A política e o gato de Schrödinger

A esquerda ataca o Plano de Recuperação e Resiliência por não engordar o Estado. A direita critica-o por engordar o Estado em detrimento das empresas. Em que ficamos?

Há mais coisas além do “Silva” a separar António Costa Silva e António Costa. O primeiro é um lírico, um “engenheiro poeta” como lhe chamou o primeiro-ministro e que apresentou, com muitos floreados e frases pomposas, a sua Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica e Social.

António Costa, o primeiro-ministro, com o seu pragmatismo de “jurista governante”, agarrou na poesia de António Costa Silva e transformou-a em prosa e em quadros de Excel.

  1. O primeiro-ministro começou por arrumar os 10 eixos prioritários de Costa Silva nas três gavetas definidas por Bruxelas (Resiliência e a dupla transição: a Digital e a Climática).
  2. Depois, e como esta ajuda de Bruxelas tem um prazo de execução mais curto do que o PT2030 (três anos para comprometer o dinheiro e mais três anos para executá-lo), o Governo tratou de retirar projetos que estavam noutras prateleiras (como a compra de material circulante ferroviário) e incluí-los neste Plano de Recuperação e Resiliência.
  3. Finalmente, António Costa começou a monetizar as prioridades (para gastar os 12,9 mil milhões de euros que virão do Fundo Europeu de Resiliência) e a definir projetos para serem executados já com algum grau de detalhe (como o da Barragem do Pisão no Alto Alentejo, cuja construção já foi anunciada quatros vezes nos últimos 40 anos).

Este é o terceiro programa estruturado que Portugal apresenta no sentido de tentar debelar a crise provocada pela pandemia da Covid-19. Primeiro foi o Programa de Emergência para estancar a hemorragia da crise, depois foi o Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) para estabilizar e colocar e economia no recobro e segue-se agora o Plano de Recuperação e Resiliência no sentido de tentar vitaminar e dar maior resiliência à economia.

Não sabemos se estes três planos serão suficientes porque a incerteza é enorme, na pandemia e na economia. A propósito da incerteza, no dia em que apresentou o seu Plano de Recuperação, António Costa Silva referiu-se ao gato de Schrödinger para dizer que o vírus “trouxe a mecânica quântica para dentro da epidemiologia” por causa da “questão da incerteza”, nomeadamente quanto a uma vacina.

O gato de Schrödinger é uma experiência mental, descrita pelo físico Erwin Schrödinger, em que um gato é fechado numa caixa, com um tubo de veneno que se abrirá num determinado momento, que não é possível prever. Enquanto a caixa estiver fechada, e como não sabemos se o gato está vivo ou morto, para efeitos da experiência, o gato está vivo e morto simultaneamente, um estado que é possível nos sistemas quânticos.

Se transpusermos este paradoxo do gato de Schrödinger para a área política, facilmente chegamos à conclusão que os partidos políticos em Portugal também estão simultaneamente vivos e mortos. Quando o Governo lhes apresentou, esta segunda-feira, o Plano de Recuperação e Resiliência, espernearam, criticaram, denegriram, vociferaram e vilipendiaram o Plano, ou seja, mostraram um sinal de grande vitalidade na oposição. Mas quando se lhes perguntou por alternativas, ideias, contributos, algo construtivo para ajudar a melhorar o Plano, fizeram-se de mortos.

Na ausência de ideias e de uma discussão profunda sobre o país nos próximos 10 anos (faça-se justiça ao PSD que prometeu apresentá-las no início de outubro), a discussão política afunilou-se sobre se o Plano de Recuperação e Resiliência engorda muito ou pouco o Estado.

À esquerda, o Bloco e o PCP vierem pedir a contratação de mais funcionários públicos, um tipo de despesa que está vedado por Bruxelas neste plano. E percebe-se a razão: o dinheiro do Plano de Recuperação e Resiliência é one-off, mas a despesa com pessoal repete-se todos os anos. O PCP, neste processo de engorda do Estado, quer ainda que o dinheiro seja usado para nacionalizar empresas estratégicas, como se o país não tivesse melhor sítio onde gastar o dinheiro.

À direita, CDS, PSD e Iniciativa Liberal querem precisamente o contrário. Criticam o Plano de Resiliência por engordar a máquina do Estado em detrimento de ajudar as empresas. A critica é injusta:

  1. Na primeira gaveta do Plano de Recuperação e Resiliência, o Estado reservou 7,2 mil milhões de euros, sendo que a fatia maior irá para as empresas, de forma direta (2,5 mil milhões de euros para aumentar o potencial produtivo) e indireta (mais 1,5 mil milhões de euros para políticas de competitividade e coesão territorial, privilegiando as áreas de localização empresarial e os ‘missing links’). A propósito dos ‘missing links’, a Continental Mabor conseguiu esta semana que a Câmara de Famalicão e a Infraestruturas de Portugal assinassem um protocolo que levará à construção de uma variante à Estrada Nacional 14 e que permitirá à empresa de pneus aumentar a sua capacidade de produção. Uma boa notícia, não fosse o facto de a Continental Mabor estar há 20 anos à espera da construção desta ligação.
  2. Na segunda gaveta destinada à transição climática, o Estado reservou 2,7 mil milhões de euros. Aqui percebe-se que uma parte relevante tenha de ser para despesa do próprio Estado, já que é o único que pode comprar material circulante ferroviário e a quem compete, por exemplo, descarbonizar os transportes públicos rodoviários. Contudo, as empresas terão a sua quota parte, seja nos programas de eficiência energética, seja no programa de bioresíduos, seja no hidrogénio verde.
  3. A terceira prateleira da transição digital aparenta ser a mais desequilibrada já que o Estado reservou 700 milhões de euros para a Escola Digital, 1,8 mil milhões de euros para a Administração Pública e apenas 500 milhões de euros para o programa de digitalização das empresas. Só que isto não é necessariamente mau. Como explicou e bem, ontem, António Saraiva, o patrão dos patrões, “uma melhor e mais moderna Administração Pública traz seguramente desburocratização, um alívio a nível de burocracia, e isso dá facilidade à envolvente empresarial”.

Resumindo, na discussão do Plano de Recuperação e Resiliência a esquerda quer erradamente engordar o Estado e a direita quer erradamente emagrecer o Estado. Já se percebeu que o Estado em Portugal é uma espécie de gato de Schrödinger, consegue ser simultaneamente gordo e ser magro.

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