Na terra, ar e mar: Emissões dos transportes vão por maus caminhos

Os transportes não estão a pôr o pé no acelerador com força suficiente para chegar à neutralidade carbónica em 2050, estando, para já, desencontrados deste objetivo.

O setor dos transportes é responsável por mais de um terço das emissões de dióxido de carbono. Hoje em dia, é sobretudo movido a energia fóssil. Mas, para que a neutralidade carbónica seja possível em 2050, as emissões deste setor têm de cair em média 3% ao ano até 2030, ou seja 25%, estima a Agência Internacional de Energia (AEI), que lançou este mês dados atualizados sobre o progresso da transição energética. No entanto, a desejada quebra não está a acontecer. Entre 1990 e 2022, registam-se subidas anuais de emissões nos transportes de, em média, 1,7% ao ano.

Mas primeiro, as boas notícias: os veículos elétricos estão a evoluir ao ritmo certo para permitir a descarbonização do setor — aliás, são um dos únicos três setores que a Agência Internacional de Energia identifica como estando a evoluir em linha com os objetivos de transição energética. Venderam-se 10 milhões de carros elétricos em todo o mundo em 2022, o que representa 14% do total das vendas de automóveis. A China domina este mercado. Além disso, pela primeira vez, a capacidade de produção anunciada para as baterias é suficiente para corresponder à procura prevista para 2030, de forma a serem atingidas as zero emissões em 2050, estima a agência.

Contudo, os carros e caravanas, assim como a ferrovia, deviam acelerar. E sobram ainda três grupos que estão com maiores dificuldades em encontrar a velocidade certa para avançar: os veículos pesados, a aviação e o transporte marítimo internacional. Estes estão mesmo a mover-se na direção errada ou a um ritmo “substancialmente insuficiente” para que, em 2030, o “estado de arte” do setor esteja no “sítio certo” para se chegar a 2050 com neutralidade nas emissões de carbono.

Camiões e autocarros viram-se para eletricidade e hidrogénio

Pixabay

Nas estradas, os camiões e autocarros rapidamente aumentaram as emissões poluentes depois da queda a pique durante a pandemia de Covid-19. Agora, para ser possível atingir os objetivos de neutralidade carbónica, é necessário que estas desçam 15% face aos níveis atuais, até 2030, estima a AIE. Contudo, tudo indica que continuem a aumentar e atinjam mesmo níveis recorde em 2023, calcula a mesma agência.

Ainda assim, “a indústria automóvel está a fazer progressos significativos na descarbonização, através do investimento em inovação e desenvolvimento”, indica o secretário-geral da Associação Comércio Automóvel de Portugal (ACAP), Helder Pedro. O mesmo aponta que este esforço é visível nas cidades, com um número crescente de autocarros elétricos e a gás natural.

O conselho da AIE é mesmo a rápida adoção de veículos com zero emissões, como os elétricos ou a hidrogénio. Os primeiros representam, hoje em dia, menos de 0,5% do setor, e o hidrogénio tem uma fatia “negligenciável”. Mas, até 2030, têm de posicionar-se nos 6% e 1%, respetivamente, de forma a atingir os objetivos de descarbonização, indica a a agência.

Em paralelo, a indústria está focada em otimizar o consumo e melhorar a eficiência das frotas, através de melhorias na estrutura e funcionamento dos veículos, além de otimizar também rotas, aponta o secretário-geral da ACAP.

Então, o que falta para avançar? Apesar de já ter sido decretada na União Europeia a proibição de vender veículos a motor de combustão a partir de 2035, existem entraves como o custo de aquisição dos veículos de baixas emissões, assinala a ACAP. Nesse sentido, defende que “o Governo português deve criar mais mecanismos de apoio, reforçando os benefícios fiscais e concedendo apoios diretos mais substanciais”. Com uma idade média de abate de veículos em fim de vida de 24 anos, o Governo português deve criar um plano para renovar o parque automóvel português, através da atribuição de apoios, sugere ainda.

A AIE refere que condições de empréstimo mais favoráveis para este tipo de veículos podem ser também um bom incentivo, ao mesmo tempo que se joga com políticas fiscais e até com preços de circulação, como as portagens.

Outro obstáculo é a construção de uma rede de carregamento, “claramente insuficiente em Portugal para os veículos elétricos, e inexistente para os veículos a hidrogénio”, pelo que o Estado português deveria fazer um maior investimento nesta expansão, entende Helder Pedro. A AIE acrescenta que também é essencial o desenvolvimento das redes elétricas e da capacidade renovável que suporta estas infraestruturas. A par dos carregamentos rápidos, estão a ser estudadas alternativas como a troca de baterias.

