Nenhum país se renova enquanto continuar a expulsar os competentes, os íntegros e a promover quem vive das conveniências e das redes de interesse, escreve o economista Óscar Afonso.
- Portugal tem registado uma frágil convergência em relação à média da União Europeia, mas enfrenta uma divergência estrutural que se agrava.
- Os dados da Comissão Europeia revelam que, entre 1999 e 2024, Portugal perdeu 5,2 pontos percentuais no nível de vida relativo, contrastando com o progresso de várias economias de leste.
- Sem reformas estruturais profundas, o país continuará a descer no ranking europeu, com previsões de empobrecimento relativo e emigração de talentos qualificados.
Portugal tem registado, nos últimos anos, alguma convergência de nível de vida em relação à média da União Europeia (UE) nos dados oficiais da Comissão Europeia (CE). Contudo, esse progresso revela-se muito frágil — porque assenta em fatores conjunturais que mascaram fragilidades estruturais: Programa de Recuperação e Resiliência (PRR), turismo e a vaga de imigração descontrolada, além da imagem de destino seguro para turismo e investimento face à guerra na Ucrânia — e insuficiente para compensar a trajetória de divergência desde o início do milénio (entre 1999 e 2024), o foco da análise desta crónica. A divergência é ainda maior quando se corrigem os dados para refletir números mais atualizados da população residente, refletindo a vaga de imigração recente.
O contraste torna-se particularmente evidente quando comparado com o percurso das economias de leste, que protagonizaram um notável processo de aproximação ao nível de vida europeu, ultrapassando vários países que, em 1999, se situavam claramente à sua frente, incluindo Portugal. Acresce que estes países entraram bastante mais tarde na UE, tendo por isso recebido muito menos fundos — que, ao contrário de Portugal, souberam transformar em produtividade, rendimento e progresso para a generalidade da população.
Enquanto no leste europeu os apoios comunitários foram canalizados para modernizar economias inteiras, por cá serviram demasiadas vezes — para usar uma expressão suave — para alimentar interesses instalados, reproduzir privilégios e fortalecer uma elite facilitadora. E o mais triste é que nada disto é novo: Está, infelizmente, nos nossos “genes institucionais”. É um padrão antigo e persistentemente português, amplamente documentado por Antero de Quental, Eça, Garrett, Ramalho Ortigão, Fernando Pessoa, Saramago, Sophia ou Vergílio Ferreira — todos eles descrevendo, ao longo de séculos, a mesma teia de favoritismos, patrimonialismo e captura do Estado por minorias privilegiadas.
Uns investiram para criar futuro, nós desperdiçámos para preservar um sistema. Em suma, enquanto as economias de leste aproveitaram os fundos para convergir, Portugal continua a avançar aos solavancos, preso a um modelo que favorece a esperteza oportunista em detrimento do mérito, do trabalho sério e da inteligência criadora.
Uns investiram para criar futuro, nós desperdiçámos para preservar um sistema. Em suma, enquanto as economias de leste aproveitaram os fundos para convergir, Portugal continua a avançar aos solavancos, preso a um modelo que favorece a esperteza oportunista em detrimento do mérito, do trabalho sério e da inteligência criadora.
Somos um país onde demasiadas portas se abrem não pelo que se sabe ou pelo que se faz, mas por quem se conhece — um padrão que os nossos maiores escritores denunciaram, com uma precisão quase profética, muito antes de existir UE. E assim, geração após geração, mantemo-nos reféns dos mesmos bloqueios estruturais, enquanto outros que começaram muito atrás já vão muito à frente.
Os dados aqui apresentados mostram também que este cenário de empobrecimento relativo continuará nos próximos anos se não elevarmos o potencial de crescimento económico através de reformas estruturais profundas. As previsões corrigidas da CE (com dados mais atualizados da população) indicam que, até 2027, Portugal deverá ser ultrapassado por várias economias de leste — e importa sublinhar que a nossa divergência só não foi ainda maior porque esses países foram, naturalmente, mais afetados pela guerra na Ucrânia.
