Quem beneficia e quem paga a redução do IRC proposta pelo Governo

Nos últimos cinco anos, a taxa média efetiva do IRC foi de 19,15% e 38% das empresas não pagaram qualquer euro deste imposto. Em contrapartida, 179 grandes empresas pagaram 23% do IRC em 2022.

A discussão sobre a redução do IRC tem estado no centro do debate político e económico, numa altura em que o próprio imposto é utilizado como “arma de arremesso” para a viabilização ou não do Orçamento de Estado para 2025 por parte do PS. O Governo propõe uma descida gradual da taxa geral de 21% para 17% até 2027, recuando face à proposta inicial de 15%. Mas o que significa realmente esta medida e qual o seu impacto na economia portuguesa?

O IRC (Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas) foi criado em 1989 no âmbito da reforma fiscal liderada pelo então primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva. Desde então, o Código do IRC já sofreu mais de 1.350 alterações, segundo o estudo “O impacto do IRC na Economia Portuguesa” da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS).

Uma dessas medidas foi a Derrama Estadual, introduzida em 2010 em resposta à crise financeira e económica de 2009, inicialmente com caráter excecional e transitório de forma a fazer face à necessidade de financiamento dos cofres públicos, cuja aplicação tem um caráter progressivo, podendo variar entre 3%, 5% ou 9%, quando o lucro tributável das empresas ultrapasse os 1,5 milhões de euros.

Esta situação faz com que apesar da taxa geral de IRC ser de 21%, Portugal acaba por muitas vezes ser referenciado como um dos países europeus com a mais elevada taxa de IRC em virtude de apresentar também uma taxa estatutária máxima de 31,5%, gerando facilmente uma onda de defensores para a uma redução do IRC.

No entanto, é importante notar que esta taxa de 31,5% é calculada tendo em conta a aplicação da taxa de IRC geral de 21% (paga por poucas empresas) somada à taxa máxima de derrama de 9% (paga ainda por menos empresas porque, para isso, precisam de ter lucros acima dos 35 milhões de euros) e à derrama municipal, que pode ascender a um máximo de 1,5% (apesar de cada autarquia poder lançar, desonerar ou até isentar as empresas desta taxa).

Todas estas salvaguardas não são meros detalhes, como é espelhado nas mais recentes estatísticas do IRC da Autoridade Tributária que apontam para uma taxa média efetiva de IRC paga pelas empresas ao longo dos últimos cinco anos terminados em 2022 de 19,15%, cerca de dois quintos abaixo da taxa estatuária máxima – e isto num contexto de queda progressiva da taxa média efetiva de IRC desde 2012.

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Isto sucede por uma série de benefícios, incentivos e deduções fiscais estabelecidos na lei que permitem às empresas abater a taxa de IRC. Por exemplo, a taxa de IRC para os primeiros 50 mil euros de matéria coletável baixa para os 17%, e se tratar-se de uma PME (mais de 90% do tecido empresarial) localizada no interior ou uma startup a taxa baixa para 12,5%.

É também exemplo dessa benesse o incentivo fiscal à recuperação (IFR), que permite deduzir à coleta apurada uma percentagem das despesas de investimento, o benefício fiscal que permite às empresas uma majoração com os encargos correspondentes ao aumento salarial de trabalhadores (Regime Fiscal de Incentivos à Valorização Salarial) e o conhecido Sistema de Incentivos Fiscais à Investigação e ao Desenvolvimento Empresarial (SIFIDE), que apoia as empresas nos seus esforços em investigação e desenvolvimento através da dedução à coleta do IRC das respetivas despesas.

O relatório da OCDE “Corporate Tax Statistics 2023” revela inclusive que Portugal é um dos três países entre os 38 Estados-membros da OCDE com as maiores reduções da taxa de IRC para as empresas que investem em investigação e desenvolvimento. Mas não só.

Segundo dados da Autoridade Tributária, o valor de benefícios fiscais atribuído em sede de IRC em 2023 ascendeu a 1.807 milhões de euros, mais 10,3% que os 1.637,9 mil milhões registados em 2022, com as deduções à coleta a responderem por 956 milhões de euros. Isto significa que o IRC concentrou mais de metade dos 3.139 milhões de euros de benefícios fiscais atribuídos em 2023 a quase 86 mil empresas.

Grandes empresas suportam 45% do IRC

A redução do IRC proposta pelo Governo de Luís Montenegro levanta questões sobre quem realmente beneficiará com esta medida. Uma análise detalhada dos dados da Autoridade Tributária revela um cenário complexo, onde muitas empresas não pagam IRC e são as grandes companhias que suportam a maior fatia deste imposto.

