A política que ficou presa no século XX

Juntando as velocidades muito distintas a que tudo se passa na política e na sociedade, dá a ideia que estamos a colocar o motor de um Ferrari no chasis de um velhinho Fiat 127.

Pegue-se no exemplo que está mesmo à mão, este congresso do PSD. Mais do que uma reunião partidária, é uma fantástica máquina do tempo. Pela forma, pelo conteúdo e até por grande parte dos protagonistas, com ele viajamos de regresso ao século XX. Nada ali mudou nas últimas décadas e suspeito que se procurássemos bem nos bastidores ainda descobriríamos um velho telefax entretido a cuspir folhas de papel.
É uma caricatura, claro, até porque os cenários mais high-tech não passam, muitas vezes, de fachadas que escondem muitos atrasos estruturais. Mas, no caso concreto, a caricatura é simbólica: a política e os partidos estão entre as actividades e instituições que ficaram aprisionadas no século passado.

O alerta dado por Marcelo Rebelo de Sousa na semana passada tem toda a pertinência: “Não podemos querer uma economia 4.0 com políticos 2.0”. Falamos da economia 4.0 como podemos e devemos falar da sociedade 4.0. A economia e as empresas são, neste acaso, apenas um meio para chegar a um fim. E este está na vontade, necessidades e conveniência de cidadãos e consumidores que são, quem, cada vez mais, tem o comando e dita as regras.

Juntando os dois mundos e as velocidades muito distintas a que tudo se passa, dá a ideia que estamos a colocar o motor de um Ferrari no chasis de um velhinho Fiat 127.

A forma de funcionamento e de comunicação dos partidos são as mesmas há décadas. Sim, agora há uns sites, umas apps e alguns políticos até são presença regular nas redes sociais. Mas a lógica “aparelhística”, o caciquismo, o carreirismo e a genérica falta de abertura à sociedade mantêm os vícios antigos. Veja-se o que se passou, como exemplo, nesta última eleição do PSD com o tráfico de votos e o “prémio” que é dado depois a quem o organiza nos cargos partidários. Todo o ritual dos congressos, o conteúdo dos discursos, das comunicações e das moções, as tácticas mesquinhas, as negociações de lugares e, no final, as votações esmagadoras à albanesa (à hora a que escrevo não conheço os resultados concretos deste congresso do PSD, mas esta tem sido a regra histórica de muitos partidos nos congressos não electivos) compõem um mundo que é cada vez mais incompreensível quando visto de fora.

Discussões acesas sobre o futuro do país que estão reservadas aos “aparelhos” e comportamentos e decisões onde impera o “efeito manada” estão nos antípodas do que se passa cá fora.

As lógicas colaborativas são cada vez mais utilizadas, tanto na partilha de conhecimento ou arte como a reportar um problema de trânsito numa app. A afirmação da individualidade e o exercício de cada vez mais espaço de liberdade própria é outra das características destes tempos. E a democratização da participação no debate público, seja ele qual for, onde for e com quem for aí está, permitida pelas redes sociais.

Numa era de profundas revoluções na forma como trabalhamos, como nos relacionamos uns com os outros, como consumimos e viajamos, como nos deslocamos nas cidades, como acedemos à informação ou como nos divertimos e passamos o tempo, os temas discutidos pelos políticos são velhos de décadas e padecem em Portugal de uma entorse crónica: o foco é sempre mais colocado no processo, nos detalhes burocráticos ou nas guerrinhas partidárias do que nos resultados que se pretendem. Dois exemplos da actualidade política.

Desafio: como devem ser ensinadas as crianças que estão hoje a entrar para a escola e que vão ter, na sua maioria, profissões que ainda não existem? Discussões políticas: horários dos professores; contagem do tempo de carreira dos docentes; deve ou não haver rankings de escolas?; a nota de Educação Física deve ou não entrar na média de acesso à faculdade?; a culpa é vossa; não, a culpa é do vosso governo.

Desafio: como devem ser reformados os sistemas de Segurança Social que estão caducos e sob pressão da demografia? Discussões políticas: o PS é que deve ter a iniciativa; não, o PSD é que deve ter abertura; o Presidente da República deve criar consensos; a idade da reforma não pode aumentar; vocês querem é privatizar a Segurança Social; nós já salvámos a Segurança Social três vezes.

Com a sociedade em mudança acelerada e a generalidade dos partidos presa aos seus velhos métodos, rituais caducos, prioridade ao taticismo e canais de comunicação desajustados, não será por milagre que as “políticas 4.0” vão nascer. O mais certo é que se acentue a tendência que já existe: políticos e políticas vão andar cada vez mais a reboque e com um atraso cada vez maior em relação à realidade, às dinâmicas sociais e económicas e à sua verdadeira necessidade.

E isso colocará cada vez mais o Estado num de dois papéis, ambos muito negativos: um factor de atraso ou um elemento passivo, que pouco ou nada conta.

Nada a que não estejamos já habituados nestas coisas do sistema político e da relação entre eleitores e eleitos. Estamos, afinal, no país que há décadas discute, sem que nada aconteça, a reforma do sistema eleitoral para que cada um de nós saiba em que deputado está a votar. E este país da Web Summit é também o mesmo que não consegue uma coisa tão simples como ter os cadernos eleitorais em ordem. É mais fácil, sem dúvida, pôr uma vaca a voar. Para isso basta perguntar a Elon Musk e ele faz.

Nota: O autor escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.

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