Ao mesmo tempo, as maiores economias da Europa Ocidental, com níveis de vida mais elevados — como França, Alemanha e Itália — têm sido fortemente penalizadas pela concorrência acrescida da China, pela desglobalização e pelas tarifas impostas pelos EUA, o que torna ainda mais evidente a fragilidade do nosso desempenho relativo. Com o provável fim da guerra, o dinamismo das economias de leste deverá recuperar, acelerando um processo de ultrapassagem que já está em curso.
Aquilo que os números oficiais parecem contar como progresso é, na verdade, uma grande ilusão: Portugal continua a divergir da Europa, a empobrecer em termos relativos e a expulsar os seus melhores, enquanto a narrativa política insiste em proclamar sucessos que a realidade desmente.
Entre a ficção estatística que nos faz parecer mais ricos do que somos, a estagnação estrutural que impede qualquer salto de produtividade e a má moeda que continua a afastar a boa, o país transforma um surto conjuntural de crescimento num autoengano confortável, mas perigoso. É este o pano de fundo da análise que se segue: a verdade proibida sobre um país que finge crescer enquanto afunda, que se engana a si próprio e que esconde, atrás de dados polidos, um processo silencioso de declínio, divergência e desperdício de talento.
A divergência do nível de vida europeu de Portugal desde 1999: Os números oficiais da CE
A Figura 1 mostra que, além da Irlanda e de Malta, os países de leste foram os que mais melhoraram o seu nível de vida relativo na atual UE (27) entre 1999 e 2024, explicando, em grande medida, o processo de convergência a nível europeu. Portugal encontra-se no grupo de 12 países que registou uma diminuição do nível de vida relativo nesse período (2,8 pontos percentuais, p.p., de 85,0% para 82,2% da UE nos dados oficiais) e entre os três que divergiram do padrão europeu – Portugal, Espanha e Grécia.
Com efeito, o grupo mais alargado de 12 países integra nove das economias mais ricas em 1999, com um nível de vida bem acima da média da UE, pelo que a sua aproximação à média partindo de valores superiores faz parte do processo de convergência real que se espera na ciência económica e no ramo do crescimento.
Assim, desse conjunto de 12 países, sobram apenas três — já referidos — que, apesar de partirem de níveis de vida abaixo da média europeia, ainda conseguiram piorar a sua posição: Portugal, Espanha e Grécia, todos eles no sul da Europa. De notar que Portugal era o único na segunda metade da tabela em 1999 (15ª posição), pois a Grécia era o país mediano, em 14º, e a Espanha o 12º. A Grécia foi particularmente penalizada durante a crise de dívidas soberanas e perdeu 12 lugares entre 1999 e 2024 (de 14º para 26º), enquanto a Espanha perdeu três (de 12º para 15º), tal como Portugal (de 15º para 18º).
O problema é que, apesar de ambos os países terem perdido posição relativa, Espanha manteve sempre um nível de vida substancialmente superior ao de Portugal: em 2024 situava-se nos 91,1% da média da UE, face aos nossos 82,2% (depois de 95,7% vs. 85,0% em 1999). A diferença praticamente não se estreitou ao longo de 25 anos — e isso tem efeitos muito concretos: Espanha continua a atrair uma parte significativa da nossa mão-de-obra mais jovem, qualificada e trabalhadora, aquela que aqui, demasiadas vezes, vê o seu esforço bloqueado por jogos de influência e pequenos poderes instalados, que tratam o país como um tabuleiro de xadrez onde movem as peças a seu bel-prazer.
Assim, com exceção da Grécia, Portugal é o país da UE cujo processo de convergência real mais desiludiu desde o início do milénio — em absoluto contraste com o percurso dos países de leste, vários dos quais já nos ultrapassaram em nível de vida (Chéquia, Eslovénia e Lituânia). Estes países aderiram muito mais tarde à UE, receberam muito menos fundos, mas souberam aplicá-los de forma incomparavelmente mais eficaz, orientando-os para modernizar a economia, aumentar a produtividade e melhorar o bem-estar coletivo. Não se trata, pois, de terem ‘aparentado’ usar melhor os recursos: usaram-nos efetivamente ao serviço da sociedade, enquanto Portugal desperdiçou oportunidades e perpetuou bloqueios estruturais que travam o nosso desenvolvimento.