Nos últimos cinco anos, por exemplo, cerca de 38% das empresas que apresentaram declaração de IRC não pagaram qualquer euro deste imposto. Em 2022 (últimos dados disponíveis), esta percentagem subiu para 38,7%, correspondendo a aproximadamente 218 mil empresas. Isto significa que uma parte significativa do tecido empresarial português não é afetada diretamente por alterações na taxa de IRC.

Uma redução generalizada do IRC poderá beneficiar principalmente as grandes empresas. As micro e pequenas empresas, que constituem a maioria do tecido empresarial português, poderão não sentir um impacto tão significativo, uma vez que muitas já pagam pouco ou nenhum IRC.

Encurtando a amostra somente para quem efetivamente paga IRC, o panorama é ainda mais revelador. Entre 2018 e 2022, 45,4% do montante de IRC liquidado foi pago por empresas com volumes de negócios acima de 50 milhões de euros. Estas representam apenas 0,16% do tecido empresarial, ou seja, pouco mais de 830 empresas.

Para se ter uma ideia da disparidade do alcance do IRC, em 2022, somente as 179 maiores empresas do país, que faturaram mais de 250 milhões de euros, foram responsáveis por quase um quarto (23,1%) do IRC liquidado, e apresentaram uma taxa média efetiva de IRC de 25,7%.

Em contraste, mais de 91% das empresas que entregaram a declaração de IRC referente a 2022 são microempresas, com um volume de negócios abaixo de 2 milhões de euros. Isto representa mais de 511 mil empresas num universo de cerca de 562 mil declarações, em que 43% destas empresas não pagaram IRC em 2022 e as que pagaram, na grande maioria dos casos, apresentaram uma taxa média efetiva de IRC abaixo dos 20%.

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Estes dados do Fisco sugerem que são as grandes empresas que suportam a maior fatia do IRC e também aquelas com as taxas médias efetivas mais altas (mas, mesmo assim, longe da taxa estatuária máxima de 31,5%), mas que também há pequenas e médias empresas que têm de encaixar nas suas contas o pagamento deste imposto que, segundo cálculos do ECO, alcançou um valor médio ponderado de cerca de 26,5 mil euros por PME que pagou IRC em 2022.

Assim, uma redução generalizada da taxa geral do IRC poderá beneficiar principalmente as grandes empresas, que pela sua dimensão têm também maior capacidade financeira. As micro e pequenas empresas, que constituem a maioria do tecido empresarial português, poderão não sentir um impacto tão significativo, uma vez que muitas já pagam pouco ou nenhum IRC.

A questão que se coloca é se esta medida será a mais eficaz para estimular o crescimento económico e a competitividade das empresas portuguesas como um todo, ou se beneficiará desproporcionalmente um segmento já privilegiado do tecido empresarial, como banca, as seguradoras, a indústria transformadora e o comércio por grosso e retalho, que foram responsáveis por quase 57% do IRC liquidado em 2022.

Imperativo económico ou um mito fiscal?

A proposta de redução gradual da taxa geral de IRC em Portugal é defendida pelo Governo como uma medida que estimulará o investimento e a competitividade. No entanto, são também muitas as vozes críticas a esta medida, que questionam a sua eficácia e alertam para possíveis efeitos negativos nas contas públicas.

É o caso do Fundo Monetário Internacional que, recentemente, num relatório de avaliação da economia nacional, defendeu que as medidas fiscais devem ser concebidas no âmbito de uma reforma fiscal abrangente, que vise uma simplificação do sistema e “redução das isenções”.

Os técnicos do FMI consideram que “em vez de reduzir a taxa base, deveria ser dada prioridade à redução das sobretaxas progressivas e locais”, contribuindo assim para “alinhar as políticas fiscais com as dos seus pares da União Europeia, promovendo simultaneamente o crescimento das empresas.”

Na defesa de uma redução do IRC surge um estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) coordenado por Pedro Brinca e publicado em maio deste ano. Segundo os autores deste relatório, “uma redução da taxa efetiva do IRC de 7,5 pontos percentuais faz aumentar o PIB em 1,44% no curto prazo (após dois anos), e 1,40% no longo prazo (após dez anos)”.

Além disso, este estudo destaca também que “a remuneração do trabalho melhora substancialmente com a redução do IRC, aumentando em 1,79% após dez anos”. Este dado contraria a perceção comum de que cortes no IRC beneficiam apenas as empresas, sugerindo que os trabalhadores também colhem frutos significativos.

No entanto, a economista Susana Peralta alerta que o estudo da FFMS “trata-se de um estudo macroeconómico e, por isso, estilizado, que estabelece um modelo matemático que reproduz o comportamento de variáveis agregadas da economia portuguesa (como o investimento privado, o investimento público, ou os salários)” e, por isso, “os autores alteram a taxa de IRC, acompanhada pela compensação orçamental necessária, e o modelo devolve um comportamento expectável.”

