A (espinhosa) modernização administrativa

  • Miguel Neiva de Oliveira
  • 30 Setembro 2020

A desburocratização e a modernização administrativas têm vindo a revelar-se, com maior ou menor acuidade, umas das pedras-de-toque dos programas apresentados pelos sucessivos Governos constitucionais.

Desde a criação do Simplex, em 2006, que a desburocratização e a modernização administrativas têm vindo a revelar-se, com maior ou menor acuidade, umas das pedras-de-toque dos programas apresentados pelos sucessivos Governos constitucionais, sendo que esse objetivo tem passado, em grande medida, pela promoção e incentivo da utilização de meios digitais e de plataformas eletrónicas. Um dos contextos específicos onde esta modernização administrativa mais se tem feito sentir nos últimos anos é o da contratação pública. A entrada em vigor do Código dos Contratos Públicos (“CCP”) em 2008 representou uma verdadeira revolução no modo de contratar da Administração Pública. A adaptação a esta nova realidade, por parte dos seus serviços e das empresas que com esta pretendiam contratar, revelou-se extraordinariamente complexa e trabalhosa.

O mundo das plataformas eletrónicas de contratação pública é ainda desconhecido e, na minha perspetiva – perdoe-me o leitor a figuração exagerada –, encontra-se envolto em neblina e mistério. Basta atentar nos inúmeros processos judiciais que atulham os tribunais administrativos e nos quais a questão a dirimir tem por objeto exclusivo problemas relacionados com as plataformas onde tais procedimentos de contratação correram.

São incontáveis as dúvidas suscitadas quanto a ficheiros corrompidos, assinaturas eletrónicas qualificadas, momento exato da apresentação da proposta, entre tantas outras questões. Nestes casos, invariavelmente, as entidades gestoras das plataformas eletrónicas não são chamadas no sentido de se aferir se, porventura, a responsabilidade pela irregularidade que sucedeu em determinado procedimento concursal (e que conduziu, por exemplo, à exclusão de um concorrente) não se deve a um problema aí ocorrido. Acresce que, por vezes e por compreensível desconhecimento técnico destas matérias, os tribunais decidem de forma deficiente (e insuficiente), quase por intuição, em prejuízo dos concorrentes, das entidades adjudicantes e, no final do dia, do interesse público. Não obstante estas notas críticas quanto às consequências, neste âmbito concursal, da modernização administrativa, não se negam os benefícios daí resultantes. É, porém, fundamental que o legislador seja cauteloso nesta senda, sob pena de o lema modernizar, modernizar, modernizar ter o efeito inverso ao pretendido, introduzindo entropias que prejudicam o objetivo final. Isto vem a propósito de um normativo específico, constante da Proposta de Lei n.º 41/XIV/1.º, a qual, no essencial, estabelece medidas especiais de contratação pública e introduz alterações no CCP tendo em vista, precisamente, a simplificação, a desburocratização e a flexibilização dos procedimentos de contratação pública. Uma dessas medidas especiais reporta-se aos casos de procedimentos pré-contratuais relativos à execução de projetos cofinanciados por fundos europeus. O art.º 2.º, n.º 1, al. b) propõe que, nestes casos, as entidades adjudicantes possam adotar procedimentos de ajuste direto simplificado, nos termos do art.º 128.º do CCP, quando o valor for igual ou inferior a € 15.000. Recorde-se, quanto a esta modalidade prevista no referido preceito do CCP, que, quando o valor do contrato for igual ou inferior a € 5.000, no caso das locações e aquisições de bens e serviços, ou a € 10.000, no caso das empreitadas de obras públicas. o procedimento de contratação é manifestamente simples e no qual a adjudicação é feita diretamente sobre a fatura. Ou seja, a decisão de contratar, a adjudicação e a correspetiva faturação são realizadas em simultâneo. Assim, o aparente desiderato deste novo preceito é o de estender o âmbito de aplicação deste procedimento, até ao montante de € 15.000. A questão, porém, é que o legislador não se fica por aqui e, no n.º 3, propõe que “os procedimentos adotados ao abrigo do presente artigo tramitam através de plataforma eletrónica utilizada pela entidade adjudicante”.

Ou seja, o que resulta do preceito transcrito é a imposição de uma nova formalidade (que esta modalidade de procedimento atualmente dispensa). Saliente-se, aliás, que nem mesmo nas situações de ajuste direto dito normal – passível de ser adotado em casos de contratos de valor consideravelmente superior – se exige que o seu curso tenha lugar em plataformas eletrónicas. Trata-se, como é evidente, de um tiro disparado na direção errada pelo legislador e que só encontra justificação na permanente busca da modernização (que, como se pode constatar nem sempre é sinónimo de desburocratização).

  • Miguel Neiva de Oliveira
  • Advogado do departamento de direito público da CCA Law Firm

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