Figura 1. Nível de vida relativo nos países da UE, 1999 e 2024 (UE=100)

Fonte: Comissão Europeia (base de dados AMECO, com base no European Economy de nov-25) e AIMA (relatório final Migrações e Asilo 2024, de out-25). Notas: países ordenados pela variação (p.p. do PIB) do nível de vida relativo (medido pelo PIB per capita em paridade de poderes de compra, PPC) entre 1999 e 2024; L = países de leste integrantes da UE (27): países bálticos (Estónia, Letónia, Lituânia), países da Europa central e oriental (Chéquia, Hungria, Polónia e Eslovénia); e países dos Balcãs (Croácia, Bulgária e Roménia); a linha a tracejado representa o nível de vida relativo de Portugal em 2024, para mais fácil inspeção visual dos países de leste que nos ultrapassaram, enquanto a linha contínua representa a referência UE=100; o nível de vida corrigido de Portugal (assinalado a cor violeta) em 2024 resulta da substituição, no cálculo do PIB (em PPC) per capita, da população considerada pelo Eurostat (10 694,7 milhões) pelo valor (11 016,2 milhões) que resulta da revisão em alta da 321,5 milhares de estrangeiros residentes no relatório da AIMA face à informação disponível do INE (que depois a transmite ao Eurostat) usando a metodologia de estimação descrita no Flash nº 3/2025 do Gabinete de Estudos da FEP (G3E2P – Gabinete de Estudos Económicos, Empresariais e de políticas Públicas), que fez uma análise similar, mas com base no anterior relatório intercalar da AIMA.
O empobrecimento ainda maior corrigindo os números da CE com dados atualizados da população
A desilusão torna-se ainda mais profunda quando, em vez do valor oficial publicado pela CE em novembro — claramente sobrestimado no caso português —, utilizamos o valor corrigido, que assenta num número de residentes muito mais próximo da realidade, como detalho adiante. Com esta correção indispensável, a verdadeira dimensão da divergência desde 1999 revela-se muito mais grave: em vez da queda oficial de 2,8 p.p. no nosso nível de vida relativo, para 82,2% da média da UE, a descida real é de 5,2 p.p. (de 85,0% em 1999 para o valor corrigido de 79,8% em 2024). Os valores assinalados a violeta na Figura 1 mostram, sem margem para dúvidas, que o nosso atraso é bem maior do que o retratado pelas estatísticas oficiais.
Isto porque a população — que constitui o denominador do indicador de nível de vida medido pelo PIB per capita em PPC — é já hoje significativamente superior aos valores utilizados pela CE, que replica os dados fornecidos pelo INE. No cálculo aqui apresentado, considerou-se uma revisão em alta de 321,5 mil residentes (ver notas da Figura 2), justamente para refletir a realidade demográfica. O problema é que o INE ainda não incorporou nas suas estatísticas a revisão massiva da população estrangeira residente revelada pelo relatório Migrações e Asilo 2024 da AIMA. Esta omissão distorce o retrato do país, inflaciona artificialmente o nosso nível de vida aparente e esconde uma divergência económica bem mais profunda.
Usando os dados da AIMA, a Figura 2 evidencia que a revisão em baixa do nosso nível de vida em 2024 — de 82,2% para 79,8% da média da UE —, apesar de não alterar a posição relativa formal de Portugal (permanecemos em 18.º, o 10.º pior registo da União), revela um afastamento muito mais profundo do país face ao pelotão da frente e uma situação pior face aos países mais próximos neste indicador. Ficamos agora claramente distantes do 17.º lugar, ocupado pela Lituânia (87,6%), e temos o 19.º já praticamente em cima de nós: a Estónia surge nos 79,4%. Logo atrás, alinham-se Polónia (78,7%), Croácia (78,0%), Roménia (77,9%) e Hungria (76,1%), todas economias dinâmicas e em trajetória de convergência real.