Além disso, a professora da Nova SBE expressa o seu pessimismo em relação a um corte da taxa de IRC lembrando o fraco impacto que a reforma fiscal de Donald Trump teve na economia dos EUA, que foi centrada numa redução da taxa de IRC, em que cada dólar de redução da receita de IRC aumentou o PIB em apenas 10 cêntimos, segundo o paper “The Efficiency-Equity Tradeoff of the Corporate Income Tax: Evidence from the Tax Cuts and Jobs Act”, publicado em 2022.

Segundo contas do Governo, a proposta de reduzir a taxa de IRC em quatro pontos percentuais para 17% nos próximos três anos tem um impacto orçamental de 1.000 milhões de euros, cerca de 250 milhões de euros por cada ponto percentual.

Também crítico de uma redução generalizada do IRC é Jorge Rebelo de Almeida, presidente do grupo Vila Galé. O hoteleiro considera que a redução do imposto só deveria ser atribuída como contrapartida por algo que as empresas façam pelo país.

“O IRC só devia baixar como contrapartida das empresas fazerem algo pelo país. Não deve ser uma baixa generalizada, porque os grandes pagadores do IRC vão beneficiar sem fazerem nada”, disse o empresário num almoço-debate do International Club of Portugal, realizado em Lisboa a 2 de outubro.

No contexto internacional, a proposta da OCDE de impor uma taxa mínima global de IRC de 15% sobre as multinacionais adiciona uma nova camada de complexidade ao debate. Um estudo publicado em janeiro de 2022 por investigadores do Banco de Portugal sugere que esta medida poderia reduzir significativamente os incentivos para a transferência de lucros entre países, potencialmente nivelando o campo de jogo global em termos da tributação do tecido empresarial.

“A implementação prática deste acordo limitará certamente a elisão fiscal e diminuirá a concorrência fiscal no sentido de taxas cada vez mais reduzidas”, destacam os autores do paper, mas sublinham que “as negociações e extensão a todas as empresas deverá ser um processo moroso” e que “uma taxa mínima de 15% é bastante baixa e ilustra o tipo de desafios que Portugal poderá enfrentar num futuro próximo ao nível da tributação das empresas.”

É importante ainda notar que, atualmente, a maior parte da receita do IRC é direcionada para o Orçamento Geral do Estado, com algumas consignações específicas definidas na lei, como 2% da receita para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social (FEFSS) e uma parcela para programas de cooperação internacional. Assim, qualquer redução significativa na taxa de IRC teria implicações diretas no financiamento destas áreas.

Segundo contas do Governo, a proposta de reduzir a taxa de IRC em quatro pontos percentuais para 17% nos próximos três anos tem um impacto orçamental de 1.000 milhões de euros, cerca de 330 milhões em média por ano.

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Todavia, de acordo com os dados dos últimos 18 anos de IRC compilados pelo ECO, verifica-se que não existe uma correlação estatisticamente significativa entre a taxa média efetiva de IRC e a receita angariada neste imposto, mostrando que as duas variáveis não dependem linearmente uma da outra, havendo antes outros indicadores mais robustos que justificam a subida ou descida da receita. É isso que sucede com o PIB, em que se verifica uma forte correlação entre este e a receita de IRC, com a receita fiscal deste imposto a apresentar a mesma tendência que o crescimento da economia em 82% das observações dos últimos 18 anos.

Isso foi particularmente visível em 2020 quando a taxa média efetiva do IRC caiu para o valor mais baixo da última década (18,4%) e a receita de IRC registou a maior queda dos últimos 18 anos, ao corrigir 19,2% para o valor mais baixo desde 2015, ficando ligeiramente acima dos 4 mil milhões de euros. Nesse ano, a economia registou a maior contração desde pelo menos 1960, com o PIB a apresentar uma taxa de crescimento real negativa de 8,2%.

A proposta do Governo de Luís Montenegro para reduzir gradualmente a taxa geral de IRC de 21% para 17% até 2027 levanta mais questões do que respostas. Num país onde a taxa média efetiva de IRC está em queda há uma década e nos últimos cinco anos foi de 19,15%, significativamente abaixo da taxa estatutária máxima, e onde quase 40% das empresas não pagam qualquer IRC, é legítimo questionar o efeito positivo desta medida.

As grandes empresas, que representam apenas 0,16% do tecido empresarial mas contribuem com 45,4% do IRC liquidado, são as principais beneficiárias de qualquer corte da taxa de IRC. Contudo, as micro e pequenas empresas, que constituem a esmagadora maioria do panorama empresarial português, apesar de muitas verem pouco ou nenhum impacto nas suas contas a redução do imposto, por a grande maioria não pagar IRC, as que pagam sentirão o corte da taxa de IRC dado o peso que qualquer euro pago a mais representa na sua operação.

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