“Temos salários miseráveis. Há margem para subir, mas não com carga fiscal atual”, diz gestor Ricardo Costa

Ricardo Costa defende que "grande desígnio nacional" deve ser subir salários, mas avisa que ónus não pode estar só nos patrões. Carga fiscal deve baixar, diz autor do livro "A felicidade é lucrativa".

Miserável. Ricardo Costa diz que não tem “nenhum problema” em usar esse adjetivo para descrever os salários hoje praticados em Portugal, defendendo que é preciso, sim, engordar os salários, mas o ónus não pode ficar só nos patrões. Há quem baixar a carga fiscal e fazer o rendimento líquido subir, entende o gestor que chegou a ser reconhecido como um dos melhores líderes com menos de 40 anos em Portugal, pela sua visão disruptiva.

Em entrevista ao ECO, o agora chairman do Grupo Bernardo da Costa (do qual foi CEO durante 13 anos, até abril deste ano) salienta também que o salário emocional, de que tanto se começa a falar, não vem substituir o salário real, que chega às carteiras dos trabalhadores. Antes deve complementá-lo, sublinha o também ex-presidente da Associação Empresarial do Minho.

Aliás, Ricardo Costa foi pioneiro ao ter criado o primeiro departamento da felicidade no país e acaba de escrever um livro — “A felicidade é lucrativa” — que reflete essa experiência, mas não deixa de reconhecer que, sem salários, os demais benefícios perdem relevância.

Temos pessoas que não andam constantemente à procura de novas oportunidades, e isso para a empresa traduz-se num benefício financeiro, quer considerando o custo de saída, quer considerando o custo de substituição.

Ricardo Costa

Gestor

Foi pioneiro no país ao ter criado em 2017 o departamento da felicidade no Grupo Bernardo da Costa. Agora escreve um livro que defende que a felicidade é lucrativa. A economia portuguesa sofre de níveis de produtividade cronicamente baixos. A felicidade dos trabalhadores poderia, de algum modo, contribuir para a resolução deste problema?

Têm já aparecido estudos académicos e científicos que relacionam a produtividade com a felicidade e o bem-estar. A minha experiência diz-me que as pessoas, quando se sentem bem no local de trabalho, se sentem recompensadas, são tratadas como pessoas e não como números, quando se aposta na sua formação, acabam por realizar as tarefas de uma forma muito mais prazerosa e em muito menos tempo. Nestes anos em que tenho liderado o Grupo Bernardo da Costa, percebi que, mesmo nos momentos de crise, as pessoas ainda se unem mais e ainda desenvolvem mais à empresa todo o investimento que fazemos nelas ao longo dos anos.

Mas consegue traduzir esses ganhos em números?

Quando me perguntam o que as empresas ganham em ter um departamento da felicidade, destaca quatro fatores. Primeiro, baixo turnover. Temos pessoas que não andam constantemente à procura de novas oportunidades, e isso para a empresa traduz-se num benefício financeiro, quer considerando o custo de saída, quer considerando o custo de substituição. Depois, o absentismo. Temos absentismo quase zero na organização e isso traduz-se em níveis de produtividade mais altos. Em terceiro lugar, temos saído das crises sempre muito melhor do que entramos, e atribuo-o às pessoas darem ainda mais de si nesses momentos difíceis. Por fim, o ambiente de trabalho. Quando fazemos qualquer tipo de inquérito, o problema que vem sempre identificado com o número um é a comunicação. Notamos uma melhoria enorme a esse nível.

Como disse, há já vários estudos que indicam que o bem-estar dos trabalhadores é lucrativo. A Ordem dos Psicólogos já avisou várias vezes que o stress e absentismo estão a custar muitos milhões às empresas. As empresas portuguesas estão suficientemente conscientes? Porque é que não estão mais alertas?

Uma das principais explicações que tenho tem que ver com o gap de qualificações que existe entre trabalhadores e lideranças. Atribuo aos níveis de qualificação das lideranças o facto de ainda não terem percebido que o lucro não é tudo, que as pessoas de facto são importantes e que se perdem mesmo muitos milhões de euros com as questões de saúde mental, do absentismo e turnover. Mas isto está a mudar.

A pandemia veio ajudar o cenário a mudar?

Sim, acho que a pandemia foi um impulsionador de mudança de mentalidade. Vemos cada vez mais empresas a querer entrar nos rankings que medem as melhores empresas para trabalhar. É sinal que há uma preocupação constante. O próprio mercado encarregou-se de demonstrar às empresas que se não se preocupassem com isso teriam muita dificuldade em atrair talentos.

Portanto, a escassez de profissionais impulsionou essa atenção das empresas.

Completamente. Quando perguntamos aos empresários qual é o seu principal problema, a dificuldade em recrutar pessoas é o número um. Esta luta pelo talento entre as empresas demonstrou que as empresas têm de ser atrativas para trabalhar. Mas não podem vender uma marca que é ótima para trabalhar e, quando alguém entra lá dentro, não corresponde àquilo que foi anunciado. Os líderes têm de saber, mais do que liderar um processo, liderar as pessoas.

Fala em felicidade. Não podemos ignorar que o salário está também ligado a esse sentimento. Os ordenados portugueses tradicionalmente comparam mal com o quadro europeu. Logo aí, a possibilidade de felicidade dos trabalhadores portugueses não está minada?

Sim. Há um capítulo do meu livro em que digo que o grande desígnio nacional deve ser o aumento dos salários. Até falo mais no aumento do rendimento líquido disponível dos portugueses. Se falarmos só dos salários, pomos o ónus todo no lado do empregador. Quando falamos do rendimento líquido disponível, partilhamos esse ónus com a carga fiscal que o Governo impõe sobre os salários. Aliás, digo no livro que o salário emocional, que é tudo isto que falamos até agora, nunca pode substituir o salário real. O salário emocional tem que ser sempre um complemento do salário real. É verdade que em Portugal temos salários miseráveis. Não tenho nenhum problema em usar essa expressão.

