Editorial

A responsabilidade de tantas mortes não pode morrer solteira

Ainda não se conhecem as razões da tragédia do Elevador da Glória, mas há uma desfecho insuportável: A responsabilidade de tantas mortes não pode, ela própria, morrer solteira.

Fernando Medina não assumiu nenhuma responsabilidade e um líder assume as responsabilidades das suas equipas, portanto, o não assumir da responsabilidade política, e não estamos aqui a falar de um caso qualquer, estamos a falar de um caso em que estão vidas humanas em jogo, e não assumir essa responsabilidade política é muito grave“. A afirmação é de Carlos Moedas, então candidato à Câmara de Lisboa, quando foi conhecido o caso ‘Russiagate’. Hoje, estará arrependido do que disse… com a tragédia do Elevador da Glória, não foram vidas humanas em jogo, foram já 16 mortes. O passado regressou para o atormentar quando tinha tudo à sua frente para reforçar a sua votação nas eleições autárquicas de 12 de outubro.

Pede-se a demissão de titulares de cargos políticos, de ministros e presidentes de câmara, com demasiada facilidade. Por tudo, e por nada. Mas há um princípio que não pode andar ao sabor do vento: O da coerência. Quem exigiu responsabilidades políticas noutros casos tem de definir o seu próprio limiar de responsabilidade quando a tragédia ocorre sob a sua tutela.

O primeiro-ministro Luís Montenegro fez o que lhe competia: Assumiu a defesa de Carlos Moedas e pediu para não haver um aproveitamento político da morte de 16 pessoas no desastre do Elevador da Glória. Ora, isto é, em si mesmo, política. E se o país está em choque hoje, amanhã vai haver o momento da política, isto é, da avaliação das responsabilidades, as políticas neste caso, e de Carlos Moedas em particular, as civis e até as criminais.

A Carris é uma empresa municipal, a administração é nomeada pelo executivo municipal, portanto, a cadeia de comando é curta. Neste contexto, Carlos Moedas tem de ser o primeiro a exigir resultados dos inquéritos o quanto antes, todas as auditorias necessárias, as internas e a anunciada externa. Mais do que em qualquer outra situação, o tempo está contra o atual presidente da Câmara, porque qualquer prolongamento do calendário para a divulgação de resultados será sempre entendido como uma forma de evitar a prestação de contas até às autárquicas. E isso seria politicamente desastroso.

O caminho de Moedas é estreito. Além de Montenegro, tem outro escudo, o do presidente da Carris, que nomeou, e que voltou a aparecer para dizer muito pouco. Podemos conceder, há ainda pouco informação, mas as explicações do gestor soam muito mal. O que disse? Ele próprio não tem as respostas, mas garante que tudo foi feito de forma correta, portanto, a responsabilidade e a culpa, dois princípios diferentes, ficam com quem?

Ainda não há informação consistente sobre o que aconteceu, e até já se admitem outras possibilidades para lá da primeira explicação, a de que o cabo que terá rebentado. E se tiver sido sabotagem, um crime?

As informações que já se sabem sobre a empresa contratada para garantir a manutenção do Elevador — nesta fase em regime de ajuste direto por cinco meses, depois de um contrato em 2022 que terminou no último dia de agosto — são no mínimo desconfortáveis.

Uma empresa que tem na Carris e nos STCP, empresas públicas municipais, os seus principais clientes. A MNTC – Serviços Técnicos de Engenharia, uma pequena empresa de Almada é detida em 75% por Gustavo Alexandre Garcia Pita Soares e em 25% por Marieta de Jesus Morais Garcias, e tem a sua sede localizada num prédio residencial do concelho de Almada. Desde março de 2017, a MNTC foi adjudicatária de 42 contratos com entidades públicas, num valor global próximo dos 3,8 milhões de euros. Entre os clientes encontram-se a Carris, várias freguesias lisboetas, o Instituto do Emprego e Formação Profissional, e a Sociedade de Transportes Coletivos do Porto. Pode estar tudo certo, mas parece mesmo uma empresa à medida e talhada para servir o Estado…

Além disso, já se sabe que a empresa fez uma inspeção ao Elevador da Glória na manhã da tragédia, uma de rotina e que terá sido realizada em meia-hora e com avaliações “visuais” e muitos ‘ok’.

A Carris é uma empresa municipal, a administração é nomeada pelo executivo municipal, portanto, a cadeia de comando é curta. Neste contexto, Carlos Moedas tem de ser o primeiro a exigir resultados dos inquéritos o quanto antes, todas as auditorias necessárias, as internas e a anunciada externa. Mais do que em qualquer outra situação, o tempo está contra o atual presidente da Câmara, porque qualquer prolongamento do calendário para a divulgação de resultados será sempre entendido como uma forma de evitar a prestação de contas até às autárquicas. E isso seria politicamente desastroso.

Hoje a Carris já deveria ter divulgado os termos do contrato de ajuste direto assinado com a empresa de manutenção para vigorar nos cinco meses a partir de 31 de agosto, as metas e as obrigações de inspeção, e todos os relatórios produzidos nos últimos anos, desde 2022, no anterior contrato de prestação deste serviço.

Sem populismo ou demagogia, e é preciso reconhecer que os agentes políticos têm sido cuidadosos, a responsabilidade política de Carlos Moedas deve estar limitada à sua própria ação, direta ou indireta, por ato ou omissão, e aqui, não poderá ser delegada.

Se as falhas e aquela tragédia resultaram direta ou indiretamente de decisões da gestão da Carris, a responsabilidade deve terminar na demissão do presidente da empresa e da administração.

Poderá haver uma terceira alternativa, a responsabilidade da própria empresa de manutenção na prestação do serviço ou um crime premeditado. Mas não poderá haver uma quarta opção: A responsabilidade de tantas mortes não pode, ela própria, morrer solteira.

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