu chamaria um regime misto. O trabalhador tem x dias por semana ou por mês em que está a trabalhar remotamente, mas depois tem também uma parte das horas de trabalho que é feita na empresa. Esta é provavelmente a forma mais sã de organizar o trabalho para não chegarmos ao isolamento social relativamente aos restantes colegas. Poderia ser uma forma mais correta de expandirmos o teletrabalho.
Acho que os sindicatos podem perder influência se não tiverem capacidade de diversificar a sua base de representatividade, se não procurarem organizar coletivamente trabalhadores que trabalham de outras formas que não apenas as tradicionais
Com os trabalhadores a exercerem as suas funções remotamente, como ficam os sindicatos? Antecipa uma perda de influência?
Não acho que haja perda de influência. Acho que [os sindicatos] a podem perder se não tiverem capacidade de diversificar a sua base de representatividade, se não procurarem organizar coletivamente trabalhadores que trabalham de outras formas que não apenas as tradicionais. Portanto, a primeira coisa que os sindicatos têm que fazer é garantir que as pessoas que trabalham em teletrabalho fazem parte dos seus objetivos em termos de organização sindical.
Depois, se olharmos para aquilo que é o enquadramento legal sobre esta matéria, os trabalhadores têm os mesmos direitos, ou seja, não há qualquer impedimento para a comunicação com os representantes dos trabalhadores. Todos os instrumentos de implementação do teletrabalho reconhecem o facto de que os teletrabalhadores gozam dos mesmos direitos coletivos que os restantes trabalhadores e não pode ser colocado nenhum obstáculo à comunicação sindical. Não vejo que haja qualquer dificuldade.
E como fica a liderança, nesta questão do teletrabalho? Os líderes saem enfraquecidos?
Não acho que o controlo à distância seja sinal de muito boa liderança. Aquilo que é muito importante é que o interlocutor seja muito claro naquilo que são as tarefas a realizar, tenha alguma disponibilidade e abertura para estar em contacto permanente com o trabalhador. Não acho que haja um enfraquecimento das chefias, acho que há uma nova forma de exercer a chefia que é vantajosa para ambas as partes.
Portugal sofre de um problema de fraca produtividade. O teletrabalho poderia ser um trunfo na resolução desse problema?
O problema da produtividade é muito mais profundo do que a questão do teletrabalho. Penso que a produtividade pode aumentar para os trabalhadores em teletrabalho. Existe menos stress, maior autonomia, maior oportunidade de conciliação dos vários tempos da vida das pessoas. Nesse aspeto, pode levar a um aumento da produtividade, mas também pode diminuir.
Há trabalhadores que podem ter maior dificuldade no isolamento social e isso pode levar a um menor nível de produtividade. Se não houver uma clareza nas tarefas que o trabalhador tem de executar, também pode levar a uma redução da produtividade, pode implicar que ele tenha de usar muitas mais horas numa coisa que poderia fazer em muito menos tempo. Não acho que haja um preto e um branco.
Em Portugal, o apetite pela negociação coletiva não passa muito para além daquilo que são as questões salariais e as matérias que têm a ver com o gozo das férias e os tempos de trabalho, mas seria muito importante que a negociação coletiva olhasse também para o teletrabalho.
As empresas portuguesas estão prontas para, por exemplo, adotaram regimes mistos de teletrabalho e trabalho presencial, com maior flexibilidade entre si?
Teoricamente, si. Sempre fui e continuo a ser defensora de que a via legal pode ser complementada pela via contratual, ou seja, parece-me que nesta matéria a negociação coletiva tem um papel muito importante a desempenhar.
Em Portugal, o apetite pela negociação coletiva não passa muito para além daquilo que são as questões salariais e as matérias que têm a ver com o gozo das férias e os tempos de trabalho, mas seria muito importante que a negociação coletiva olhasse também para esta questão do teletrabalho e como é que se pode organizar melhor do ponto de vista de responder àquilo que são as ansiedades dos trabalhadores em conciliarem os seus tempos e ao mesmo tempo aquilo que são as necessidades das empresas.
Entende que a “poupança” que as empresas conseguem com os trabalhadores em teletrabalho se deverá traduzir em aumentos salariais?
Remeto-a mais uma vez para a negociação coletiva. Estas são matérias que têm de fazer parte da negociação coletiva.
