Há escolas onde nem a idade, nem a inexistência de noções de código são impeditivo para uma carreira nas tech. E empresas que garantem a retenção de talento, dando-lhes oportunidade de reconversão.
Gabriela Maciel, 27 anos, licenciada em engenharia ambiental. Fez um intercâmbio de um ano em Turim (Itália), deu aulas de matemática durante dois anos e, depois de se ter casado, a brasileira decidiu mudar-se para Portugal com o marido. A ideia inicial era fazer um mestrado em engenharia ambiental, mas o caminho acabou por ser diferente: decidiu explorar o seu interesse pela análise de dados e programação, e candidatou-se à escola 42 Lisboa. Objetivo? Dar um novo rumo à sua carreira. E não é a única profissional a apostar na formação para uma mudança de vida. E, muito provavelmente, um melhor salário.
Na 42 Lisboa não há limite de idade, nem outros requisitos académicos ou de experiência, para apresentar candidatura a esta escola de programação, mas é preciso, em primeiro lugar, completar dois jogos online de lógica. Se passar nesses jogos, o candidato tem uma prova de fogo – a piscine – um bootcamp intensivo, de 26 dias, de segunda a domingo. “Foi muito importante aprender a lidar com a frustração. Aprendi que como ser humano a gente falha, faz parte da vida”, conta Gabriela Maciel.
A piscine é uma prova decisiva e requer um grande esforço por parte dos candidatos. Durante esse período, o único horário fixo é o dos exames: todas as sexta-feiras, entre as 18h e as 22h, e na última sexta-feira do bootcamp, entre as 10h e as 18h. “Em média, os candidatos que chegam ao final do processo dedicam entre 10h a 14h diárias à escola durante este período. Embora esse tempo não seja tido em conta na avaliação final, a experiência indica que quem não consegue dedicar-se à piscine quase por inteiro, não conseguirá ser bem sucedido e ser se lecionado no final”, adverte Tomás Santa Clara, communication manager da 42 Lisboa.
Durante os 26 dias desta prova de seleção, os candidatos aprendem a trabalhar em equipa, programação e sobre o modelo pedagógico da escola 42, baseado num sistema de aprendizagem peer-to-peer, project based e gamificado. “Todos os alunos trabalham em conjunto, ensinam e aprendem. Na 42 Lisboa todos são professores e alunos ao mesmo tempo. Uma equipa pedagógica ajuda os estudantes a guiarem o currículo e garante o bom funcionamento da escola”, explica. Os projetos são, desta forma, avaliados por outros alunos, com base em critérios de correção pré-definidos.
Mas, além desta dualidade aluno-professor, há outros detalhes que fazem da escola de programação, fundada em Paris em 2013, e em Portugal desde o ano passado, uma referência internacional. Em primeiro lugar, na 42 não há horários. O campus – que ocupa os três pisos da antiga tipografia na Rua Neves Ferreira, na freguesia de Penha de França, em Lisboa -, está aberto 24 horas por dia, 365 dias por ano, para que cada aluno possa frequentá-lo no horário que lhe for mais conveniente.
Temos médicos que veem que o futuro na sua área passa pela programação, pasteleiros que ficaram desempregados, alunos de 18 anos que decidiram vir para aqui em vez de ir para uma faculdade e programadores que decidiram aprender mais sobre programação.
Este modelo, de uma escola sem professores, sem aulas e sem horários, vai ao encontro dos vários perfis de alunos que a escolhem para aprender a programar. Atualmente com 150 estudantes, a 42 Lisboa espera acolher entre 150 a 200 novos aprendizes em outubro, desde finalistas do 12.º ano a alunos insatisfeitos com o seu percurso superior ou profissionais que querem mudar de carreira. “Temos médicos que veem que o futuro na sua área passa pela programação, temos pasteleiros que ficaram desempregados devido à pandemia, temos alunos de 18 anos que decidiram vir para aqui em vez de ir para uma faculdade e também programadores que decidiram melhorar e aprender mais sobre programação”, descreve o communication manager da escola.
Qualquer pessoa com mais de 17 anos pode fazer um curso na 42, mesmo sem experiência prévia em código. A taxa de empregabilidade aproxima-se dos 100%. Em Portugal, o curso começou em fevereiro e, por isso, a escola só vai ter métricas próprias no próximo ano. A expectativa é alta: “As grandes empresas tecnológicas em todo o mundo estão sempre atentas aos alunos da 42 e acabam, muitas vezes, por oferecer-lhes oportunidades de trabalho quando o programa ainda vai a meio.”
