Daniel Proença de Carvalho defende que o PSD precisa de uma reforma urgente, mostrando-se pouco crente no espírito reformista deste novo António Costa com maioria absoluta.
Daniel Proença de Carvalho acaba de lançar o seu livro de memórias, de quase 60 anos de carreira, “Justiça, Política e Comunicação Social – Memórias do Advogado”, que revela, ao longo das 375 páginas, uma análise sobre a Justiça, os media e a política em Portugal, desde o final da década de 1960 até à atualidade.
A Advocatus foi conversar com o advogado, que está agora reformado, mas que não deixou de dar a sua visão do mercado da advocacia e da política nacional, defendendo que o PSD precisa de uma reforma urgente, mostrando-se pouco crente no espírito reformista deste novo António Costa com maioria absoluta. E que aproveita ainda para abrir os olhos ao que deve ser o papel e caminho da Iniciativa Liberal.
O ex-presidente da Uría Menéndez – Proença de Carvalho diz que há um elemento que explica o que chama de “fracasso” do sistema judicial que é a ausência de escrutínio e por não haver responsáveis pela “performance do sistema”. E não deixa de apontar o dedo às relações demasiado próximas entre alguma magistratura e o Ministério Público.
Como tem passado os seus dias desde que se reformou?
Muito bem. A reforma coincidiu com a pandemia, passei o confinamento no Alentejo, onde eu e a minha mulher temos uma empresa agro-pecuária. Deu para viver o tempo da natureza, a evolução das plantas, a transformação das cores do campo, a chegada e a partida das aves.
Muito bom. E tive tempo, bem raro de que me privei durante talvez demasiados anos. Mais música, mais cinema, mais leitura e a escrita de um livro.
Vamos começar pelo seu livro que, apesar de revelar uma vida cheia em vários setores, a Justiça é o tema mais recorrente. A sua desilusão com a Justiça nunca o levou a desistir de ser advogado?
Não, desde logo porque precisava de trabalhar e não conheço profissão melhor. E as dificuldades e algumas desilusões deram-me alento para continuar a luta pelo direito e pela Justiça.
Este livro é também uma espécie de resposta a quem o tentou “derrubar”? Não só pelo conteúdo do livro mas também pelo impacto e recetividade?
Sinceramente, até tenho dificuldade em perceber a pergunta. Escrevi sem um objetivo, mais a pensar nos meus netos, sempre gostei de lhes contar histórias, agora queria contar-lhes um pouco do que andei a fazer por cá. Fiquei surpreendido com o impacto e a recetividade que o livro está a ter.
O fracasso da Justiça tem a ver exatamente por não haver responsáveis pela performance do sistema.
O que falta atualmente na Justiça? Prestação de contas por parte de ambas as magistraturas?
Neste livro não pretendo fazer uma análise sobre o estado da justiça, nem das causas da quebra de confiança que a afeta, menos ainda faço quaisquer propostas de reforma. Propostas fi-las em múltiplas ocasiões e em diversos fóruns em que participei, sem grande resultado, reconheço. O livro é a descrição de experiências que vivi nas três áreas em que tive intervenção pública: Justiça, Política, Comunicação Social. Os leitores tirarão ou não as conclusões que entenderem.
Mas sim, uma das causas da crise do sistema radica na falta de escrutínio exterior, de lideranças que corrijam os erros e as insuficiências, as instituições fechadas sobre si próprias dificilmente evoluem e progridem.
Fizemos grandes progressos na saúde, na educação, na Segurança Social, nas infraestruturas, a Administração Fiscal tornou-se muitíssimo eficiente, por que razão não conseguimos os mesmos resultados na Justiça? A esta questão não tem sido encontrada uma resposta convincente. A meu ver, o fracasso tem a ver exatamente por não haver responsáveis pela performance do sistema, ao contrário do que sucede com as outras funções do Estado, que têm ministros responsáveis, que respondem perante o eleitorado, pelo menos de 4 em 4 anos.
A Justiça que existe hoje é mais benéfica para os menos conhecidos e menos para os mais ”poderosos”?
As generalizações são quase sempre redutoras quando não falsas. Os casos que constam do livro são de pessoas de enorme mérito, com sucesso nas áreas em que intervieram ou ainda intervêm, que foram vítimas de perseguições — antes do 25 de Abril, no PREC e depois –.
