Autodeclaração de doença – seis dias sem necessidade de comprovação
Será que a propalada desoneração do SNS justifica a oneração de empresas e economia? E esta última, como se mede?
No âmbito das alterações ao Código do Trabalho, em vigor desde maio, com vista à implementação da Agenda do Trabalho Digno, foi consagrada a possibilidade de o trabalhador, duas vezes em cada ano, faltar ao trabalho (até três dias em cada uma das ocorrências) e justificar as ausências por meio de autodeclaração do próprio trabalhador, sob compromisso de honra e procedendo ao registo de autodeclaração no Portal SNS24. Os dias de falta são considerados faltas justificadas, mas implicam a perda de remuneração correspondente.
Anteriormente, a prova da situação de doença apenas poderia ser feita por comprovação de terceiro habilitado (declaração de estabelecimento hospitalar ou centro de saúde ou atestado médico).
Segundo os dados mais recentes, entre maio e agosto, foram emitidas mais de 107 mil autodeclarações. Não obstante, esta medida levanta inevitáveis questões como: Qual a forma de medição das suas mais-valias e real impacto? Qual a necessidade de registo no portal SNS? Não bastaria a mera entrega de declaração diretamente ao empregador? Como se pode verificar a veracidade da situação de doença comunicada? Esta medida é passível de abuso? O facto de os empregadores não terem de pagar a remuneração correspondente constituirá “compensação” suficiente?
Não se negam os claros benefícios para um trabalhador que, em situação de claro transtorno não terá, por exemplo, de se deslocar a um hospital para comprovar o que para si já é conhecido e com eventuais prejuízos para a sua recuperação. Não se nega igualmente que, por esta via, será certamente evitado um número considerável de consultas para certificação de situações de doença que não necessitam de assistência médica e que se destinariam à mera obtenção de um documento.
De todo o modo, não é possível afirmar, sem mais, que se evitaram 107 mil consultas no SNS, pois, para além das que se realizariam no setor privado, há outros fatores que podem concorrer para este volume de autodeclarações, nomeadamente, a facilidade do mecanismo. Neste sentido, embora este indicador possa ser útil, apenas um tratamento estatístico do número de consultas (e não de autodeclarações) em períodos homólogos poderá contribuir para a medição efetiva do impacto desta medida.
Pode ainda esta via de justificação potenciar um maior absentismo e, em limite, abusos decorrentes do facto de a possibilidade de comprovação da veracidade da doença não existir, pois não é possível ao empregador solicitar a verificação, nomeadamente, junto da Segurança Social.
Dir-se-á que o empregador não terá de proceder ao pagamento da retribuição correspondente aos dias de ausência. É certo. Mas tal consideração decorre de uma perspetiva maniqueísta da relação de trabalho, reduzindo-o a uma mera troca de trabalho por pagamento de remuneração, sem uma análise macro do que pode implicar a redução do período de trabalho anual de todos os trabalhadores até seis dias e, assim, a redução de produtividade que tal pode acarretar para uma empresa, tanto ou mais agravada em situações de trabalho por turnos, ou em que haja funções interdependentes, ou em que se exija um número mínimo de trabalhadores. Este decréscimo de produtividade, não se reduz, assim, ao efetivo trabalho não desenvolvido e pode colocar de modo mais amplo em causa a produtividade das empresas e afetar também os trabalhadores.
Aqui chegados pergunta-se: será que a propalada desoneração do SNS justifica a oneração de empresas e economia? E esta última, como se mede?
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