Pandemia fez disparar procura por bootcamps de programação
A funcionar em Portugal desde 2015, a Academia de Código já transformou a vida de mais de mil talentos. Hoje são todos programadores. “Queremos ajudar as pessoas a mudarem de vida, proporcionando melhores e diferentes oportunidades”, afirma João Magalhães, cofundador e CEO da Academia de Código, contando que a escola nasceu da crescente procura de programadores, aliada ao grande número de desempregados.
Anos depois a história repete-se, embora em circunstâncias distintas. Com o início da pandemia, que fez tremer o mercado de trabalho, disparando o número de pessoas em situação de desemprego, a procura pelos bootcamps de programação da Academia de Código também aumentou, em cerca de 30%. “As pessoas viram-se obrigadas a adaptar as suas vidas e trabalhar as suas competências, de forma a conseguirem melhores oportunidades de trabalho, num contexto de grande dificuldade e incerteza”, justifica João Magalhães.
E, se aprender código dá trabalho, também dá frutos: mais emprego, e melhores oportunidades. “As tecnologias vão ocupar um lugar cada vez mais central nas nossas vidas e quem dominar estes conhecimentos terá mais oportunidades presentes e futuras, o que é comprovado pela explosão do mercado e da procura das empresas pelos nossos programadores a partir do início de 2021, com o contexto pandémico mais controlado e mais estável”, acrescenta.
Quem dominar estes conhecimentos terá mais oportunidades presentes e futuras, o que é comprovado pela explosão do mercado e da procura das empresas pelos nossos programadores a partir do início de 2021, com o contexto pandémico mais controlado e mais estável.
À semelhança do perfil dos alunos da 42 Lisboa, na Academia de Código há estudantes com os mais diversos backgrounds – desde doutorados a pessoas com o 9.º ano de escolaridade – e idades, oscilando entre os 18 e os 53 anos. Além disso, há também cada vez mais pessoas a abdicar dos seus empregos para fazerem o curso intensivo. “No ano passado, 52% dos nossos alunos já tinham emprego e candidataram-se para mudarem completamente o rumo da sua vida”, conta o cofundador e CEO da escola.
A taxa de empregabilidade é também muito alta, fixando-se nos 95%. Os alunos saem preparados como junior fullstack software developer, assumindo cargos de programação backend, frontend, fullstack ou mobile.
Mudar de carreira, mas manter-se na empresa
Também há quem consiga mudar de carreira sem sair da própria empresa. A Critical TechWorks acredita que o seu sucesso está intrinsecamente ligado ao sucesso das suas pessoas. Quando um colaborador não está
satisfeito com o seu cargo e mostra intenção de aprender uma nova temática ou até mudar de equipa, a tecnológica tenta criar as condições necessárias para isso aconteça.
Daniela Araújo é ServiceNow developer na Critical TechWorks. Assumiu a função em abril, mas está na empresa há dois anos, tendo iniciado o seu percurso na equipa de recrutamento. Depois de mais de um ano nessa área, sentiu que precisava de fazer uma mudança de carreira. E avançou sem medos. “Decidi analisar o que as equipas estavam
a fazer e, como era responsável pelo recrutamento de novos elementos, soube que a equipa de ServiceNow estava a ser reforçada com novos elementos também juniores”, conta à Pessoas. Começou por fazer um curso por conta própria, para se certificar que a área era do seu interesse, e, só depois, decidiu partilhar o seu desejo de reconversão de carreira com o CEO da Critical TechWorks, Rui Cordeiro. Foi “muito recetivo” à mudança, lembra. “Em menos de um mês ingressei na equipa de ServiceNow e comecei a fazer formações ligadas a esta plataforma”, conta Daniela Araújo.
Acredito que posso vir a possuir mais oportunidades de evolução de carreira dentro do setor tecnológico do que aquelas que detinha na equipa de recrutamento.
Assim que informou a empresa da sua intenção foi-lhe disponibilizada uma formação intensa, seguida de outros momentos de aprendizagem que ainda realiza. Na nova equipa, Daniela Araújo está agora encarregue de fazer a configuração e desenvolvimento de aplicações que são utilizadas, globalmente, na estrutura de tecnologia de informação do BMW Group. A mudança foi pacífica, fácil e muito rápida.
