A descentralização do sistema elétrico

  • João Galamba
  • 6 Setembro 2024

Se a descentralização do sistema elétrico não ocorrer, a transição energética será mais onerosa para os consumidores de eletricidade, e mais lenta.

Comparando com o que está em curso, os sistemas elétricos do passado eram relativamente simples, unidirecionais e lineares. Umas centrais (poucas) produziam, quando e quanto fosse necessário, de acordo com as necessidades do consumo; a rede transportava e distribuía a eletricidade produzida; E os consumidores, de modo passivo, estavam do outro lado. O equilíbrio entre oferta e procura, em tempo real, que é uma necessidade permanente do sistema, era assegurado, em grande medida, pela flexibilidade da produção, cabendo ao gestor do sistema elétrico nacional (coincidente com o Operador da Rede Nacional de Transporte) a responsabilidade última de assegurar esse equilíbrio, de modo mais premente, quando algo falhava. Esta gestão de último recurso, ou “pronto-socorro” era feita através de recursos de apoio e reservas, nas redes e/ou na produção.

A onda liberalizadora dos mercados nacionais de energia, que se iniciou nos anos 90, limitou-se a introduzir mais concorrência e mais mecanismos de mercado, com o objetivo de aumentar a eficiência e beneficiar os consumidores de energia, mas não alterando, no essencial, o funcionamento e a lógica do sistema existente. Num certo sentido, antes e depois da vaga de liberalização, o sistema elétrico continuou a operar segundo princípios típicos de um sistema de planeamento centralizado.

Olhando para o futuro, a realidade pode e deve ser outra.

A produção será crescentemente renovável e descentralizada. Os consumidores não serão agentes passivos, porque também podem, individual ou conjuntamente, produzir, armazenar e consumir eletricidade. E a rede, ao invés de ser um simples sistema de veiculação unidirecional de eletricidade, é bidirecional, com volumes crescentes de produção ligados à rede de distribuição, sendo a flexibilidade do sistema elétrico não um dado, essencialmente garantido por características intrínsecas da produção de energia elétrica. A flexibilidade e os recursos, que contribuem para o equilíbrio e bom funcionamento dos sistemas elétricos nacionais, interligados à escala europeia, serão assegurados por um vasto conjunto de agentes que detém ativos distribuídos, numa lógica de rede mais descentralizada do que o paradigma das últimas décadas.

A descentralização da produção, a alteração do papel dos consumidores e centralidade e valor da flexibilidade, seja no armazenamento, seja no consumo, devem, por isso, ser vistas como novas formas de os agentes, que participam no sistema elétrico, se relacionarem entre si, e com a rede.

A descentralização da produção, a alteração do papel dos consumidores e centralidade e valor da flexibilidade, seja no armazenamento, seja no consumo, devem, por isso, ser vistas como novas formas de os agentes, que participam no sistema elétrico, se relacionarem entre si, e com a rede; Ou seja, o futuro caminha para o movimento descentralizado, centrífugo e não resultante exclusivamente do planeamento de redes, feito por operadores de rede e entidades públicas, de forma top-down.

As redes elétricas continuarão a transportar eletrões, mas também podem e devem ser vistas como um conjunto de espaços plurais e diversificados onde agentes, plurais e diferenciados se encontram, prestam serviços uns aos outros e, conjuntamente, operam e fazem funcionar o sistema elétrico. De baixo para cima; primeiro localmente e, só depois, de forma centralizada. Na organização do sistema elétrico importa salvaguardar o de sempre: – garantir que o sistema elétrico está em equilíbrio, mas cabe, também, a promoção e criação destes espaços, onde se procura e se oferece serviços vários, incluindo serviços de flexibilidade.

A descentralização também permite olhar de modo distinto para o papel e valor da digitalização do sistema elétrico; processo que está em curso e que, como preconizado no Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC), é prioritário e deve acelerar. A digitalização do sistema elétrico, e em particular das redes, se incluir a disponibilização pública e transparente, de modo dinâmico e em tempo real, de todos os dados, torna possível e reforça o papel da descentralização, uma vez que permite criar uma realidade partilhada entre todos os interessados, e não apenas exclusiva dos operadores de rede, reforçando, por isso, o potencial colaborativo e participativo do sistema.

Estas mudanças podem ajudar na organização e gestão do sistema elétrico, descentralizando-o. Descentralização, não no sentido de acabar com a necessidade de existir uma gestão global do sistema, que, em última instância, terá sempre de existir – mas apenas como uma forma de a desonerar, garantindo que tudo o que puder ser tratado localmente e de forma descentralizada, deve sê-lo, deixando apenas para a gestão central o que sobrar e não puder ser tratado e resolvido por outros, de forma mais eficiente e, sobretudo, menos onerosa. Se esta descentralização do sistema elétrico não ocorrer, sobrecarregando a gestão centralizada tradicional, o resultado implicará níveis crescentes de redundâncias, reservas e outros custos análogos, de rede ou outros. E a transição energética será, por isso, mais onerosa para os consumidores de eletricidade, e mais lenta.

  • João Galamba
  • Economista e ex-secretário de Estado de Energia

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