A música do mercado

A mão invisível do mercado deu lugar a uma outra mão, que é cada vez mais visível, todavia, também cada vez mais deslocada da realidade.

O mercado de capitais constitui um mecanismo de descoberta de preços. É através do mercado, formalizado através de bolsas de valores, que compradores e vendedores interagem, a fim de chegarem ao preço de equilíbrio dos valores que pretendem negociar. Esta negociação é intrinsecamente imperfeita, na medida em que existem custos de transacção que constituem fricções inerentes ao próprio mercado. Estas fricções encontram-se nas comissões que são pagas aos intermediários, na falta de liquidez dos títulos, na assimetria de informação, e no limite também na manipulação de mercado. Nas últimas semanas, tem-se falado muito da luta de David contra Golias no mercado de capitais e na alegada manipulação de mercado por parte de alguns. Mas será que a verdadeira manipulação é mesmo feita por estes agentes?

A participação de pequenos investidores nos mercados de capitais não é de agora. A forma de o fazer é que tem vindo a mudar. Antigamente, encontrávamos os investidores particulares em salas de corretagem. Hoje, o investidor particular pode especular na bolsa com recurso a um simples “smartphone”. As aplicações móveis são cada vez melhores, mais fáceis de usar, e as comissões pagas às corretoras são aparentemente cada vez mais baixas ao ponto de hoje serem anunciadas como sendo próximas de zero ou até inexistentes. Numa perspectiva de acesso ao mercado, a fricção tem seguramente diminuído. Porém, há outro tipo de fricções que se estão a desenvolver, como aquelas que opõem grupos de especuladores individuais a alguns fundos profissionais, mas não só.

A emergência do grupo “r/WallStreetBets” na rede social Reddit evidencia uma nova tendência de “gamificação” do mercado de capitais. Aquele grupo, que conta já com cerca de 8 milhões de membros (possivelmente com muitos “bots” à mistura), não está a especular no valor intrínseco dos títulos que têm estado debaixo dos holofotes. Está simplesmente a tentar virar o feitiço contra o feiticeiro, utilizando os mesmos instrumentos utilizados por investidores profissionais, a fim de os levar ao tapete, o que revela também a existência de muitos investidores profissionais no seio daquele grupo de alegados descamisados. Só assim se entende a utilização de instrumentos derivados, como as opções, bem como o interesse dos membros do grupo por acções caracterizadas por um maior “short interest” e um menor “free float”.

Há quem veja nesta contenda uma luta de David contra Golias. Uma espécie de rebelião das massas contra os fundos especulativos, ou contra a alta finança como a esquerda habitualmente a designa, sempre em secreta conspiração contra os oprimidos. Eu prefiro uma interpretação mais prosaica: a ideia de que alguém, conhecedor da actuação de alguns desses fundos, pensou de forma sagaz a implementação de uma estratégia que se revelou muitíssimo eficaz. Esses ‘alguéns’ provavelmente já ganharam muito dinheiro e já saíram da transacção. Outros, pelo contrário, estarão porventura a perder muito dinheiro, porque à hora a que escrevo este texto as acções da Gamestop já desvalorizaram mais de 80% desde o máximo registado na semana passada. Decididamente, o mercado de capitais não é o melhor local para lutas anticapitalistas.

Este episódio, que levou a Gamestop a passar de uma capitalização bolsista de apenas duzentos milhões de dólares em Abril passado para mais de vinte mil milhões de dólares na semana passada, gerou uma controvérsia sobre uma alegada manipulação de mercado. Alega-se que o eventual conluio entre os membros do grupo consubstancia a chamada estratégia de “pump and dump”, na prática, difundindo informação falsa a fim de alimentar a subida do título para, pelo caminho, o vender sub-repticiamente. No meio de tantos milhões de membros do grupo, será uma acusação no mínimo complexa de concretizar por parte dos reguladores. Ao invés, mais fácil de concretizar serão os remédios a aplicar ao corretor que, a certa altura, decidiu suspender e limitar as transacções dos títulos envolvidos na montanha russa das cotações.