“A Critical TechWorks tornou esta transição uma experiência muito positiva. Promovemos a ideia de profissionais self-made, em que cada um aprende e é responsável pelo seu desenvolvimento, e foi muito bom vivenciar esta posição que defendemos”, recorda, salientando que nunca tinha tido uma experiência tão positiva com um empregador. “Ainda tenho imenso para aprender dentro da área de desenvolvimento em ServiceNow, mas, no futuro, acredito que posso vir a possuir mais oportunidades de evolução de carreira dentro do setor tecnológico do que aquelas que detinha na equipa de recrutamento”, confessa a ServiceNow developer na Critical TechWorks.
Esta flexibilidade e abertura por parte da empresa para a reconversão de carreira requer, por sua vez, um recrutamento um pouco diferente, com foco em outro tipo de competências. “Mais do que competências técnicas, procuramos soft skills, competências humanas que são essenciais para dar vida a todos os nossos projetos, visionar oportunidades futuras e ajudar a construir e desenvolver o projeto desta empresa. Assim, uma vez dentro da empresa, independentemente da área em que se encontra, temos toda a vontade de reter o talento”, explica a responsável de recrutamento da Critical TechWorks, Ana Serafim.
Uma vez dentro da empresa, independentemente da área em que se encontra, temos toda a vontade de reter o talento.
E acrescenta: “Quando um colaborador pretende mudar de carreira, incentivamos porque acreditamos que todos devem ter a oportunidade de crescer e desenvolver os seus conhecimentos e capacidades dentro da própria empresa.” Na empresa com mil elementos, o número de colaboradores que optaram por fazer uma reconversão profissional ainda é “muito pontual”. O mais comum é uma mudança de funções dentro da empresa. “Temos muitos casos de mudança de role, dentro da mesma área de IT”, precisa a líder de RH da tecnológica.
Oportunidades e desafios
Dar o passo e investir numa carreira na área tech significa, não só uma taxa de empregabilidade de mais de 90%, pois a procura é muito superior ao talento disponível, mas também um salto salarial. As remunerações, regra geral, são mais elevadas do que na maioria das outras indústrias. Há, no entanto, algumas diferenças: os profissionais que trabalham em regime de contracting – caracterizado por uma maior flexibilidade e independência, em que se trabalha para um projeto de cada vez, ao contrário do freelancing, que pode trabalhar para vários ao mesmo tempo – ganham, em média, mais 15.500 euros brutos anuais do que os colaboradores permanentes, revela o “Tech Careers Report PT” da Landing.jobs. Os profissionais de tecnologia em Portugal ganham, em média, 32.500 euros brutos anuais, enquanto os contractors na mesma área conseguem alcançar os 48.000 euros brutos/ano.
Diferenças remuneratórias que dependem, naturalmente, da responsabilidade do cargo: os chief technical officer (CTO), seguidos dos technical team leaders e dos solutions architects, ganham os salários mais elevados. E esta tendência é visível, independentemente de estarmos a falar de um colaborador permanente ou contractor.
Se a tecnologia ameaça destruir alguns postos de trabalho, também cria novas oportunidades, surgindo novas áreas profissionais, com destaque para a cibersegurança, dados, inteligência artificial, blockchain e computação avançada.
“Implica uma aposta na qualificação avançada e na requalificação do mercado de trabalho”, alerta Luísa Ribeiro Lopes, coordenadora-geral do InCoDe.2030. Este é, aliás, um dos eixos do InCoDe.2030, que envolve ações muito concretas de atração de novos talentos, tão necessários às empresas e à Função Pública, e também a requalificação dos atuais profissionais.
“A tecnologia já demonstrou ser um acelerador e, por isso, não podemos desperdiçar esta oportunidade de colocar a igualdade e a inclusão na agenda digital, criando condições para que todas e todos possam acompanhar esta transformação à mesma velocidade e com as mesmas oportunidades”, diz Luísa Ribeiro Lopes. “Não deixar ninguém para trás” é o grande desafio da transição digital, acelerada pela pandemia da Covid-19, defende. “Sem fortes políticas públicas de desenvolvimento de competências digitais, corremos o risco de aprofundar as desigualdades sociais já existentes antes deste processo acelerado de transformação digital. As competências digitais devem ser para todos e todas e de forma a assegurar que ninguém fica para trás no acesso às tecnologias”, conclui.
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Investir numa nova carreira nas tech. Oportunidades que começam no ensino alternativo rumo a um melhor salário
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