“A ACAP acredita que, com os avanços na tecnologia, as economias de escala e com incentivos do Governo que ajudem eficazmente os consumidores e as empresas, estas dificuldades serão superadas”, conclui o líder da associação do setor.

Recentemente, a nível europeu, foi dado mais um passo no sentido de incentivar os veículos de baixas emissões. As novas regras relativas à infraestrutura para combustíveis alternativos, aprovadas pelo Conselho Europeu, ditam a instalação de estações de carregamento elétrico para automóveis pelo menos a cada 60 quilómetros (km) ao longo da rede principal de transporte europeia (RTE-T) até 2026, aumentando a potência da rede até 2028. Para os camiões e autocarros, as estações de carregamento têm de ser disponibilizadas a cada 120 km e ser instaladas em metade das principais estradas da UE até 2028.

Já no que diz respeito ao hidrogénio, os Estados-membros têm de assegurar a instalação de estações de abastecimento ao longo da rede principal da RTE-T, pelo menos, a cada 200 km até 2031. Além disso, prevê-se que o pagamento seja facilitado com a opção de cartão e sem necessidade de subscrição.

Aviação aposta nos combustíveis “verdes”

Nos céus, as subidas das emissões são a pique. Nas últimas décadas, cresceram a um ritmo acima dos transportes em terra ou no mar, em média 2,3% por ano, entre 1990 e 2019. Em 2022, 2% das emissões relacionadas com energia deviam-se à aviação, “uma percentagem relativamente pequena” mas referente “a um dos setores mais difíceis de descarbonizar“.

Desenvolvimentos técnicos no âmbito dos combustíveis de baixo carbono, melhorias nos motores, uma otimização das operações ou restrições na procura através de uma taxa de passageiro frequente ou incentivar menos viagens de negócios, são opções que podem ajudar a reduzir as emissões da aviação, enumera a AIE.

A Associação das Companhias Aéreas em Portugal (RENA) indica que o cenário atualmente previsto pela IATA, que congrega os principais operadores aéreos mundiais, prevê que 65% das emissões atuais da aviação sejam eliminadas através do uso de Combustíveis de Aviação Sustentáveis (“SAF” na sigla inglesa), 13% sejam eliminadas pelo uso de
tecnologias ainda não disponíveis no mercado, como o hidrogénio, e 3% desapareçam através de melhorias de desempenho dos operadores, nomeadamente na determinação de rotas. No que diz respeito aos restantes 19%, serão compensados por mecanismos de captura de carbono.

De momento, o meio mais avançado para descarbonizar as viagens de avião são mesmo os SAF. “É tecnologia que já existe, já está a ser testada há alguns anos e temos trabalhado com os produtores de combustível para que consigam colocar no mercado combustíveis sustentáveis a preços competitivos e em escala suficiente para alimentar toda a indústria”, continua a associação. O ministro das Infraestruturas, João Galamba, anunciou recentemente que há “um número interessante de projetos” para produzir combustível sustentável para aviação em Portugal, sendo que a Galp anunciou que tem planos neste âmbito para Sines. No entanto, também há entraves, como o preço destes combustíveis, acusa a Air France-KLM.

A compensação através de mercados de carbono, como o Comércio Europeu de Licenças de Emissão (CELE), é vista pela RENA como uma “mera” medida provisória, até existirem medidas mais eficazes. Em paralelo, têm-se registado melhorias na eficiência, mas os ganhos conseguidos entre 2010 e 2019 são inferiores aos registados entre 2000 e 2010, evidenciando, diz a AIE, a dificuldade em incrementar estas melhorias. Para piorar o cenário, a evolução na eficiência fica aquém do crescimento de passageiros, que subiu cerca de 5% ao ano entre 2000 e 2019.

Empresas como a Airbus, na aviação de longo curso, e a Rolls Royce, que se especializou em aeronaves mais pequenas, estão a investir no hidrogénio. A Airbus espera desenvolver um avião que se mova com este combustível até 2035. Os aviões elétricos prometem custos operacionais muito menores, dependendo da durabilidade das baterias, mas para já o peso e densidade das baterias limitam muito o tipo de viagens e o tamanho dos aviões nos quais se podem inserir. A Hearth Aerospace está a trabalhar no desenho de uma nave de 19 lugares que espera lançar até 2026.

Questionada sobre o que está a travar este setor de seguir um caminho direto à neutralidade carbónica, a RENA defende que “não podem os operadores sozinhos implementar estas medidas. Toda a cadeia de valor tem de contribuir, desde os fabricantes de equipamento aos fornecedores de combustível, controladores de tráfego aéreo e aeroportos”.