Em todos eles pressente-se um preconceito, uma cultura de ressentimento anti-elitista, para não dizer “populista”; acredito que se não fossem pessoas categorizáveis de “poderosos”, os processos teriam caído à nascença por falta de motivo. O que não significa que as coisas funcionem melhor quando se trata de pessoas anónimas. Aliás sempre notei uma diferença entre a justiça criminal e a justiça cível ou comercial.
Nestas áreas, pode haver muita morosidade, por vezes incompetência, mas não senti paixões, estados de alma, preconceitos, como senti nos casos criminais. Além de que para o contencioso civil e comercial há a alternativa da jurisdição arbitral, que tem crescido e se tornou solução para os casos mais complexos.
Fala num ponto interessante no livro que é alguma postura de complexo social por parte dos atores da Justiça. Quer concretizar?
A magistratura perdeu estatuto social e isso é mau. Deveria ser melhor remunerada, deveria atrair talento, não deveria ser uma carreira, mas antes ser aberta, com a entrada de juristas de mérito com experiências diversificadas. Encontrei magistrados que olham com desconfiança e até animosidade contra os advogados, os empresários, com estatuto económico elevado.
Encontrei magistrados que olham com desconfiança e até animosidade contra os advogados, os empresários, com estatuto económico elevado.
Foi o autor da descrição dada ao juiz Carlos Alexandre de “super juiz dos tablóides”. Se o tivesse aqui à sua frente, sem filtro, sem diplomacia, o que lhe diria?
Risos… Talvez lhe sugerisse que lesse o meu livro, meditasse sobre uma frase de Salgado Zenha, que cito de memória “Para ser juiz não basta usar a veste de juiz, é preciso ter alma de juiz”.
E tivesse presente o que sucedeu aos “super-juízes” António di Pietro, Baltzar Garzón, Eva Joli, Sérgio Moro…
Não resisto a fazer-lhe uma questão – tendo passado pela comunicação social em décadas bem diferentes – se concorda que a comunicação social é manipulável? Se sim, por quem, em concreto? Pelos respetivos conselhos de administração ou pelas fontes?
Claro que é manipulável, pelos patrões (públicos ou privados), pelas fontes, pelo mercado. Mas considero que em Portugal existe abundante pluralismo nos media em geral, os jornalistas gozam de independência, há comentadores das várias correntes de opinião, só se deixa enganar quem gosta de ser enganado. Mas, claro, também há muita mentira, enviesamento, ataques pessoais, alguns ódios, especialmente nas redes sociais, onde não existem filtros.
O seu livro não fala da sua passagem pela Uría. Alguma vez se arrependeu dessa fusão?
Não, de modo algum. O livro é uma pequena, pequeníssima parte, das experiências por que passei. Não falei da Uría por não ter vindo a propósito. Aliás, continuo a fazer parte do Patronato da Fundação Professor Uría e até presido ao Prémio Rodrigo Uría que anualmente distingue trabalhos na área do direito da arte.
O seu nome permanece na sociedade. Tem lá o seu filho Francisco como sócio. O nome Proença de Carvalho é para continuar neste escritório Internacional?
Já não sou sócio do escritório, não tenho voto nem influência nas suas decisões.
Como vê o futuro próximo dos escritórios de advogados? Ainda há espaço para crescerem muito mais?
A advocacia é um serviço absolutamente necessário aos cidadãos, às empresas e até ao setor público (com o qual nunca trabalhei como advogado).
Os escritórios cresceram porque houve procura dos seus serviços. Numa economia de mercado, nunca sabemos se a procura continua ou não a crescer. Acredito que se o País continuar a crescer economicamente, os serviços de advocacia terão de acompanhar.
Quando comecei a minha carreira de advogado ninguém imaginava o enorme desenvolvimento e sofisticação que a advocacia veio a conhecer.
A nossa direita precisa urgentemente que o PSD encontre um rumo e uma liderança com visão reformista, com projeto distanciado da extrema-direita.
Lembro-me que foi muitas vezes “candidato” a candidato para ocupar o cargo de PGR. Isso foram só meros boatos ou ia mesmo acontecendo?
