Carta digital: órfã e inconsequente
A carta dos direitos digitais está a caminho do Tribunal Constitucional, enviada pelo próprio Presidente que a promulgou, depois de criticada pelos próprios deputados que a desenharam.
A carta portuguesa dos direitos digitais está em vigor há 13 dias e continua a marcar a atualidade política. Mas não pelas melhores razões.
É motivo de celeuma o controverso artigo 6.º, que versa sobre a “proteção contra a desinformação”. Agora, juntou-se ao debate o Presidente da República. Apesar de ter promulgado a lei no dia 8 de maio, acaba de enviar o dito artigo para fiscalização sucessiva do Tribunal Constitucional.
O que diz de tão polémico o artigo 6.º? Esta é a minha interpretação dos seis pontos que compõem o mesmo:
- Ponto 1: Determina que o Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação;
- Ponto 2: Clarifica o que deve ser considerada “desinformação”: “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público [ênfase meu], e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”;
- Ponto 3: Define que se considera ainda informação “comprovadamente falsa ou enganadora” a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados (como usar o logótipo de um jornal de referência para promover uma fraude com criptomoedas, ou um vídeo gerado por computador do primeiro-ministro a dizer algo que não disse), bem como o recurso ao spam ou a bots para veicular essas mesmas mensagens, como acontece muito no Twitter;
- Ponto 4: Exclui do domínio deste artigo os “meros erros”, as sátiras e paródias (e bem, porque uma notícia errada é muito diferente de uma notícia deliberadamente falsa, vulgarmente apelidada de fake news);
- Ponto 5: Determina que os cidadãos podem apresentar queixas à ERC contra entidades que pratiquem o previsto neste artigo (ou seja, que tenham por atividade divulgar em massa informação taxativamente falsa para gerar vantagens económicas ou prejuízo público) e estipula o regime sancionatório;
- Ponto 6: Talvez o ponto mais polémico, que cito: “O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.”
Este diploma da Assembleia da República é um interessante caso de orfandade legislativa. Não tendo merecido qualquer voto contra na votação final global (a favor: PS, PSD, BE, CDS-PP, PAN, Cristina Rodrigues e Joacine Katar Moreira; abstenção: PCP, PEV, Chega e Iniciativa Liberal), é agora bastante criticado por muitos dos que participaram no seu desenho.
Mas comecemos pelo princípio. A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital resultou de propostas iniciais do PS (09/07/2020) e do PAN (11/09/2020). Mas já antes, em maio de 2019, o PS tinha apresentado uma proposta de lei semelhante, que caducou.
A proposta original do PS tinha apenas uma vaga referência à “proteção contra a desinformação”, inserida num ponto sobre o “direito a informar e a informar-se”. A segunda proposta do PS – a que contou para a carta final – desenvolve mais esse aspeto. Tem um artigo específico sobre a desinformação e já prevê, como veio a constar na lei final, que os cidadãos possam apresentar queixa à ERC contra entidades que difundam “informações falsas” como se fossem “notícias”.
Durante largos meses, o dossiê da carta dos direitos digitais foi amplamente debatido no Parlamento. Mereceu pareceres e contributos de dezenas de entidades, incluindo da própria ERC – que, já nessa altura, avisava que o projeto de lei era “bastante ambicioso”, almejava “alcançar áreas de jurisdição que claramente não estão sob o controlo do Estado português” e lhe atribuía competências que não estão na lei (na prática, a ERC só pode atuar contra uma entidade que se dedica a divulgar informação taxativamente falsa se ela estiver registada na ERC, o que é totalmente absurdo).
Surpreende-me, por isso, toda esta polémica em torno de uma lei que foi aprovada no Parlamento (sem prejuízo de ser boa ou má, e já lá vamos) sem votos contra. E têm sido várias as situações: por exemplo, não compreendo como pode a Iniciativa Liberal insurgir-se, posteriormente, contra “os artigos da censura” numa lei que não chumbou. Corrigir o que está mal? Com certeza. Fazer disto uma tentativa deliberada de dar ao Estado um poder de censura? Só com alguma criatividade.
O resultado final desta lei resulta de um fenómeno que também está muito patente lá fora: a incompetência dos legisladores no que toca aos temas da “era digital”.
Exemplo: fazer aprovar uma lei em Portugal que determina que “a utilização dos dados da posição geográfica do equipamento de um utilizador só pode ser feita com o seu consentimento ou autorização legal” é de um nível de ridículo muito difícil de alcançar. Se fosse verdadeiramente aplicada (o que é impossível a uma escala nacional), derrubaria toda a economia de dados e das aplicações no país.
Sou, por isso, da opinião – até prova em contrário – de que a carta dos direitos digitais é, acima de tudo, uma lei praticamente inconsequente. Em alguns pontos, reforça apenas o que já está estipulado noutras leis, como é o caso do artigo 5.º, que proíbe “a interrupção intencional de acesso à internet”… “salvo nos casos previstos na lei”. Noutro ponto, prevê a criação da tarifa social de internet, uma medida que o Governo já tinha posto em marcha, com ou sem carta dos direitos digitais.
Quanto ao famigerado artigo 6.º, entendo porque não causou polémica na votação final global do diploma: salvo uma ou outra disposição mais ambígua, está muito longe de prever a instituição da censura. A mudança drástica de opiniões só pode ser justificada por alguma pressão pública de interpretações muito originais, de que é exemplo a de Ricardo Pinheiro Alves aqui no ECO.
Não estamos perante uma lei ótima. Mas está no Diário da República e vai agora ser avaliada pelo Tribunal Constitucional. Porém, constitucional ou não, o que importa é mesmo a prática. E, na prática, a carta pouco ou nada vai mudar.
Leia o polémico artigo 6.º na íntegra
Artigo 6.º
Direito à proteção contra a desinformação
1 – O Estado assegura o cumprimento em Portugal do Plano Europeu de Ação contra a Desinformação, por forma a proteger a sociedade contra pessoas singulares ou coletivas, de jure ou de facto, que produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação, nos termos do número seguinte.
2 – Considera-se desinformação toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja suscetível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos.
3 – Para efeitos do número anterior, considera-se, designadamente, informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio eletrónico e o uso de redes de seguidores fictícios.
4 – Não estão abrangidos pelo disposto no presente artigo os meros erros na comunicação de informações, bem como as sátiras ou paródias.
5 – Todos têm o direito de apresentar e ver apreciadas pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social queixas contra as entidades que pratiquem os atos previstos no presente artigo, sendo aplicáveis os meios de ação referidos no artigo 21.º e o disposto na Lei n.º 53/2005, de 8 de novembro, relativamente aos procedimentos de queixa e deliberação e ao regime sancionatório.
6 – O Estado apoia a criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública.
Leia aqui a Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital.
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