O verdadeiro problema é que esta discrepância resulta apenas de corrigirmos o denominador — a população residente — com dados mais fidedignos da AIMA. O facto de o INE, um organismo do Estado, ainda não ter integrado nas suas estatísticas demográficas a revisão substancial apresentada por outro organismo do próprio Estado levanta uma de duas hipóteses graves: ou existe uma incomunicabilidade institucional inadmissível da interoperabilidade digital e da inteligência artificial, ou estamos perante uma forma de mascarar — ainda que por omissão — a verdadeira dimensão do atraso relativo do país. Qualquer das hipóteses é alarmante; ambas comprometem a transparência e a credibilidade das estatísticas nacionais, base fundamental para políticas públicas sérias.
Figura 2. Nível de vida relativo nos países da UE em 2024 (UE=100), incluindo o valor de Portugal corrigido pela população revista em função dos números de estrangeiros residentes da AIMA

Fonte: Comissão Europeia (base de dados AMECO, com base no European Economy de nov-25) e AIMA (relatório final Migrações e Asilo 2024, de out-25). Notas: valores ordenados do maior para o menor; ver notas da figura anterior.
Quanto à alegada aproximação recente ao nível de vida médio da UE, os dados corrigidos mostram, de forma inequívoca, quão ilusória ela é. À luz dos fatores absolutamente extraordinários de que a economia portuguesa beneficiou — um PRR generoso, um boom turístico sem paralelo e uma vaga de imigração descontrolada entre 2017 e 2024 decorrente do Regime de Manifestação de Interesse, boa parte dela na economia paralela, como os próprios dados sugerem — o progresso obtido é, no mínimo, dececionante. Com tamanha injeção de procura, investimento e mão-de-obra, teria sido de esperar uma convergência robusta e sustentada. O que obtivemos? Uns magros pontos decimais.
Importa ainda reconhecer uma verdade incómoda: parte do nosso ‘avanço relativo’ face à média europeia não resulta de mérito próprio, mas sim de uma conjuntura trágica — a guerra na Ucrânia — que penalizou severamente as economias mais dinâmicas e industrialmente intensivas do leste, e também várias economias centrais da UE (como Alemanha, França e Itália), atualmente sob forte pressão competitiva da China e sob a sombra das tarifas anunciadas por Trump. Ou seja, subimos porque outros caíram: é uma convergência tão artificial quanto enganadora.
Vejamos os números: partimos de um nível de vida de 77,2% da média da UE em 2019 (pré-pandemia) e chegamos a 2024 com um valor oficial de 82,2%. Mas, corrigindo o denominador — a população efetivamente residente, que o INE teima em não atualizar com os dados da AIMA —, o valor verdadeiro não passa de 79,8%. Isto significa uma convergência real de apenas 2,6 p.p. em cinco anos (e não 5 p.p.). Uma melhoria irrisória quando comparada com a dimensão dos fatores positivos envolvidos.
Dito de forma simples: com todo este vento de cauda, Portugal deveria ter disparado; limitámo-nos a mover-nos uns milímetros. Esta incapacidade estrutural — persistente, teimosa, quase hereditária — diz muito mais sobre o país do que qualquer narrativa otimista embalada em valores oficiais.
A esperada ultrapassagem por ainda mais países de leste nos próximos anos, rumo à cauda da UE
As perspetivas da CE são inequívocas: nos próximos anos, Portugal continuará a progredir pouco e a perder posições no ranking europeu do nível de vida. Segundo as previsões oficiais (Figura 3), a nossa melhoria até 2027 é praticamente nula (82,5% da média da UE, face a 82,2% em 2024) e, mesmo com estes dados não corrigidos, seremos ultrapassados pela Polónia (83,7%), descendo para a 19.ª posição — a 9.ª pior da União.
