A pandemia e o direito da insolvência

  • Maria de Fátima Ribeiro
  • 24 Março 2020

O regime estabelecido na legislação insolvencial não é pensado para uma conjuntura de exceção como aquela que, inevitavelmente, enfrentaremos em breve.

A situação que vivemos atualmente, no país e no mundo, tem contornos especialmente assustadores: há angústia e incerteza quanto ao que vai ser o nosso futuro próximo, em termos de saúde e até de sobrevivência, junta-se a já sentida preocupação com o seu impacto económico, em particular depois da declaração do estado de emergência em Portugal.

Para tentar amenizar as repercussões da inevitável crise, têm sido tomadas e anunciadas várias medidas aos mais diversos níveis. Não obstante, é urgente (re)pensarmos os efeitos económicos do novo coronavírus nas empresas e no nível do respetivo endividamento. O regime estabelecido na legislação insolvencial não é pensado para uma conjuntura de exceção como aquela que, inevitavelmente, enfrentaremos em breve.

Desde logo, os instrumentos pré-insolvenciais destinados a promover a recuperação de empresas em dificuldades são exatamente isso: pré-insolvenciais, ou seja, apenas pode recorrer a eles uma empresa que se encontre em situação económica difícil ou de insolvência iminente – nunca uma empresa que se encontre já numa situação de insolvência atual.

De resto, na insolvência atual, impende sobre o órgão de administração ou qualquer um dos administradores da empresa insolvente, especificamente quando esta se encontre impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, o dever de apresentação da empresa à insolvência nos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação (ou à data em que ela deveria ter sido conhecida). O não cumprimento deste dever pode levar à qualificação da insolvência como culposa, sendo inclusivamente presumida a existência de culpa grave dos administradores nesta situação, com a sua consequente responsabilidade pessoal perante os credores da sociedade declarada insolvente.

Este regime, que faz todo o sentido num contexto económico “normal”, não será o mais adequado para responder à profunda crise que nos preparamos para enfrentar: ainda que o Estado anuncie as mais diversas medidas de apoio às empresas, sabemos que os recursos serão necessariamente escassos; por outro lado, a concessão de moratórias relativamente ao cumprimento de determinadas obrigações e a facilitação na concessão de crédito virão onerar, a médio prazo, os seus beneficiários, que um dia serão inevitavelmente chamados a cumprir (e que, nesse momento, ainda se encontrarão sob o efeito da recessão). As empresas, nos diferentes setores (pense-se por exemplo na restauração), continuam, entretanto, a ter de suportar a maior parte das despesas habituais, mesmo estando praticamente privadas de receita; rapidamente se verão na impossibilidade de cumprirem as obrigações vencidas.

Todos sabemos que, sobretudo no caso das pequenas empresas, a via mais fácil e segura pode ser mesmo a de uma apresentação precipitada à insolvência, com a perspetiva de constituição de nova sociedade assim que a conjuntura permitir, com alguma segurança, a exploração de um novo (afinal, o velho) projeto empresarial. Mas essa não é, nem social nem economicamente, a melhor solução – se o desfecho do processo for a liquidação da empresa, não o é por razões óbvias, que se ligam sobretudo à exígua satisfação dos créditos não garantidos e não privilegiados, bem como ao impacto na taxa de desemprego; se for a sua recuperação, também não o será, porque entretanto inevitavelmente essa empresa perderá valor no mercado, pondo em risco o seu desempenho futuro (de resto, não é raro que uma empresa sujeita a um plano que visa a sua recuperação acabe, mais tarde, por vir a ser declarada insolvente).

Impõe-se, assim, a intervenção do legislador insolvencial, de modo a adequar a aplicação dos pressupostos objetivos da declaração de insolvência (a exemplo do que se fez na Alemanha, com a Finanzmarktstabilisierungsgesetz, em 2008, quanto à aplicação do conceito de sobre-endividamento neste âmbito) e a flexibilizar o recurso a instrumentos pré-insolvenciais nesta situação de exceção, sob pena de podermos ver agravar-se e prolongar-se de modo muito significativo a crise que estamos já destinados a suportar.

*Maria de Fátima Ribeiro é professora da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e investigadora em direito da insolvência.

  • Maria de Fátima Ribeiro
  • Docente da Escola do Porto da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e coordenadora da Pós-Graduação em Sociedades Comerciais.

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