Bitcoin: tantas opiniões, tão poucos factos
A bitcoin é muito mais do que uma moeda, do que um sistema de pagamentos, ou do que uma forma inovadora de acumular riqueza.
Aos dias de hoje, sou analista na Quantum Economics, uma boutique Israelita de investimentos, tenho escrito muitos artigos (mais de mil…) sobre tópicos relacionados com bitcoin e criptomoedas, publicados em alguns jornais de referência no espaço das “cripto”, como são o CCN, Cointelegraph, Yahoo Finance, Coindesk, entre outros. Fui professor convidado nas universidades de Leeds (Reino Unido), Huddersfield (Reino Unido) e Nova Lisboa para lecionar cursos sobre criptomoedas, mas não me vejo de todo como um expert, longe disso, porque acredito que estamos sempre a aprender. Talvez seja por isso que decidi escrever este artigo porque estou bastante habituado a estar errado aos olhos dos meios de comunicação tradicionais, dos professores de economia de faculdades de “topo”, e de políticos cujo objectivo é apenas adquirir mais controlo sobre os outros.
Este texto não tem como objectivo fazer-vos comprar bitcoin, muito sinceramente é-me indiferente. O mercado das criptomoedas já vale mais de um trilião de dólares, quase cinco vezes mais do que o PIB de Portugal, o que significa que liquidez não é propriamente um problema. Além disso, “cada um sabe de si, Deus sabe de todos”, logo não serei eu a oferecer-vos bons conselhos financeiros. Até porque bons conselhos não se dão, vendem-se.
Pensava que as instituições financeiras existiam para esse fim, mas quiçá, talvez neste ponto esteja errado. De qualquer forma, escrevo-vos hoje para vos elucidar sobre o tema da bitcoin porque quanto mais eu leio e oiço mais percebo que nem professores de economia, comentadores políticos ou CEOs o conseguem fazer. Pelo contrário, todos estes ilustres senhores têm feito um excelente trabalho de desinformação das suas audiências.
Existem demasiados mitos e erros que são ditos sobre este tema, mas vou focar-me nos pontos mais importantes discutidos recentemente por Francisco Louçã, Vítor Constâncio e Afonso Eça, e apresentar argumentos que, a meu ver, destroem a lógica proposta. Posso também acrescentar que não foi preciso dedicar muito tempo a procurar respostas, visto que as críticas destes senhores eram, na sua maioria, baseadas em falácias que já foram há muito desmanteladas.
- Primeiro mito: A bitcoin não é uma moeda eficiente porque não processa tantos pagamentos como a Visa.
“Enquanto meio de troca, e apesar de ser um caso de sucesso de decentralized financed e aplicação de blockchain na indústria financeira, atualmente a rede de BTC processa diariamente uma quantidade residual de transações quando comparada com os sistemas de pagamentos normais”.
Afonso Eça, “A Put do Musk”
O primeiro erro sobre bitcoin prende-se com a sua fraca capacidade de processamento de transações: cerca de ~7/segundo. Este argumento poderia fazer todo o sentido, seria o primeiro a usá-lo, caso a bitcoin fosse um sistema de pagamentos. Como expliquei ao Afonso neste tweet, a bitcoin compete diretamente com bancos centrais, e não com processadores de pagamentos como a SIBS, Visa ou Mastercard. Isto é, qualquer uma destas entidades pode utilizar a bitcoin para fazer o “settlement” das transações, da mesma forma que usam ouro, euros ou dólares.
- Segundo mito: A bitcoin gasta demasiada energia, mais do que muitos países, e caso seja adotada como moeda planetária vai destruir a terra porque quanto mais utilizadores existem, mais energia é gasta.
Este argumento é bastante fácil de desmascarar. A produção de bitcoin não está relacionada com o número de utilizadores. Assim sendo, a energia gasta na produção de bitcoin está apenas relacionada com o número de máquinas a participar na criação de bitcoin. Além disso, assumir que a energia está a ser desperdiçada, pressupõe que existiria um melhor uso para essa energia. Visto que isso é apenas uma opinião, não devemos assumir que sabemos como os outros devem gastar o seu dinheiro, que neste caso se traduz em energia.
Eu entendo que, às vezes, é difícil separar o trigo do joio, mas é precisamente esse o meu objectivo.
- Terceiro mito: A bitcoin é apenas um ativo de risco, usada por criminosos.
“As criptomoedas servem para um tipo especial de transações, as que procuram evitar ser rastreadas, ou seja, o crime, e para outros agentes servem como acumulação de capital. Logo, a criptomoeda não é uma moeda por não ter um uso generalizado no comércio e na vida comum”.
Francisco Louçã, “Bitcoin alta da moeda falsa”
Em primeiro lugar, desde 2010 a banca já foi multada em largos mil milhões de euros por facilitar pagamentos ilícitos o que demonstra que obviamente a bitcoin não é, nem será no futuro próximo, o mecanismo de excelência para transações ilegais. Para tal, já existe a banca tradicional.