Não acho que tenhamos de ter um regime de exceção, em termos de avaliação, relativamente aos trabalhadores em teletrabalho, até porque dizemos que têm as mesmas obrigações e direitos dos restantes trabalhadores da empresa.
Como é que deve ser repensada a avaliação dos trabalhadores, agora que o teletrabalho se tornou uma realidade menos distante?
Volto a insistir no aspeto de que a avaliação do trabalhador deve centrar-se muito mais nos resultados e não no número de horas trabalhadas. O empregador pode ter a tentação de saber se o trabalhador está sempre ao computador durante o horário de trabalho, [mas isso] não é a forma correta de avaliar a prestação do trabalhador, porque se ele tiver feito tudo aquilo que foi pedido, no contexto das suas responsabilidades, ele não tem de estar sentado ao computador. Temos de passar a uma avaliação mais centrada nos resultados e não no número de horas trabalhadas, como se poderá ter a tendência para fazer.
Mais uma vez, acho que a negociação coletiva tem de ter uma palavra a dizer sobre essa matéria. Não acho que tenhamos de ter um regime de exceção relativamente aos trabalhadores em teletrabalho, até porque dizemos que têm as mesmas obrigações e direitos dos restantes trabalhadores da empresa. Agora, se houver um grande recurso ao teletrabalho, tem de haver conversas sobre essa matéria.
Voltar a uma “melhor normalidade” implica que tenhamos a capacidade de analisar quais são os setores potenciais de criação de emprego. Poderá ser uma oportunidade para a economia verde, para uma economia mais amiga do ambiente.
Por fim, quanto ao desemprego, antecipa um aumento em flecha? Os inativos vão continuar a camuflar essa subida?
Acho que isto vai ser tão duro que nem sequer gostaria de conversar sobre matérias de camuflagem. Ainda não vimos nada sobre quais são as consequências económicas e sociais desta pandemia. Estamos a começar a ver. E também não vimos nada, porque não sabemos como é que a pandemia vai comportar-se, ou seja, sabemos que o vírus continua entre nós, que provavelmente teremos de tomar outra vez medidas mais restritivas sobre a liberdade de movimento das pessoas conforme o vírus se comporte, começamos a ver os impactos catastróficos em vários setores de atividade. Por isso, acho que a tendência será que o desemprego aumente e não me parece que haja alguma hipótese de camuflar a relação entre o desemprego e a inatividade.
É difícil de prever qual vai ser o verdadeiro impacto na economia. Corremos o risco de ter alguns setores de atividade a demorar muitos anos até conseguir retomar algum nível de atividade. Ou se calhar temos outros que nem sequer vão retomar os mesmos níveis. E, por isso, voltar a uma “melhor normalidade” implica que tenhamos a capacidade de analisar quais são os setores potenciais de criação de emprego. Poderá ser uma oportunidade para a economia verde, para uma economia mais amiga do ambiente e terá de ser um período no qual as políticas públicas e as políticas de apoio social têm de estar muito presentes no terreno, porque os impactos nas pessoas vão ser assustadores. E quando há impactos nas pessoas assustadores, o impacto na economia faz-se sentir muito depressa também. Se as pessoas não têm capacidade de ter o seu salário, também não têm capacidade de consumir e as economias funcionam à base do consumo. Vai ser muito complicado.
Em relação às políticas públicas e sociais, que avaliação faz das medidas que têm sido lançadas nesse sentido em Portugal, nos últimos meses?
Não posso e não devo falar sobre questões concretas em relação Portugal. Se colocar [no contexto internacional] aquela que tem sido a ação do Governo português, e devo dizer também dos parceiros sociais, em procurar formas de mitigar ao máximo as consequências da crise nas pessoas, Portugal sai-se muito bem na fotografia.
Há de facto uma análise muito positiva em relação à forma como o Governo português, com os parceiros sociais, tem tido a capacidade de encontrar uma série de respostas rápidas, da forma que tem ajudado a não exacerbar demasiado os impactos negativos e imediatos.
Obviamente que os impactos a médio/longo prazo são um desafio para que as políticas públicas, em coordenação com os parceiros sociais, possam encontrar as melhores soluções para não termos o enfraquecimento daquilo que é a capacidade das empresas de gerarem e manterem emprego e daquilo que é a capacidade das pessoas de terem acesso ao mercado de trabalho.
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“Temos de passar a uma avaliação dos trabalhadores mais centrada nos resultados e não no número de horas”, diz Helena André
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