Mas o quadro real é ainda mais desfavorável. Usando dados corrigidos e mais fiáveis sobre a população residente — e não a ficção estatística que Portugal continua a apresentar a Bruxelas —, o nível de vida relativo em 2027 deverá situar-se apenas em 80,1%. Nesse cenário ajustado, perdemos mais duas posições e recuamos para 21.º lugar, superados também pela Croácia (81,5%) e pela Estónia (80,6%). E vemos já coladas a nós outras economias dinâmicas de leste: Roménia (78,1%) e Hungria (77,3%).
O que tudo isto significa é simples e preocupante: assim que desaparecerem os efeitos temporários que maquilharam os últimos anos — PRR generoso, turismo em máximos, imigração em massa e a penalização conjuntural de várias economias europeias devido à guerra na Ucrânia —, Portugal regressará ao seu crescimento estruturalmente anémico e retomará a inevitável marcha para o fundo da tabela europeia.
Em 2027, estaremos novamente às portas da cauda da Europa em nível de vida: 21.º entre 27 países, 7.º pior, após décadas de fundos estruturais e oportunidades desperdiçadas.
É um retrato duro, mas fiel: se nada mudar, o país não só não converge como se afasta — lenta, silenciosa e persistentemente — da prosperidade europeia.
Figura 3. Nível de vida relativo previsto nos países da UE em 2027 (UE=100), incluindo o valor de Portugal corrigido pela população revista em função dos números de estrangeiros residentes da AIMA

Fontes: As mesmas da figura anterior. Notas: neste caso, os valores apresentados representam previsões; ver notas das figuras anteriores.
Acresce que, com o desejável fim da guerra na Ucrânia — um choque externo que não está refletido nas previsões e que tem penalizado de forma particularmente dura as economias mais expostas do leste europeu —, é muito provável que esses países recuperem um dinamismo bem superior ao atualmente antecipado pela Comissão. Se tal acontecer, Portugal será ultrapassado por ainda mais economias até 2027. Lamento dizê-lo, mas os dados apontam precisamente nesse sentido.
Em paralelo, a imagem de Portugal como país seguro e distante do conflito — além de belo e estável — funcionou circunstancialmente como um íman de turistas e de alguns investimentos. Mas esse efeito desaparecerá inevitavelmente quando a guerra terminar, retirando-nos uma vantagem relativa que não resulta de mérito interno, mas sim de circunstâncias externas. E essa perda representará mais um risco para uma economia frágil, pouco diversificada e estruturalmente incapaz de gerar crescimento sustentado.
Só reformas estruturais profundas — e não medidas paliativas, cosméticas ou meramente discursivas — poderão elevar o nosso potencial de crescimento e travar esta trajetória de empobrecimento relativo. Venho alertando repetidamente para esta necessidade. Mas, infelizmente, como tenho denunciado, não vejo qualquer sinal de que as reformas que o país precisa estejam sequer a ser preparadas, quanto mais adotadas.
Sem coragem política, sem visão estratégica e sem compromisso com o interesse público, Portugal continuará a deslizar para o fundo da Europa — e não será por falta de avisos.
Os vícios institucionais apontados pelos nossos grandes escritores persistem até aos dias de hoje
A incapacidade de Portugal se libertar de um conjunto de vícios institucionais — que penalizam, de múltiplas formas, o nosso nível de vida relativo — atravessa gerações e foi diagnosticada, com uma lucidez quase dolorosa, pelos nossos maiores escritores. Em paráfrase do seu pensamento, dir-se-ia que Antero de Quental denunciou o Estado como reprodutor de desigualdades; Eça viu no Estado uma fábrica de privilégios; Garrett denunciou o regime de afilhados; Ramalho Ortigão ridicularizou o funcionário privilegiado e improdutivo; Pessoa identificou na política o refúgio dos medíocres; Saramago expôs como os poderosos moldam as leis em causa própria; Sophia lembrou que a justiça deve ser fundamento e não exceção; e Vergílio Ferreira revelou a mediocridade instalada que se autoprotege.