Os acontecimentos da semana passada ficarão para a história como um episódio curioso e colorido – parece que até já há uma produção cinematográfica prevista para o efeito – e deverão levar os reguladores a aumentar as exigências de colateral a aplicar às corretoras (e estas aos seus clientes). De igual modo, aqueles acontecimentos contribuirão para disciplinar a prática ilegal do chamado “naked short selling”, pois no caso apontado, a certa altura, terão existido mais acções “shortadas” do que acções emitidas. Mas não tenhamos dúvidas: a verdadeira origem dos excessos da semana passada está noutro sítio e noutros agentes. Ela está na criação monetária operada pelos bancos centrais, desde logo naquela que é conduzida pelo próprio FED.

O legado de Alan Greenspan perdura na ortodoxia do FED, tendo ficado para a história a célebre ideia de uma “Greenspan put”. A história conta-se rapidamente. Uma opção de venda (“put”) concede ao seu detentor o direito de vender um determinado activo a um preço pré-definido. Ela é lucrativa (“in the money”) quando o preço de exercício é superior ao preço de mercado, e ficou célebre devido à fobia de Greenspan a movimentos adversos na bolsa. Ao mínimo sinal de instabilidade, “the Maestro”, como a certa altura Greenspan passou a ser chamado, baixava a taxa de juro para estancar a queda do mercado. Dizia-se que, dessa forma, os investidores estariam protegidos de quedas adicionais, artificialmente aplacadas por via da acção do FED. Gozavam implicitamente de uma opção de venda “in the money” – uma “Greenspan put”.

A aversão de Greenspan à queda das bolsas tinha uma razão de ser. Segundo relatos biográficos (ver “The Man Who Knew: The Life and Times of Alan Greenspan”), a sua aversão resultava de uma convicção estabelecida décadas antes, publicada em 1959 sob o título de “Stock prices and Capital Evaluation”, segundo a qual seriam as cotações do mercado de capitais a influenciar o comportamento da economia e não o contrário. Sob esta premissa, justificar-se-ia a intervenção do banco central como forma preventiva de evitar uma recessão. Trata-se de uma perspectiva discutível, na medida em que há muitos outros autores que defendem uma ideia diferente, ou seja, a ideia de que os mercados constituem tão-somente o reflexo da economia. Nesta visão, a economia vai para onde tem de ir e os mercados descontam esse futuro previsível.

Teoria e divagações à parte, o que interessa verdadeiramente no legado de Greenspan e dos seus sucessores (Bernanke, Yellen e agora também de Powell) é que os bancos centrais são cada vez mais os principais especuladores nos mercados de capitais. Não é só na América e na Europa que isto acontece. No Japão, que destacadamente segue várias décadas à frente dos demais em matéria de políticas monetárias não convencionais, o banco central vai ao ponto de comprar acções directamente no mercado, sendo hoje o principal detentor de acções japonesas. Trata-se de uma forte distorção do factor risco, que conduz à irrelevância da noção de valor accionista, e de uma subversão do princípio segundo o qual o mercado constitui um livre e espontâneo processo de descoberta de preços.

Há alguns anos alguém disse que tínhamos chegado a um momento civilizacional em que deixaríamos de ter recessões. O ciclo económico seria permanentemente alisado através da intervenção governamental. A tese, como é sabido, não vingou e desde então já tivemos várias recessões porque a intervenção governamental, para além de andar sempre atrasada face ao ciclo económico, é ela própria geradora de ineficiências que frequentemente prejudicam o ciclo económico. Ora, neste momento passa-se algo do género com os bancos centrais, e com a utilização da política monetária para fins intervencionistas. Alguém parece ter estipulado que deixaram de existir “bear markets” e que a impressão monetária é solução para todos os males.

Os indicadores apontam todos no mesmo sentido. Avaliações de mercado estratosféricas, uma capitalização bolsista que excede em muito o PIB, níveis de endividamento inéditos, e agora estratégias especulativas a partir de redes sociais. A bolsa norte-americana, que comanda as restantes, está eufórica. Porém, ao contrário de outrora, quando Greenspan vislumbrou “exuberância irracional”, agora é de uma “bolha racional” que se trata.

A mão invisível do mercado deu lugar a uma outra mão, que é cada vez mais visível, todavia, também cada vez mais deslocada da realidade. É o que acontece quando a taxa de desconto se aproxima do zero: os fluxos de caixa descontados disparam para o infinito. A actualização dos fluxos de caixa até pode estar certa, a taxa de desconto é que não porque, se estivesse, significaria que tinha deixado de existir risco. Mas, enfim, isto só acaba quando a música deixar de se ouvir.

Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico

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