Nunca, jamais isso esteve para acontecer.
Qual foi para si o melhor ou a melhor PGR desde a nossa democracia? Cunha Rodrigues sei que acha que não foi…
Não vou classificar os magistrados que passaram pela PGR, com perfis muito diferentes. Na minha opinião falta experimentar alguém que não pertença às corporações, com um olhar de fora do sistema, com outras experiências de vida.
Concorda que um dos problemas da Justiça atualmente é o facto de termos juízes de instrução mais acusadores do que juízes dos direitos, liberdades e garantias?
Quem passou ou passa pela Justiça Criminal sabe que existe uma excessiva proximidade (para não utilizar outro termo menos simpático) entre o Ministério Público e os juízes de instrução criminal; vivem paredes meias, sentam-se no mesmo plano, superior ao dos advogados, almoçam juntos, vivem o mesmo ar. Isso não é saudável. É claro que não há “igualdade de armas” entre acusação e defesa; o Ministério Público tem privilégios, alguns que resultam da lei, por exemplo, da decisão de pronúncia, a defesa não pode recorrer, mas de não pronúncia o Ministério Público já pode. Em boa verdade, a fase da instrução está desprovida de real conteúdo, especialmente quando os inquéritos duram uma eternidade, sem prazos, acumulando milhões de páginas.
Foi alvo, pontualmente, de alguma imprensa mais agressiva. Alguma vez pensou em processar algum jornalista ou jornal?
Não, nunca processei jornalistas ou comentadores, mesmo quando me fizeram ataques pessoais, com puras mentiras ou grosseiras deturpações da verdade. É um preço que temos de pagar quando tomamos atitudes contra a corrente.
A IL deve estar disponível ,para cooperar com os partidos do centro, com o PSD e com o PS.
Escreveu no final do seu livro que a Ucrânia ficará sozinha. Depreendo que acha que a NATO e a UE estão a fazer pouco por este País?
Terminei a escrita do livro antes da invasão. Quando o livro estava a entrar em impressão, pedi ao editor que me permitisse acrescentar uma pequena nota sobre o tema. Quando a escrevi não tinha ainda havido a enorme onda de solidariedade com o povo ucraniano. Acho que a NATO e a UE estão a fazer o possível para ajudar a Ucrânia sem provocar um conflito generalizado. Claro que é terrível a Europa e a América estarem tolhidos perante uma agressão tão brutal como a que Putin desencadeou. Mas a Europa e em especial a Alemanha podem e devem fazer mais para ajudar a Ucrânia.
Falemos de política nacional. A maioria absoluta é melhor do que ter sido relativa?
Acho que as maiorias absolutas são preferíeis à instabilidade de governos sem apoio parlamentar maioritário. E geram maior responsabilidade aos chefes do Governo.
Em entrevista ao Negócios mostrou-se cético em relação à capacidade reformista de António Costa. Porquê?
Portugal tem um problema que os 48 anos de democracia não conseguiram resolver: o fraco crescimento económico que não permite financiar os sistemas públicos de apoios sociais, a saúde, a educação, a Segurança Social, as infraestruturas. Só o conseguimos com o apoio da UE e o recurso ao endividamento e mesmo assim tivemos três crises da dívida pública que nos obrigaram a recorrer à assistência financeira sob a égide do FMI. Países que saíram da órbita soviética, muito mais pobres do que nós, estão a ultrapassar-nos. Para superar este gravíssimo problema, precisamos de reformas de pendor liberal: menos Estado, melhor Administração Pública, menos carga fiscal, mais investimento privado, externo e interno, mais liberdade económica.
Estas reformas, o PS não as fará.
Concorda com Cavaco Silva que disse há dias que Costa não tinha coragem política para isso?
Não é uma questão de coragem. Em boa verdade, o Prof. Cavaco também não fez essas reformas, os partidos da direita também não estão isentos dessa responsabilidade. A questão é mais profunda, não há um ambiente cultural propício às reformas. Pelo contrário, a cultura dominante, incluindo na comunicação social, na Justiça, na opinião pública, é hostil às reformas. Basta ver que a solução preconizada para os problemas que nos afetam é sempre a exigência de mais meios para a Administração Pública, a começar pela Justiça. Se fôssemos a atender às reivindicações de mais meios que todos os setores do Estado fazem diariamente, lá iríamos cair mais uma vez nos braços dos credores.
