DAC 6: Lei n.º 26/2020, entre o encargo de comunicação e o dever da violação do sigilo

  • Nuno de Oliveira Garcia
  • 13 Novembro 2020

O tema mais penoso de assentir no novo regime relaciona-se com a desvirtuação do sigilo profissional, sobretudo para os advogados. O regime institui um sistema de ping-pong.

Se o título não lhe diz nada – e não supõe a história que se segue – então, essa é uma boa razão para ler este texto. Sem entrar em tecnicidades (impróprias entrepares, além de entorpecedoras do sentido e dimensão do escrito), começar-se-á de imediato por esclarecer que debruçar-nos-emos sobre a obrigação de reporte à AT de ‘Mecanismos’ internos e transfronteiriços, com determinadas características, por intermediários ou contribuintes relevantes, onde se pretende incluir os advogados e consultores.

As razões subjacentes à iniciativa não superam os modelos da ‘luta contra a evasão-fiscal’ e do ‘aumento de transparência’. Razões globais e intemporalmente meritórias, mas que têm vindo a assemelhar-se a bordões de fácil aderência ao ponto de, mesmo no olhar mais atento, ser difícil distinguir se é maior o intento de legislar sobre uma questão do que a intenção de a suprimir.

O regime a que nos referimos foi aprovado pela Lei n.º 26/2020, de 21 de julho, operando a transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva 2018/822 do Conselho (DAC 6). Esta Diretiva procedeu à alteração da anterior Diretiva 2011/16 do Conselho. Entretanto, e novamente em transposição de uma Diretiva, o Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 53/2020, de 11 de agosto, no sentido de deferir os prazos de obrigação de comunicação para o início de 2021, com a justificação de que as comunicações pretendidas acarretariam, no atual contexto de Pandemia, um esforço de adoção de procedimentos excessivamente oneroso. Com efeito, não só o prazo de comunicação é exíguo, como se impõe a comunicação de operações realizadas no passado (desde fevereiro de 2018).

Entrando no cerne do regime, e prometendo ao leitor a indispensável superficialidade da abordagem nesta sede, o mesmo concretiza-se numa obrigação de comunicação de operações de planeamento que preencham ‘características-chave’, sendo que a consequências do não cumprimento é a aplicação de coimas até € 160.000. O diploma define o que se entende por ‘Mecanismo’ e por ‘Características-chave’, procedendo assim, a um certo nível, a uma tipificação, acrescida, em certos casos, de um ‘Teste’ denominado de ‘Beneficio principal’ centrado na obtenção de uma vantagem fiscal.

A leitura do diploma convoca, como seria de esperar dada a sensibilidade do tema, diversas análises do regime instituído. Por um lado, e como vem sendo habitual, Portugal optou por uma via maximalista na transposição da diretiva, na medida em que incluiu a obrigação de comunicação de esquemas puramente internos, que não apresentem conexão com outros países. Por outro lado, e conforme já destacado por profissionais e académicos, algumas das características-chave identificadas e relacionadas com o teste do benefício principal implicam vantagens fiscais que resultam de disposições legais criadas expressamente para esse efeito, o que, naturalmente, se afigura desadequado. Como também parece ser excessivamente zeloso a indicação de situações já cobertas pelo Decreto-Lei n.º 29/2008, de 25 de fevereiro (lembra-se dele?). Noutros casos ainda, não se vislumbram artificiais vantagens fiscais, e é indeterminada a extensão de obrigação de comunicação. Nesta medida, torna-se evidente que não serão só os advogados com pendor para a área fiscal a terem mais este custo de contexto, com especial enfoque para as áreas transacionais.

Todavia, naturalmente, o tema mais penoso de assentir no novo regime relaciona-se com a desvirtuação do sigilo profissional, sobretudo para os advogados. O regime institui um sistema de ping-pong, no qual o profissional deve, primeiro, notificar o cliente para que este comunique, mas, caso este não o faça, cabe ao profissional comunicar à AT, identificando o contribuinte… Não deixa de ser surpreendente que o Parecer da Ordem dos Advogados de 23 de dezembro de 2019 – escrito de forma acutilante no que respeita à desconformidade do regime que se gizava e agora foi aprovado – não tenha sido devidamente ponderado, como não deixa de ser surpreendente o silêncio do atual Conselho Geral. Afigura-se mesmo paradoxal a decisão de criar um regime em que o sigilo legal fica mais posto em cheque do que estava na própria diretiva.

Estaremos perante uma obrigação que irá alterar significativamente a relação entre advogado e cliente – quem declara(?); o que declarar(?); quem declara o quê? – e entre os próprios advogados – quem é responsável: um associado(?), um sócio(?), a sociedade(?). Pode parecer trivial, mas trata-se de um tópico com relevância óbvia que, ademais, se intensifica à luz das normais mudanças de advogados entre escritórios, e as diferentes políticas e capacidades de armazenagem de dados dos arquivos, para não falar, claro está, da hermenêutica própria de cada de nós…

  • Nuno de Oliveira Garcia
  • Sócio da Gómez-Acebo & Pombo

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