As três vidas de Sampaio e uma outra, além do défice
No plano económico, a marca mais relevante deixada por Sampaio foi uma frase que nunca chegou a dizer: “Há mais vida para além do défice”.
Morreu Jorge Sampaio, um “homem bom”, como lembrava hoje Helena Roseta aos microfones da Antena 1. Um homem com três vidas.
- Uma primeira vida dedicada à luta contra o Estado Novo. Como disse há pouco Marcelo Rebelo de Sousa, Sampaio era um “construtor de pontes, no seu hemisfério político e para além dele”. Na Crise Académica de 62, sentou à mesma mesa católicos, comunistas e outros movimentos antifascistas.
- Teve uma vida política cheia, ganhando a Câmara de Lisboa graças a esse espírito de construtor de pontes, tendo feito a primeira “geringonça” à esquerda que derrotaria Marcelo que concorria pelo PSD. Foi também Presidente da República durante dez anos.
- Jorge Sampaio teve uma outra vida, depois de Belém, onde se distinguiu na luta contra a tuberculose, tendo ainda fundado, em 2013, a Plataforma Global para Estudantes Sírios, permitindo a dezenas de refugiados sírios vir para Portugal continuar a estudar.
No plano económico, Sampaio mostrou-nos uma outra vida, uma vida para além do défice. Talvez tenha sido a frase mais marcante dos seus 10 anos de presidência, mas foi uma frase que nunca chegou a proferir.
Foi em 2003, no tradicional discurso do 25 de abril, que Sampaio criticou a obsessão de Durão Barroso e de Manuela Ferreira Leite com as contas públicas, lembrando que “há mais vida para além do orçamento”, uma frase que os jornais transformaram em “há mais vida para além do défice” e que ficou para sempre “colada” a Jorge Sampaio.
A frase foi usada de forma abusiva e descontextualizada durante anos, dando a entender que o então Presidente desvalorizava o equilíbrio das contas públicas. Curiosamente esse famoso discurso no Parlamento começou com uma onda de aplausos da bancada do PSD quando Sampaio defendeu a necessidade de controlar as finanças públicas.
Mas Sampaio disse mais. Disse que “há mais vida para além do orçamento” e que “o saldo orçamental é um instrumento e uma responsabilidade fundamental, mas não é o objetivo final da política económica”. Então qual era o objetivo? Para Sampaio, o objetivo era ter uma “economia competitiva e que não se baseasse em baixos salários e mão-de-obra barata, mas sim na qualificação dos recursos humanos”.
Sampaio estava novamente a construir uma ponte. E debaixo dessa ponte havia uma corrente de economistas mais à direita que defendia uma política austeritária do “custe o que custar”; e mais à esquerda uma corrente que defendia um modelo mais laxista, do “deixar andar que alguém há de vir pagar a conta”.
Já se passaram quase 20 anos desde essa frase do “há mais vida para além do défice”. O que aconteceu nos últimos 20 anos?
Enquanto Sampaio procurava construir pontes, nós estávamos entretidos a construir autoestradas vazias e outras que não iam dar a lado nenhum, a fazer PPP para gastar o dinheiro que não tínhamos, a alimentar uma elite de empresários que vivia à custa de rendas garantidas e de bens não transacionáveis, e a aumentar salários à Função Pública em véspera de eleições.
Quando não estávamos entretidos a engordar o défice, estávamos entretidos a apertar o cinto: cortámos salários e subsídios à Função Pública, vendemos redes de telecomunicações à pressa, demos a dívida do Fisco ao Citigroup, escondemos dívida na Madeira, nacionalizámos os fundos de pensões da banca e dos CTT, e privatizámos empresas públicas ao desbarato para baixar artificialmente o défice e a dívida.
A realidade encarregou-se de mostrar que Sampaio tinha razão. A bancarrota de 2011 mostrou que a indisciplina orçamental dos socialistas, liderados por José Sócrates, hipotecou o futuro do país e de gerações que herdaram uma dívida astronómica para pagar; e a austeridade do “custe o que custar” de Pedro Passos Coelho ou a artificialidade na descida do défice de Manuela Ferreira Leite revelaram-se contraproducentes no objetivo perseguido de baixar o défice e deixaram muitos ao abandono. Como dizia Sampaio, ou melhor, como nunca disse Sampaio, “há mais vida para além do défice”.
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