Crónica casual com vista para Portugal
Absolutamente viciado no poder e na política, o Governo de Portugal transforma a Administração Pública numa grande e nada ecuménica família.
Nos anos de 1930, John Maynard Keynes considerava que muitos dos candidatos atraídos pelos mercados financeiros apresentavam uma natureza autoritária e dominadora. Gerando e gerindo pequenas ou grandes cliques, os homens das finanças orientavam as suas forças para a acumulação de poder e a acumulação de dinheiro, uma fixação de tal modo obsessiva que em certos casos tocava a psicopatia. Esta propensão dos banqueiros e financeiros tinha no entanto um benefício para a sociedade, pois concentrava a ambição e a ganância na City e na multiplicação da riqueza e não na iniquidade dos gangsters à solta pelas ruas de Londres. Curiosa inversão em que o vício privado se transforma em pública virtude.
Absolutamente viciado no poder e na política, o Governo de Portugal transforma a Administração Pública numa grande e nada ecuménica família. Para o Primeiro-Ministro tudo é normal, pois para o satisfeito governante “o marido e a mulher não pensam necessariamente o mesmo”. A Nação escuta com espanto e agradece o sacrifício familiar em nome do progresso de Portugal.
É certo que a irmandade filial do Governo exibe uma delicada estética Bairro Social. O Primeiro-Ministro que lidera a arrogância mansa do Governo foge à questão política de fundo com a má consciência de quem sabe mas não conta – nepotismo. O nepotismo substitui a lógica liberal das carreiras abertas ao talento pela lógica do compadrio, afasta o mérito da competência profissional a favor dos laços de proximidade e de parentesco. Logo o Governo invoca o interesse nacional sublinhando que as nomeações exigem o vínculo da confiança política. De caminho o argumento implica que quem não é socialista e membro da família não é digno de confiança – uma desconsideração que acrescenta um insulto. O prejuízo é para toda a sociedade, uma vez que pela cláusula parental os melhores quadros vêem-se impedidos de desempenhar as missões públicas mais elevadas.
O Primeiro-Ministro esquece ou não sabe que o nepotismo presume que a nomeação acontece em razão do vínculo familiar e não do talento natural. Em causa está o princípio da igualdade e o princípio da eficiência absorvidos pelo interesse e pela conveniência partidária. Em causa está a subordinação de auxiliares e outros funcionários a critérios externos e inorgânicos. Em causa estão princípios basilares da boa governação como a impessoalidade, a moralidade e a propriedade das decisões públicas. Claro que a arrogância mansa do Governo logo invoca as credenciais socialistas como fundadores do regime democrático, representantes absolutos da ética da República e detentores exclusivos da confiança dos portugueses no papel do partido natural do poder.
O Líder Parlamentar Socialista apresenta mesmo uma esdrúxula teoria, uma teoria que poderá ser classificada como o expoente do nepotismo darwinista. Afirma o Grande Líder que existem famílias mais vocacionadas para o serviço público em função da experiência e do contacto entre gerações, daí ser perfeitamente natural a concentração dessas famílias em lugares de nomeação política. Por efeito da selecção natural, na República da igualdade, uns são mais iguais do que outros. Na esperteza cínica de uma inclinação rústica, é Rousseau e a lógica das desigualdades naturais inscrita com hipocrisia no destino dos escolhidos. E os portugueses que se comovem por tudo e por nada.
O Partido Socialista usa o privilégio como uma tatuagem no braço esquerdo. Existe um sentido de posse e de direito que ninguém pode criticar, denunciar, contradizer. Quem o fizer é logo acusado de pertencer à distorcida Direita, termo depreciativo que implica a subversão do regime democrático. Para o Governo ser de Direita não é um posicionamento político, mas uma expressão do erro a tocar o quase crime. O Governo usa as nomeações políticas como uma engenharia social do privilégio, isto num país pouco habituado à mobilidade social. Para além do mais puro nepotismo, directo e cruzado, os cargos de nomeação política são a garantia de um estatuto, são a fonte de uma promoção social, são a causa de uma elevação do nível financeiro, ou na clássica trilogia das oligarquias – empregos, riqueza, poder. Entre a torre e a praça, as networks de influência espalham-se e dominam a sociedade à margem das instituições, mas no interior das instituições. Movimentam-se em matilha percorrendo em círculos fechados a mais pura endogamia política.
No país do milagre económico que interessa estas minudências. No país exemplo para Europa, os Socialistas são imunes aos maus instintos e à perversidade das responsabilidades públicas. Que importa que as boas práticas apontem para um Governo que nomeia e muda o pessoal político em função do interesse público e não com a intenção de criar uma burocracia dependente cujos cargos e posições são entendidos como propriedade do Governo.
No século XIX, os dois adultérios mais célebres roçaram pelo negócio político e trouxeram grandes benefícios para as partes envolvidas. Portugal vive possuído pela exuberância democrática. Quanto mais tempo passar sem perceber onde pode cair pior será a queda.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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