Existem dois esforços legislativos dignos de nota. Nos Estados Unidos foi anunciado, em setembro passado, o Sustainable Aviation Fuel Grand Challenge, que inclui financiamento para demonstrar tecnologias de descarbonização para a aviação. O objetivo é, até 2030, reduzir as emissões da aviação em 20% e produzir 11,4 mil milhões de litros de combustíveis sustentáveis.

Na União Europeia, o Parlamento Europeu e o Conselho Europeu já chegaram a acordo no âmbito do diploma ReFuelEU Aviation, que define uma percentagem mínima de combustíveis de aviação sustentáveis a serem usados nos aeroportos europeus. A partir de 2025, a fasquia está nos 2%, e a exigência aumenta a cada cinco anos. Em 2020, os SAF representavam apenas 0,05% do consumo total de combustível destas naves.

A RENA diz que espera que se possa olhar para os objetivos de neutralidade carbónica da mesma forma que na segunda parte do século passado se olhou para o tema da segurança operacional: “Da mesma forma que o transporte aéreo hoje é a forma mais segura de viajar, também em 2050 será uma forma neutra de se viajar.”

Navios podem perder negócio se não aderirem à mudança

EPA/MANUEL DE ALMEIDA

No mar, circulam os meios de transporte responsáveis por cerca de 2% das emissões de dióxido de carbono relacionadas com energia, conta a AIE. Entre 2022 e 2030, é necessário reduzir em quase 15% estas emissões, de forma a alinhar o setor com o cenário de neutralidade carbónica. É necessário que, apesar do esperado aumento na atividade, as emissões se mantenham constantes até 2025, e depois disso comecem a descer.

Os produtos petrolíferos têm constituído, historicamente, mais de 99% de toda a energia necessária para alimentar o transporte marítimo internacional. Em 2022, os biocombustíveis só sustentaram menos de 0,5% do consumo. Mas é necessário que se passem a usar combustíveis alternativos como os biocombustíveis, hidrogénio, amónia e eletricidade, identifica a AIE.

A Organização Marítima Internacional (IMO, na sigla em inglês) reviu em 2023 a respetiva estratégia para a neutralidade carbónica, que espera atingir e 2050 ou “em torno” desse ano. A organização propõe uma diminuição das emissões poluentes do transporte marítimo em 30% até 2030 em comparação com 2008 e, no mesmo ano, atingir pelo menos 5%, idealmente 10%, de tecnologias de baixas emissões no setor.

Na União Europeia, foi lançada a iniciativa FuelEU Maritime, adotada pelo Concelho Europeu este mês. “A nova lei dá a firmeza legal para os operadores de transportes marítimos e produtores de combustíveis iniciarem a produção em larga escala dos combustíveis marítimos sustentáveis”, afirmou a ministra dos Transportes espanhola, Raquel Sánchez, citada num comunicado do Conselho, enviado às redações.

Esta iniciativa insere-se no Objetivo 55, o pacote ambiental europeu que quer reduzir as emissões com efeito estufa em 55% até 2030. E está em linha com os objetivos da IMO, ao almejar, por exemplo, para uma redução de 80% da intensidade carbónica dos combustíveis usados no transporte marítimo, até 2050. Ao mesmo tempo, acena com a intenção de criar um “regime especial de incentivos” para apoiar a adoção de combustíveis renováveis.

Os Estados Unidos lançaram no ano passado o Clean Shipping Act de 2022, nos mesmos moldes da iniciativa europeia, mas com restrições mais exigentes: requerem que em 2040 os combustíveis usados sejam, na totalidade, de zero-emissões. Em paralelo, em 2023, foi introduzido no Senado um novo diploma, o International Maritime Pollution Accountability Act, que propõe a eliminação de emissões do transporte marítimo nas empresas que fazem negócios com os Estados Unidos.

No terreno, a multinacional de logística Maersk quer chegar ao net zero na sua operação em 2040, e a aposta é no metanol verde. Espera já ter este ano um navio a mover-se com este combustível e em 2024 multiplicar por 12. Em Portugal, o projeto H2Driven quer produzir hidrogénio verde que, em conjunto com o CO2 captado na central de biomassa da Sonae em Mangualde, vai dar origem ao metanol verde, para abastecer cerca de 10 navios numa fase inicial, em 2026.

Os navios têm um tempo de vida que vai dos 20 aos 35 anos, pelo que os investimentos feitos hoje terão impacto durante largos anos. Neste sentido, a AIE indica que o investimento em navios com zero emissões tem de acelerar.

(Este artigo foi publicado no Yearbook 2023. Esta é uma versão atualizada)

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