Temos portugueses brilhantes em todas as áreas, e figuras públicas que, em momentos críticos, mostraram competência, coragem e uma integridade rara. Mas há, entre todos, um caso particularmente revelador: alguém que, tendo servido o país em circunstâncias extraordinariamente exigentes, permanece hoje afastado, silencioso, quase invisível — não porque tenha falhado, mas precisamente porque não falhou. Porque não se vendeu. Porque não aceitou o conforto fácil do pós-poder. Porque não é comprável.
Efetivamente, em Portugal, a má moeda expulsa a boa — e não é metáfora: basta observar o nosso sistema político. Temos portugueses brilhantes em todas as áreas, e figuras públicas que, em momentos críticos, mostraram competência, coragem e uma integridade rara. Mas há, entre todos, um caso particularmente revelador: alguém que, tendo servido o país em circunstâncias extraordinariamente exigentes, permanece hoje afastado, silencioso, quase invisível — não porque tenha falhado, mas precisamente porque não falhou. Porque não se vendeu. Porque não aceitou o conforto fácil do pós-poder. Porque não é comprável. A sua mera existência é um incómodo para quem prefere um ambiente onde a conveniência vale mais do que o carácter.
E o mais impressionante é que este exemplo não está sozinho — representa, antes, a expressão mais nítida de um padrão mais vasto. Todos conhecemos outros casos, quase míticos, de pessoas que, depois de servirem o país, recusaram integrar conselhos de administração, rejeitaram transformar influência em proveito pessoal, não se deixaram seduzir pelo circuito mediático da opinião paga ou pelo labirinto das avenças que sustenta tantos carreiristas. Gente que não vive da política, mas que vive para princípios. Pessoas para quem a coerência, a contenção e o serviço público não são etiquetas, mas uma forma de estar. E são precisamente esses — os que elevam a fasquia moral — que o sistema tende a descartar, porque a sua presença expõe sem piedade a mediocridade moral dos que mandam.
A inteligência, o rigor, a independência e a integridade tornam-se, assim, ameaças existenciais para um ecossistema político habituado ao conforto das conveniências, aos equilíbrios tácitos entre grupos instalados e à manutenção de um condomínio de interesses que funciona sempre em circuito fechado. Num país onde a esperteza se confunde demasiadas vezes com competência, e o oportunismo com mérito, não admira que a ‘boa moeda’ seja afastada — não por falta de valor, mas por excesso de incómodo. Porque lembrar que é possível fazer melhor é, para muitos, imperdoável.
Num país onde os valores deveriam ser bússola — integridade, mérito, responsabilidade, serviço público — impera frequentemente a lógica inversa: valorizam-se lealdades, não competências; proximidades, não autonomia; utilidades momentâneas, não visão estratégica. É a ética substituída por cálculo, a exigência substituída por arranjos, a verdade substituída por narrativas convenientes.
E neste terreno fértil para o conformismo, a inteligência crítica incomoda, o rigor desestabiliza, a independência subverte. A presença de pessoas verdadeiramente competentes expõe a mediocridade instalada; a presença de pessoas verdadeiramente íntegras denuncia os vícios do sistema; a presença de pessoas verdadeiramente livres ameaça as teias de influência que tantos tratam como se fossem património próprio.
O resultado é devastador: talento afastado, mérito desvalorizado, ética relegada. A velha máxima volta a confirmar-se: em Portugal, quando o sistema se sente ameaçado, a má moeda expulsa a boa — e esta expulsão não é apenas económica ou institucional, é moral.
Num país que precisa desesperadamente de elevar padrões, acabamos muitas vezes a proteger os padrões mais baixos, porque esses são os únicos que não perturbam o confortável arranjo dos instalados.
Nada disto é novo — está inscrito nos genes institucionais do país. A incapacidade de transformar oportunidades em progresso, a tendência para desperdiçar choques positivos em vez de os converter em reformas, a pulsão para preservar sistemas, não para construir futuro.
Por isso, mesmo com o PRR generoso, o turismo em expansão, a entrada massiva de imigrantes e uma conjuntura externa que nos favoreceu temporariamente, Portugal manteve-se fiel ao seu velho guião: avançar pouco, avançar tarde, avançar mal. Um país que recebe vento de cauda e responde com vento parado.
