Exclusivo “A tolerância é um dos princípios basilares do liberalismo” (II)

O ECO está a publicar excertos do livro "Liberalismo: a ideia que mudou o mundo", de Carlos Guimarães Pinto, que será lançado a 5 de junho. Leia agora um excerto do capítulo sobre tolerância.

A tolerância sustenta e promove a liberdade individual, o progresso social e a harmonia cívica, sendo um dos princípios basilares da vertente cultural e social do liberalismo. A tolerância enquanto princípio representa a aceitação da diversidade, mas também o reconhecimento e o respeito por essas diferenças.

A tolerância é a recusa de interferir nos comportamentos ou ações com as quais não se concorda. Essa definição implica duas características essenciais: a desaprovação de determinado comportamento e a recusa em impor as próprias opiniões aos outros. É importante referir isto, porque ninguém se poderá dizer tolerante se aplicar essa suposta tolerância apenas a comportamentos e ações com as quais concorda. Neste contexto, por definição, tolerar é a capacidade de não interferir com aquilo de que se discorda. Para não interferir com aquilo com que se concorda não é preciso ser tolerante.

Por outro lado, é importante distinguir a tolerância da indiferença moral ou do relativismo moral. A indiferença moral implica a falta de interesse nas consequências morais das ações dos outros, enquanto o relativismo moral sugere que todas as moralidades são igualmente válidas. A tolerância não implica indiferença ao nível individual, nem relativismo, apenas a capacidade de não impor aos outros as nossas visões. A tolerância exige uma base moral firme que permita, simultaneamente, reprovar certas ações e não interferir nelas.

A tolerância é crucial para a coexistência pacífica em sociedades plurais e diversas. Ao aceitar que os indivíduos têm o direito de seguir as suas próprias regras e visões sobre o que é o bem, mesmo que sejam radicalmente diferentes das nossas, a tolerância promove a liberdade individual e a harmonia social. Permite a cada um ser livre de se expressar como bem entender, ser único, como se espera que sejam os seres humanos. Além disso, a tolerância é uma componente essencial do progresso social e intelectual. Permitir que diferentes ideias e modos de vida floresçam e sejam debatidos livremente facilita a descoberta da verdade e a inovação.

Um dos primeiros apelos filosóficos à tolerância veio do poeta inglês John Milton, no seu panfleto Areopagítica de 1644. Milton protestou contra a Portaria de 1643 do Parlamento para a Regulamentação da Impressão, que exigia que todas as publicações de imprensa fossem autorizadas pelo governo antes de serem publicadas. O próprio John Milton tinha sido censurado por publicar panfletos em defesa do divórcio, visto como herege e promotor da libertinagem sexual. Milton argumentou que a virtude só pode ser alcançada se também se conhecer o vício, que censores não são infalíveis e que as opiniões devem ser defendidas e contrariadas, e não silenciadas. Milton foi um dos primeiros pensadores a fornecer uma defesa fundamentada da liberdade de escrever e publicar. Anos mais tarde, John Locke, na sua Carta sobre a Tolerância (1689), argumentou que o papel do Estado é proteger a vida, a liberdade e a propriedade, e não se imiscuir nas almas dos homens.

A tolerância é essencial para uma aproximação à verdade. A verdade só pode ser descoberta através da competição livre de ideias. Uma pessoa só pode chegar à verdade, ou melhor, à sua verdade, ouvindo e considerando argumentos e opiniões diferentes. Se uma pessoa só está exposta a uma opinião, nunca irá perceber se essa opinião está errada. A exposição a muitas opiniões, mesmo que sejam quase todas erradas ou absurdas é essencial para a formação de uma opinião pessoal mais próxima da sua verdade. Uma pessoa é livre de não querer estar exposta a certas opiniões ofensivas, absurdas ou erradas, mas não deve ser impedida de as ouvir se tal for o seu desejo. Este processo de deliberação é fundamental para o progresso intelectual e moral.

Há uma distinção importante no pensamento liberal entre a vida pública e a privada. As pessoas devem ser livres para acreditar nas ideias mais absurdas, desde que essas crenças (ou, melhor, a atuação sobre essas crenças) não interfiram nos direitos dos outros. Este princípio permite a existência de uma diversidade de opiniões e modos de vida.

A tolerância no pensamento liberal é uma celebração da diversidade humana e uma defesa fervorosa da liberdade individual, essenciais para a construção de sociedades livres e prósperas.

Uma das principais ameaças à tolerância é o fundamentalismo, seja de natureza religiosa, ideológica ou política. Os fundamentalistas acreditam possuir a verdade absoluta e, portanto, sentem-se justificados a impor as suas crenças aos outros. Quando esses fundamentalismos se fundam em utopias, sejam de âmbito religioso ou político, tornam-se particularmente perigosos. Quem acredita perseguir uma utopia, considera que todos os meios são justificados para atingir os seus fins, sendo o primeiro desses meios a eliminação de quem pensa de forma diferente, podendo colocar em causa essa utopia. Este tipo de intolerância é incompatível com uma sociedade livre, na qual a diversidade de opiniões e modos de vida deve ser respeitada. O fundamentalismo pode ter várias facetas e níveis de gravidade, desde a cultura de cancelamento até pelotões de fuzilamento e genocídios.

Muitas vezes, a intolerância em relação ao comportamento dos outros é justificada pela alegação de que certas atividades prejudicam aqueles que as praticam. No entanto, essa justificação pode levar à supressão de praticamente qualquer atividade, ameaçando a própria liberdade. A proibição do uso de drogas recreativas é um desses exemplos que frequentemente resulta em mais danos para a sociedade devido à criminalização do que o próprio uso das substâncias.

A prática da tolerância, como um princípio liberal, enfrenta desafios constantes num mundo em rápida mudança. A tecnologia e a comunicação na era digital, por exemplo, expõem continuamente as pessoas a uma variedade de culturas e opiniões. Esta exposição tanto pode tornar as pessoas mais tolerantes como pode causar mais reações adversas por expor pessoas a comportamentos que desconheciam. A difusão do ódio e da intolerância também se tornou mais fácil. Em última análise, a tolerância no pensamento liberal é uma celebração da diversidade humana e uma defesa fervorosa da liberdade individual, essenciais para a construção de sociedades livres e prósperas.

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