A pandemia e o direito da insolvência (II)

  • Maria de Fátima Ribeiro
  • 23 Abril 2020

De modo a contribuir para a preservação do tecido empresarial português, urge repensar muito dos aspetos do direito da insolvência.

Quando falamos dos efeitos da pandemia, é inevitável que consideremos o impacto que a mesma (e as medidas entretanto adotadas para conter ou minimizar os seus efeitos na saúde das pessoas) terá na sustentabilidade das empresas, em Portugal e no mundo. O impacto económico deste fenómeno já se faz sentir, mas podemos antecipar que os níveis de endividamento e de incumprimento das empresas continuarão a aumentar por muito tempo, sobretudo em determinados setores, até porque os apoios anunciados se têm revelado de aplicação pouco ágil e insuficientes para fazer face a uma situação com estes contornos.

De modo a contribuir para a preservação do tecido empresarial português, urge repensar muito dos aspetos do direito da insolvência.

Neste âmbito, pela Lei n.º 4-A, de 6 de abril de 2020, estabeleceu-se que fica suspenso o prazo de apresentação do devedor à insolvência, previsto no n.º 1 do artigo 18.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Esta é uma medida importante: nos termos dessa norma, na insolvência atual, impende sobre o órgão de administração ou qualquer um dos administradores da empresa insolvente, especificamente quando esta se encontre impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, o dever de apresentação da empresa à insolvência nos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação (ou à data em que ela deveria ter sido conhecida), sob pena de se presumir a existência de culpa grave para o efeito de qualificação da insolvência como culposa, com todas as consequências (nomeadamente, ao nível da responsabilidade desses administradores) que isso pode implicar.

Simplesmente, urge continuar a aprofundar a reflexão sobre esta matéria, tendo em conta todo o restante regime insolvencial e pré-insolvencial vigente.

Por força desta intervenção legislativa, o referido prazo de 30 dias fica suspenso, pelo que administradores e gerentes deixam de estar pressionados para uma eventual apresentação precipitada da empresa à insolvência sempre que ela se encontre impossibilitada, por razões conjunturais, de cumprir as suas obrigações vencidas.

Mas a empresa continua impedida de, nessa situação, recorrer a instrumentos pré-insolvenciais destinados a promover a recuperação de empresas em dificuldades, como o PER (processo especial de revitalização) ou o RERE (regime extrajudicial de recuperação de empresas). É que apenas pode recorrer ao PER ou ao RERE uma empresa que se encontre em situação económica difícil ou de insolvência iminente – nunca uma empresa que se encontre já numa situação de insolvência atual (a empresa está até obrigada a apresentar declaração subscrita, há não mais de 30 dias, por contabilista certificado ou por revisor oficial de contas, atestando que não se encontra em situação de insolvência atual). O mesmo é dizer: a empresa que agora se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas não está, entretanto, obrigada a apresentar-se à insolvência, mas continua impedida de recorrer a um mecanismo pré-insolvencial que permita a sua recuperação.

Por outro lado, a simples suspensão do prazo de apresentação do devedor à insolvência não tem o efeito de impedir que qualquer credor, verificado que esteja um dos factos descritos no artigo 20.º do CIRE (entre os quais se encontra a suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas; a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de a empresa satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações; a insuficiência de bens penhoráveis para pagamento do crédito do exequente verificada em processo executivo movido contra a empresa; o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas emergentes de contrato de trabalho, ou da violação ou cessação deste contrato; ou até a manifesta superioridade do passivo sobre o ativo segundo o último balanço aprovado), venha requerer a declaração de insolvência da sociedade. Por outras palavras: perante a verificação de um facto que pode ter sido provocado por dificuldades que se prevejam transitórias, qualquer credor continua legitimado para requerer a insolvência da empresa. E ainda que ela não venha efetivamente a ser declarada ou que até, no âmbito do processo, venha a ser aprovado um plano de insolvência que preveja a recuperação da empresa, é seguro que o estigma associado a um processo de insolvência (com o impacto que isso inevitavelmente tem no mercado) já contribui, em si mesmo, para a desvalorização da empresa que poderá, afinal, sobreviver.

Este regime insolvencial e pré-insolvencial, perfeitamente justificado num contexto económico “normal”, não se revela o mais adequado pata apoiar o tecido empresarial em circunstâncias verdadeiramente excecionais, num quadro de crise atual e anunciada; e não permite ao empresário tomar, com segurança, decisões que podem ser fundamentais para a sobrevivência da empresa num contexto de grande incerteza.

  • Maria de Fátima Ribeiro
  • Docente da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e coordenadora da Pós-Graduação em Sociedades Comerciais.

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