Em segundo lugar, é verdade que a bitcoin não é ainda usada como moeda pela maioria dos “hodlers”. Este comportamento faz todo o sentido, de um ponto de vista racional, visto que o preço de cada bitcoin está, aos dias de hoje, muito desproporcional quando visto à luz de toda a moeda em circulação. Isto é, se a bitcoin fosse a moeda de excelência usada por grande parte da população mundial, o valor de cada unidade seria muito mais elevado do que é hoje.
Devido a esta óbvia assimetria, é normal que aqueles que têm bitcoin não a queiram usar para pagamentos. Ainda.
Contudo, e isto é algo que estes colegas mais tradicionais não vos dizem, é que para eu consumir produtos tenho de gastar bitcoin. Ou seja, se eu quiser tirar partido da valorização da bitcoin terei de trocá-la por produtos. Como a bitcoin tem uma quantidade limitada, a probabilidade de eu voltar a adquirir estas moedas ao preço a que as vendi, é bastante reduzida. Ou seja, a bitcoin é uma moeda cujo valor real o mercado ainda não descobriu. Por essa razão é que muitos “bitcoiners” preferem acumular durante o período em que o mercado não valoriza a bitcoin da mesma forma que eles.
- Quarto mito: Os bancos centrais e reguladores vão acabar por regular a criação e utilização de criptomoedas. No pior dos cenários, vão banir as criptomoedas.
“Regulate bitcoin and its clones as assets (crypto-assets), explain why the digital currency that the central banks already have should be accessible to the public and in what conditions and try to put a stop to all the irrationalities that surround these issues”.
Vítor Constâncio, no Twitter
Este tópico costuma ser bastante sensível para os que acreditam na regulação e no papel interventivo do Estado, porém, é bastante simples de explicar porque a bitcoin não poderá ser regulada. Pelo menos, não da mesma forma que outros ativos o são.
Em primeiro lugar, a bitcoin já é regulada. O seu código detém todos os incentivos e regras necessárias para que a rede funcione sem nenhuma autoridade central, como tem funcionado perfeitamente nos últimos 11 anos. Sabiam que a bitcoin esteve operacional durante 99.99% do tempo em que existe? É um facto que os críticos normalmente se esquecem de referir.
Em segundo lugar, ao regular o comércio de bitcoin os bancos centrais estão apenas a dificultar o acesso aos seus cidadãos e não a regular a bitcoin como apregoam.
Costumamos dizer no mundo das criptomoedas que nenhum Governo pode banir a bitcoin, apenas podem banir os seus cidadãos de transacionar na rede da bitcoin, visto que a bitcoin vai continuar a funcionar como sempre funcionou.
Vou fornecer um exemplo prático para que percebam a dificuldade de regular redes abertas. A Bittorrent é uma rede pública e descentralizada que permite a qualquer pessoa partilhar ficheiros peer-to-peer (P2P). Os governos tentaram de todas as formas banir e bloquear a sua utilização. Mesmo assim, a única razão para que o consumo de conteúdo ilegal tenha diminuído nos últimos anos advém do aparecimento de bons serviços de streaming, como a Netflix ou Spotify.
As pessoas não deixaram de ‘sacar’ músicas e filmes ilegalmente, porque era ilegal. Passaram a consumir conteúdo através destas plataformas, porque simplesmente é mais cómodo e fácil do que estar a fazer downloads.
Voltando ao mundo das “cripto”, Portugal é um excelente caso de estudo, visto que conseguiu proibir empresas de comprar e vender bitcoin sem uma licença bancária, antes sequer de existir uma directiva Europeia sobre o tema. Felicito a decisão destes génios do Banco de Portugal: vai certamente ajudar o nosso País a atrair mais talento e empresas focadas neste sector em franca expansão. Bravo.
- Quinto mito: Para uma economia funcionar são necessários bancos centrais que controlem as políticas monetárias.
“Estes sistemas geram pressão deflacionária, seja porque os consumidores, à medida que nos aproximamos do limite superior preferem aforrar a consumir, seja porque a quantidade de moeda não acompanha o crescimento da economia e da população. Invariavelmente, os sistemas de oferta fixa colapsam, porque não ofereceram à Sociedade a flexibilidade necessária para responder a crises que necessitam de uma resposta monetária.”
Afonso Eça, “A Put do Musk”
Em primeiro lugar, é importante sublinhar que o Afonso não cometeu o erro que muitos economistas cometem de confundir deflação, com desinflação. Por isso, felicito-o.
Essencialmente, a bitcoin tem uma inflação decrescente. A este sistema apelida-se de desinflação. Assim, a bitcoin promove um sistema económico desinflacionário, ou trocando por outras palavras, um sistema de preços deflacionário. Isto significa que à medida que o tempo passa, o dinheiro que ganham vale mais.
Penso que é neste ponto que o Afonso, tal como tantos outros economistas keynesianos, se espalha ao comprido. Estes eruditos apregoam que as economias não funcionam com sistemas de preços deflacionários, porque a quantidade de moeda “não acompanha o crescimento da economia e da população”, e porque os consumidores “preferem aforrar, a consumir”. Apesar de parecer correcta, esta análise contém uma enorme falácia.