Ter trocado Siza Vieira por António Costa Silva foi um erro de casting de Costa?
Pedro Siza Vieira foi um excelente ministro, viu-se a sua eficácia no apoio às empresas durante a pandemia. É uma pessoa muito inteligente, com uma experiência diversificada no mundo das empresas, com capacidade de realização.
Falta experimentar como PGR alguém que não pertença às corporações, com um olhar de fora do sistema, com outras experiências de vida.
Foi advogado de José Sócrates antes da Operação Marquês. Porque não fala de uma das personalidades mais controversas que foi, no seu livro?
Não falo de José Sócrates, como não falo de outros Primeiros Ministros que conheci e de quem fui advogado, por nenhuma razão especial. Apenas porque escrevi sobre experiências marcantes por que passei e nessas não estava José Sócrates, até porque não tive com ele qualquer interação política. Se tivesse escrito sobre os políticos que conheci, o livro seria outro e sobre José Sócrates teria dito que o conheci num programa da SIC da Margarida Marante, em que, além de eu e ele, participava Paulo Portas; normalmente estávamos em discordância, mas logo me apercebi de que estava perante um político muito preparado, muito trabalhador, com uma visão para o País que o futuro veio a reconhecer acertada e que foi “atropelado” pela maior crise financeira e económica desde 1929. E poderia dizer muito mais dele e doutros primeiros-ministros, mas isso seria outro livro.
A justiça tem sido utilizada como arma política?
Em todos os momentos históricos houve casos de utilização da justiça como arma política, é uma constante desde que há humanidade.
Foi diretor de campanha de Freitas do Amaral e próximo de Mário Soares. Qual o marcou mais?
Mário Soares é a grande figura da democracia, deu um contributo inestimável para a normalização democrática, para a nossa entrada na União Europeia, foi um inflexível lutador pelas liberdades e pelo Estado de Direito. Um homem providencial no tempo que viveu.
Freitas do Amaral foi também um político coerente e corajoso na defesa dos valores da democracia cristã em que acreditava. Um homem muito inteligente, um professor brilhante que ensinava direito e ciência política com uma clareza invulgar. Um amigo sempre.
Esteve filiado no PCP, vai para o PS após o 25 de Abril e depois desfilia-se. Atualmente já teceu elogios à IL. E o PS e o PSD? Como os define, tal como são atualmente?
Quem vive muitos anos, em momentos históricos muito diferentes, evolui na sua visão do Mundo. Na frescura da minha juventude, acreditei nos “amanhãs que cantam”.
Quando se deu o 25 de Abril há muito que a ideologia comunista me tinha desiludido por completo. Passei a acreditar na democracia política pluralista, no Estado de Direito e na economia de mercado. Continuo fiel a esses princípios. A nossa direita fracionou-se, o seu espaço foi envenenado pela extrema-direita, precisa urgentemente que o PSD encontre um rumo e uma liderança com visão reformista, com projeto claramente distanciado da extrema-direita. A Iniciativa Liberal tem um papel na afirmação de uma cultura de maior abertura à iniciativa privada, sem cair em radicalismos que não encontram expressão na nossa sociedade. E deve estar disponível ,para cooperar com os partidos do centro, com o PSD e com o PS, desde que isso seja útil para a sua visão.
Por fim pergunto-lhe uma pergunta difícil. De todos os casos que descreve no seu livro, que patrocinou como advogado, qual foi o mais desafiante (pelo bom ou pelo mau)?
Sim, a resposta é difícil.
Marcou-me muito o “processo da Herança Sommer”, talvez por ter sido o primeiro grande embate com a Justiça e a desilusão que daí resultou. Mas todos os casos que relato no livro me marcaram, pela enorme dificuldade em fazer vingar a razão e a justiça, na defesa de pessoas vítimas de gravíssimos atropelos aos seus direitos.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
“Uma das causas da crise da Justiça radica na falta de escrutínio exterior”, diz Daniel Proença de Carvalho
{{ noCommentsLabel }}