Cadeia dos combustíveis fósseis e queima de gás pressionam descarbonização do planeta

Para a AIE, as emissões provenientes da extração, processamento e transporte de fósseis não mostram sinais de abrandamento, e representam até um risco na concretização das metas de descarbonização.

Numa altura em que não existe outro sentido senão aquele que vai em direção à descarbonização da economia, as emissões de gases com efeito estufa (GEE) provenientes da extração, processamento e transporte de petróleo e gás natural não mostram sinais de abrandamento, e representam até um risco na concretização das metas “verdes” a nível global, assim como a queima do gás “em excesso” nas unidades de processamento.

De acordo com os dados partilhados pela Agência Internacional de Energia (AIE), estas emissões estão a evoluir num sentido contrário face àquele que permite que a economia mundial se torne neutra em carbono em meados do século, sendo por isso urgente que se inverta o sentido de marcha.

Numa análise que assume a metáfora de um “semáforo“, a entidade avalia anualmente o ritmo de descarbonização de mais de 50 componentes essenciais para a transição energética, classificando o desempenho como verde, amarelo ou vermelho. O fornecimento de petróleo e gás natural, as emissões de metano e a queima de gás aparecem marcados a vermelho — juntamente com outras 17 componentes, o que significa que não estão alinhadas com o objetivo de atingir a neutralidade carbónica até 2050.

Em 2021, ano marcado pela reabertura da economia depois de um longo confinamento potenciado pela pandemia, as emissões de GEE provenientes da extração, processamento e transporte de petróleo e gás a nível global aumentaram 5%, para cerca de 5,5 gigatoneladas (Gt) de dióxido de carbono equivalente (CO2eq). Em 2022 foram libertadas 5,1 Gt de CO2eq a nível global. Estas emissões detêm uma fatia equivalente a 15% do total das emissões globais de gases com efeito de estufa do scope 1, isto é, emissões diretas.

Segundo a agência, cerca de metade destas emissões provém da queima de gases e metano. São libertadas durante as operações petrolíferas e de gás e, se só nos focarmos nas emissões de gases e metano em específico, em 2021, registou-se um aumento de 5%, para 120 milhões de toneladas (Mt).

As emissões do setor do petróleo e do gás estão cada vez mais debaixo dos holofotes à medida que os governos e as empresas estabelecem objetivos de redução de emissões e os investidores pressionam por dados mais transparentes e de objetivos mais ambiciosos.

Agência Internacional de Energia (AIE)

Estes valores fazem soar alarmes em Paris, casa do Acordo de Paris, assinado em 2015, e onde a AIE está sediada. A entidade considera que “as emissões de GEE estão a aumentar, tornando mais difícil atingir o declínio verificado no cenário de emissões líquidas zero até 2050”.

De acordo com o cenário de net zero da AIE, até meados do século, as emissões totais de metano provenientes de operações de combustíveis fósseis terão de diminuir cerca de 75% entre 2020 e 2030. O facto é que as emissões de metano são, atualmente, a segunda principal causa do aquecimento global. Com isto em mente, a AIE é perentória: “as emissões de metano provenientes do petróleo e do gás têm que ser as primeiras a ser eliminadas”.

Para concretizar essa redução, serão necessários mais de 600 mil milhões de dólares em investimentos, nomeadamente, em tecnologias para a deteção e medição atempada de fugas, sendo estas consideradas as duas estratégias mais eficazes para melhor alcançar este objetivo. “Este montante é apenas uma fração do rendimento recorde e inesperado que os produtores de petróleo e gás obtiveram em 2022 — um ano de subida dos preços da energia no meio de uma crise energética mundial”, argumenta a AIE.

Fósseis “em excesso” resultam em excesso de emissões

As emissões resultantes da queima de combustíveis fósseis em “excesso”, nomeadamente o gás natural associado à produção de petróleo, também arriscam comprometer o objetivo de atingir a neutralidade carbónica em meados do século. Na análise da AIE, esta componente encontra-se marcada a “vermelho” por estar a evoluir no sentido contrário à descarbonização.