Essencialmente, conseguimos encontrar períodos na história, neste caso dos EUA pré-revolução, em que foi precisamente a não existência de bancos centrais e o facto dos preços dos bens diminuírem que permitiu a economia experienciar um aumento significativo do consumo e da produção. Mais, os salários também aumentaram durante o mesmo período. Fascinante…
Pergunto-vos agora: se o vosso salário ficasse mais valioso todos os anos, vocês aumentariam o consumo, ou as poupanças? Não posso responder, mas sei muito bem o que faria.
Por outro lado, o argumento de que a inflação é “um mal necessário” para a economia funcionar na sua plenitude é outra profunda mentira. A inflação é um mecanismo de redistribuição de riqueza que promove um aumento das disparidades entre aqueles que detêm bens (como é o caso do Afonso, do Francisco e do Vítor) e aqueles que não os têm. Este efeito foi descrito pelo economista Francês Richard Cantillon, que muito cedo percebeu que aqueles que podem imprimir dinheiro não o redistribuem de igual forma pela população.
Com o aumento da inflação (subida generalizada dos preços), quem beneficia mais deste sistema são aqueles que têm casas, ações, obrigações, e outros ativos imobiliários. Acham que grande parte da população se encaixa nesta descrição?
Caso a vossa resposta à pergunta anterior seja negativa, quero questionar-vos se não serão pessoas como este referido trio, economistas nascidos em berço de oiro, os responsáveis pelo aumento do “gap” entre os ricos e os pobres. Eu creio que sim. Mas deixo a dúvida no ar.
- Sexto mito: A bitcoin não tem qualquer valor real, são apenas dígitos num computador.
“Bitcoin is just a series of zeros and ones in a network of computers. It has no fundamental use-value because it will never be a currency. At least gold, that “barbarous relic” (Keynes), has some industrial and jewelry uses that would never justify its historical prices”.
Vítor Constâncio, Twitter
Não quero perder muito tempo a debater um ponto que já referi anteriormente, mas ainda assim… A bitcoin é um conjunto de zeros e uns, tal como o Vítor Constâncio indica. A grande diferença entre os “zeros e uns” da bitcoin é que esta é a primeira rede computacional que não permite copiar/colar informação. Isto é, cada bitcoin tem um custo elevadíssimo de criação. Esse custo é representado por toda a energia computacional gasta para criar uma nova bitcoin.
Não é também possível alguém usar as mesmas moedas para duas transações em simultâneo, nem é fácil alguma entidade retirar facilmente as moedas que estão na posse de um indivíduo. Agora começam a perceber porque os burocratas têm tanto medo da bitcoin.
Mais, ao contrário do Banco Central Europeu que apenas tem de decretar a criação de novos euros, o que no fundo é precisamente a base por onde a moeda fiduciária se governa visto que significa “moeda por decreto”, na rede da bitcoin não existe uma funcionalidade para imprimir novas bitcoin porque nos apetece.
Esta mecânica de funcionamento retira o poder aos bancos centrais de desvalorizar a moeda a seu belo prazer, e confere o direito a qualquer pessoa de participar na criação de novas bitcoin, e no processo de validação de transações.
Desta forma, torna-se simples de perceber o porquê do valor da bitcoin continuar a crescer: desde que a procura se mantenha igual, o facto de existir uma quantidade limitada de moedas cuja produção e emissão não podem ser alteradas, permite que o valor de cada unidade tenha a tendência a aumentar no longo prazo (lei da oferta e da procura). Para mais, a bitcoin parece comportar-se como um “bem de Veblen”, cuja procura aumenta quando o preço aumenta.
No futuro acredito que a bitcoin poderá garantir uma estabilidade de preços no sentido em que quando for utilizada como moeda de reserva, será muito mais fácil medir preços em termos de bitcoin, porque a quantidade em circulação será sempre conhecida. Desta forma, não existe o perigo eminente de desvalorização do poder de compra dos consumidores, nem de um banco central guiar a moeda até à hiperinflação.
Espero que este artigo ajude a compreender melhor algumas das falácias que são ditas em torno da bitcoin. Da próxima vez que lhe tentarem vender gato por lebre, lembre-se dos incentivos de quem promove artigos contra uma moeda que é descentralizada, cuja rede onde opera é aberta, e onde ninguém o pode impedir de transacionar valor.
A bitcoin é, sem dúvida, a moeda de eleição do mundo digital. O meu único conselho é que faça ouvidos moucos a quem tem mais a perder com o seu sucesso do que a ganhar. Por exemplo, todos estes senhores que referi em cima.
Gostaria de concluir deixando bem claro que a bitcoin é muito mais do que uma moeda, do que um sistema de pagamentos, ou do que uma forma inovadora de acumular riqueza. A bitcoin é a tecnologia que finalmente separa a moeda do Estado. Não se deixem enganar.
Nota: Pedro Febrero é fundador da Bityond, a primeira empresa a fazer uma Initial Coin Offering dentro das fronteiras nacionais
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