E esta — infelizmente — é a narrativa verdadeira, mais real e mais reveladora do que qualquer gráfico polido pela estatística oficial.
Conclusão
Portugal encontra-se hoje num ponto verdadeiramente crítico. Sem o impulso excecional — e irrepetível — do PRR, do turismo e de uma vaga migratória mal regulada que inflacionou o PIB de forma artificial, o país regressará inevitavelmente à sua realidade estrutural: Um potencial de crescimento anémico, que nos arrasta, ano após ano, para a cauda da União Europeia em nível de vida. Esta trajetória, se não for invertida, conduzirá a mais emigração — sobretudo dos nossos jovens mais talentosos e qualificados, que recusam continuar presos num sistema onde, demasiadas vezes, a mediocridade e os “chicos-espertos” expulsam quem trabalha com rigor e mérito. O resultado será um ciclo vicioso de envelhecimento acelerado, menor capacidade produtiva e uma dependência crescente de imigração apenas para suportar o funcionamento básico de uma economia de baixo valor acrescentado.
Ainda mais inquietante é que, com o eventual fim da guerra na Ucrânia — que, embora beneficie Portugal em termos absolutos, nos retira vantagens relativas que hoje distorcem as comparações —, as economias do leste europeu recuperarão o dinamismo que tinham antes do conflito. Ou seja: países que entraram muito depois na UE e receberam muito menos fundos do que nós — mas que os aplicaram de forma muito mais eficaz e orientada para a sociedade — poderão ultrapassar-nos em cascata. Vários já o fizeram e os demais estão cada vez mais perto de o conseguir, na sua maioria.
Se queremos contrariar este empobrecimento relativo que marcou as primeiras décadas deste século, não bastam discursos ou remendos. Precisamos de reformas estruturais profundas — que reforcem o investimento produtivo, valorizem o trabalho qualificado, modernizem o Estado, libertem as empresas de amarras burocráticas e melhorem decisivamente o perfil de especialização da economia. Só assim será possível aumentar a produtividade de forma sustentada e recuperar a capacidade de crescer a ritmos elevados, como nas décadas de 1980 e 1990.
A falsa sensação de progresso que alguns números oficiais transmitem desvanece-se quando se integra a realidade demográfica — que o INE continua inexplicavelmente a não atualizar com base nos dados da AIMA. Incorporando a população real residente, o quadro torna-se mais claro e mais grave: Portugal está, de facto, a descer na hierarquia europeia do nível de vida, e essa descida tornar-se-á ainda mais evidente nos próximos anos, quando desaparecerem os efeitos temporários que mascaram o estado real da economia.
Se queremos contrariar este empobrecimento relativo que marcou as primeiras décadas deste século, não bastam discursos ou remendos. Precisamos de reformas estruturais profundas — que reforcem o investimento produtivo, valorizem o trabalho qualificado, modernizem o Estado, libertem as empresas de amarras burocráticas e melhorem decisivamente o perfil de especialização da economia. Só assim será possível aumentar a produtividade de forma sustentada e recuperar a capacidade de crescer a ritmos elevados, como nas décadas de 1980 e 1990.
Qualquer solução que não passe por isto será apenas gerir o declínio — com proclamações políticas que já cansam e não convencem ninguém, e que nos conduziram exatamente ao ponto em que estamos. Portugal merece — e pode — muito mais do que esta lenta erosão do seu futuro.
E, por fim, uma nota que não é apenas económica, pois atravessa a Sociedade, aplicando-se a todas as áreas: Nenhum país se renova enquanto continuar a expulsar a sua “boa moeda” — os competentes, os íntegros, os que não se deixam capturar — e a promover quem vive das conveniências, dos pequenos equilíbrios e das redes de interesse. Sem coragem moral, não haverá coragem reformista. E sem coragem reformista, não haverá futuro.
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Portugal engana-se. Diverge, empobrece e finge crescer
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