Pode parecer estranho falar em combustíveis fósseis em excesso, numa altura em que, face à guerra entre Rússia e Ucrânia, a União Europeia se debateu com a dificuldade de ter acesso a estes bens em 2022, cujos preços disparam, tornando-os mais atrativos para a venda. Então, porque é que haveria um chamado “excesso” e porque é que este seria queimado ou simplesmente libertado na atmosfera, gratuitamente, em vez de vendido e efetivamente utilizado pelas economias?

A queima ou libertação do gás relacionado com a produção de petróleo já é uma prática antiga, com cerca de 160 anos, justificada por várias razões, relata o Banco Mundial. Nomeadamente, pode ser feito por motivos de segurança: esta prática ajuda a reduzir a pressão nos processos, gerindo variações de pressão inesperadas desta forma, as quais poderiam, de outro modo, dar azo a acidentes graves.

Existem também obstáculos no racional económico: sendo os campos de extração de petróleo muitas vezes localizados em locais isolados, pode ser desafiante em termos de logística e custos capturar e dar um uso ao gás que resulta das operações. Por fim, a regulação pode ser também um obstáculo. Nalguns países, não é permitido recolher e vender este gás. Além disso, por vezes as penalizações previstas na lei para a queima ou libertação deste excesso podem compensar face ao investimento numa estrutura de captação e aproveitamento.

Durante a pandemia, a prática foi suspensa devido às medidas de confinamento que obrigaram a “congelar” as economias, em todo o mundo. Mas à medida que decorriam os processos de desconfinamento, e os parques petrolíferos voltavam a operar a todo o gás, as taxas de queima de combustível em excesso aumentaram. Já em plena crise energética, no ano passado, este fenómeno aumentou gravemente. Em agosto de 2022, a consultora de energia norueguesa Rystad alertou que a Rússia estaria a queimar gás, ou a lançá-lo para a atmosfera, na ordem dos 4,34 milhões de metros cúbicos de gás natural — o equivalente a dez milhões de euros — por dia, que diziam respeito a quantidades antes destinadas ao abastecimento dos mercados europeus. Neste caso, as razões da queima são desconhecidas, de acordo com a consultora.

De acordo com os dados da AIE, globalmente, 143 mil milhões de metros cúbicos (bcm) de gás natural “em excesso” foram queimados em 2021. No ano seguinte, esse valor caiu em 5 bcm para 139 bcm, uma redução de cerca de 3% face a 2021, informa a AIE. Isto resultou na libertação direta de 500 Mt de CO2 na atmosfera.

Em 2022, com os preços do gás natural a atingirem máximos históricos na Europa, este tipo de queima de gás foi considerada pela AIE como um “desperdício extraordinário de valor económico” e um risco significativo no agravamento das alterações climáticas e da qualidade da saúde humana.

“Reduzir a queima e trazer este gás de volta ao mercado poderia oferecer alívio a mercados de gás muito apertados e, em muitos casos, poderia fazê-lo mais rapidamente do que investir em novos abastecimentos”, explica a agência.

Assim, o cenário de emissões zero até 2050 da AIE, prevê que toda a queima de gás em excesso seja eliminada globalmente até 2030, resultando numa redução dos volumes queimados em cerca de 95% até 2030. Este corte evitaria que fossem libertados 365 Mt CO2eq, a nível mundial.

Para a entidade liderada por Fatih Birol, esse trabalho deve passar por desenvolver roteiros nacionais de redução da queima de gás e incentivar a cooperação entre os intervenientes, tendo sempre como prioridade concretizar projetos e investimentos que procurem evitar a queima de gás em excesso e incentivem à reinjeção na rede em segurança. Neste campo, os reguladores desempenham um papel crucial, pois devem obrigar os operadores a arranjar a melhor solução que vise capturar, comprimir ou utilizar de outra forma o gás que atualmente é queimado. Em países como nos Estados Unidos, Colômbia e Noruega foram adotadas políticas públicas que procura reduzir esta prática.

Este artigo integra a segunda edição do anuário do Capital Verde, Yearbook, já disponível. Versão atualizada com novos dados da Agência Internacional de Energia.

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