A Lei nº 57/2021, de 16 de agosto – um exemplo de inconstitucionalidade por omissão?

  • Maria Paula Ribeiro de Faria
  • 8 Novembro 2021

A tendência para encarar o problema da violência doméstica exclusivamente sob a ótica das mulheres e das crianças não pode conduzir à desproteção de outras vítimas vulneráveis.

A Lei nº 57/2021, de 16 de agosto, veio reforçar a proteção das vítimas de violência doméstica, alterando o regime de prevenção da violência doméstica e de proteção e assistência das suas vítimas, o Código Penal, e o Código de Processo Penal, nesta matéria. De acordo com a nova redação da lei de prevenção da violência doméstica, as crianças que sofreram maus tratos como consequência da sua exposição a contextos de violência doméstica passam a ser consideradas vítimas deste crime, podendo beneficiar de proteção psicossocial e de proteção por tele-assistência, e devendo ser comunicada a sua qualidade de vítima às comissões de proteção de crianças e jovens. Ao mesmo tempo, o nº 2, do art. 152º, do Código Penal, que prevê o crime de violência doméstica, passou a integrar uma alínea e), que qualifica como violência doméstica as agressões cometidas sobre os menores descendentes do agressor, do seu cônjuge, de pessoa com quem mantenha relação análoga à dos cônjuges, ou do pai ou mãe dos seus filhos, independentemente de coabitação, exigência que a lei mantém em relação às restantes vítimas vulneráveis pela idade, doença, gravidez e dependência económica, referidas na alínea d).

A intenção do legislador foi a de alargar a proteção dos menores contra o risco de maus tratos físicos e psicológicos sofridos no contexto familiar, incluindo os maus tratos cometidos fora do contexto de coabitação (o pai que agride o filho durante o regime de visitas), desiderato que só seria de louvar se não traduzisse ao mesmo tempo uma visão parcelar, e nessa medida enviesada, do problema da violência doméstica. A criação de um tratamento de favor para os menores, e é assim que encaramos a alínea e), do nº 2, do art. 152º, esquecendo por completo os outros grupos de pessoas vulneráveis a que se refere a alínea d), conduz ao tratamento desigual destas pessoas, que podem ser pessoas acamadas ou idosas, que em total identidade de circunstâncias com menores, podem ser agredidas por filhos ou netos com quem não coabitam, e que apenas a custo podem ser considerados cuidadores para efeitos de aplicação do crime de maus tratos (e não se esqueça que a agressão psicológica dificilmente se deixa abranger pelo crime de ofensas corporais). Este problema está longe de poder ser considerado um problema teórico, tendo em conta que o legislador também alargou o âmbito do crime de violência doméstica, que passou a incluir condutas destinadas a impedir o acesso ou a fruição de recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns, que atingem muitas vezes pessoas fragilizadas pela idade, e que nem sempre são praticados por pessoas que vivem com elas, e que reforçou os meios justamente convocados para proteger as vítimas deste crime. Vejamos. O legislador criou uma base de dados destinada ao registo dos casos de violência doméstica que abrange outros crimes, como o homicídio, ou as ofensas corporais graves, mas que apenas diz respeito ao âmbito de aplicação subjetivo do art. 152º, nº1; o novo regime de proteção psico-social, e as medidas de coação urgentes do art. 31º da lei relativas às vitimas de violência doméstica, apenas beneficiam estas vítimas; e todos sabemos que fora deste “super regime” vocacionado para a prevenção e combate da violência doméstica, pouco tem sido feito a favor das vítimas idosas: não beneficiam da proteção de comissões de proteção específicas (comissões de proteção de adultos) ao contrário das crianças e jovens em risco, não está prevista a denúncia obrigatória dos crimes cometidos contra elas, nem existe um provedor do idoso a que possam recorrer (um Ombudsman, ou um programa de cuidado de longa duração vocacionado para a prevenção e reação ao crime).

A tendência para encarar o problema da violência doméstica exclusivamente sob a ótica das mulheres e das crianças não pode conduzir à desproteção de outras vítimas vulneráveis e ao desrespeito do principio da igualdade constitucionalmente consagrado. O dever de combater a violência contra todos os grupos vulneráveis, entre os quais os mais velhos, não é apenas um dever ético de solidariedade, mas é um dever jurídico e constitucional que decorre do princípio da dignidade humana, da tutela dos direitos, liberdades e garantias do cidadão, de forma mais específica da proteção conferida à terceira idade (artigo 72º da Constituição), e ainda da relação particular que o Estado estabelece com as pessoas idosas quando lhes confere direitos à reforma e à protecção social (artigo 63º, nº 3, e nº 4, da Constituição, e artigo 23º da Carta Social Europeia). Ao mesmo tempo, convém ter presente que muitos dos problemas das pessoas mais velhas são criados pela própria sociedade que diminui o seu estatuto social e económico, pelo que o Estado, e o legislador em particular, tem a obrigação de adoptar medidas capazes de neutralizar o ponto de partida de maior fragilidade em que estas pessoas se encontram, sob pena de poder falar-se de um abuso da coletividade reconhecido na doutrina como forma específica de abuso contra os mais velhos (é duvidoso se não estamos perante uma inconstitucionalidade por omissão).

  • Maria Paula Ribeiro de Faria
  • Professora Associada de Direito Penal - Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica

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