Quando se faz um aumento salarial, o que vemos é que uma parte muito significativa vai para o Estado, e uma pequena parte vai para o trabalhador. Isso desmotiva qualquer empregador a aumentar os salários.

Ricardo Costa

Gestor

Como resolvemos essa situação?

Para que consigamos ter salários melhores, sem dúvida que as empresas têm uma responsabilidade muito grande. Mas o Governo tem também uma responsabilidade muito grande, ao não taxar como taxa atualmente o trabalho em Portugal. E os trabalhadores também têm de ter apetência para se adaptarem, para se cultivarem, para se capacitarem para fazer face a todas estas transições, como a tecnológica.

Em relação aos salários brutos, as empresas portuguesas têm ou não capacidade para pagar melhores salários?

Não tenho uma fórmula mágica. Acredito que há margem para subirmos salários, mas não pode ser com a carga fiscal atual. O que acontece neste momento é que, quando se faz um aumento salarial, o que vemos é que uma parte muito significativa vai para o Estado, e uma pequena parte vai para o trabalhador. Isso desmotiva qualquer empregador a aumentar os salários. Não se pode dissociar uma coisa da outra.

Como é que viu a polémica que se gerou em torno da baixa do IRS? Sendo um assunto que afeta tão diretamente o bolso dos portugueses, o Governo devia ter sido mais claro desde o início?

Acho que sim. Acho que o Governo deixou arrastar por demasiado tempo a perceção que a descida ia ser mais significativa do que na realidade veio a ser.

Ricardo Costa foi presidente da da Associação Empresarial do Minho. HUGO DELGADO/LUSA

Voltando à felicidade. Sei que entende que não há uma fórmula mágica, mas que soluções é que têm tido maior sucesso junto dos trabalhadores?

Tudo o que passa por envolver as pessoas nos processos de decisão, reconhecer as pessoas pelo aquilo que fazem e valorizá-las no que se refere a tudo o que tem a ver com formação e capacitação, tudo o que tem a ver com a questão do erro. Vivemos numa sociedade que criminaliza o erro. Alguém que falha é logo rotulado de falhado, e isso inibe as pessoas de serem mais criativas e de inovarem. Precisamos que as lideranças percebam que o erro faz parte do processo.

E a personalização, que papel tem no cultivo dessa felicidade?

Muitas vezes generalizamos nossas pessoas dentro das organizações, mas a verdade é que cada um tem as suas expectativas. Temos de estar atentos a essas questões individuais. Isso relaciona-se muito com a questão da flexibilidade e do teletrabalho e do trabalho híbrido.

Onde fica a semana de trabalho de quatro dias nessa equação? É um modelo que tenha ponderado no Grupo Bernardo da Costa?

Ponderamos. Acredito que em determinadas funções a inteligência artificial vai acelerar a semana de quatro. Também não tenho dúvidas que vamos ter todos que trabalhar menos horas no futuro do que hoje. Mas voltamos à questão da produtividade. Ainda somos um país com uma componente industrial muito forte. Esta transição para a semana de quatro dias nesses setores vai demorar seguramente. No futuro vamos trabalhar menos, mas essa transição vai variar de setor para setor.

Estamos a ponderar reduzir a carga horária de 40 para 36 horas semanais, oferecendo uma tarde ou uma manhã aos colaboradores.

Ricardo Costa

Gestor

Mas ponderaram participar no projeto-piloto dinamizado pelo Governo?

Ponderamos. Estamos a ponderar reduzir a carga horária de 40 para 36 horas semanais, oferecendo uma tarde ou uma manhã aos colaboradores. Temos vários benefícios que temos vindo a implementar. Um que está previsto estudar no final do ano tem que ver com a redução da carga horária semanal, para fazermos também nós mesmo um teste para perceber se os níveis de felicidade e de produtividade aumentam.

Escreveu num artigo de opinião que a felicidade é uma competência de trabalho que também se treina. De que modo?

Primeiro, porque a felicidade depende de cada um de nós. Por muito que a empresa se esforce para tornar o ambiente o mais saudável possível, onde impera o bem-estar, a segurança, e a saúde, se cada um de nós decidir não ser feliz, vai sempre encontrar uma situação que não vai agradar. Podemos ser treinados, através de processos de formação e coaching, para olhar para as situações sob um ponto de vista diferente. A mesma situação pode ser transformada ou num grave problema ou numa oportunidade que nos vai causar a felicidade. A felicidade também depende de fatores externos, mas o primeiro fator é a forma como encaramos as situações.

O departamento da felicidade foi criado em 2017. Hoje parece confiante em relação às vantagens de o ter, mas ao longo deste percurso alguma vez teve dúvidas?

Nunca tive dúvidas que pessoas felizes tornam as empresas mais produtivas, mas houve muitos desafios ao longo destes sete anos. Mesmo dentro do grupo, houve pessoas que, quando o departamento da felicidade surgiu, olharam com muita desconfiança. Temos pessoas que não valorizam grande parte das coisas que fazemos no departamento da felicidade. Felizmente são uma minoria. Ainda assim, de seis em seis meses, vamos reavaliando tudo aquilo que fazemos no departamento da felicidade.

Chegou a dizer que, no início, tinha sido visto como lamechas pelos seus pares. Isso mudou?

Completamente. Acho que a mentalidade mudou e que as pessoas reconhecem que a melhor forma de termos empresas produtivas é cuidar das pessoas que tratam dessa produtividade.

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