Digitalização 0.0

  • João Crispim
  • 25 Agosto 2021

Como é possível que havendo países europeus a implementar a terceira geração de contadores de eletricidade inteligentes, a digitalização da energia em Portugal ainda esteja em 0.0?

A digitalização não é um fim em si mesmo. Trata-se de uma ferramenta com a qual conseguimos introduzir informação em sistemas anteriormente pouco transparentes, melhorando a eficiência do seu funcionamento. O sistema energético não é diferente – ou não deveria ser.

Recentemente, procedi à instalação de um sistema de autoconsumo, tendo feito a comunicação prévia à Direção Geral de Energia e Geologia (DGEG) nos termos da lei. Lei que também obriga, neste tipo de instalação, a existência de um contador com capacidade de comunicação remota de leituras.

Durante o trabalho, um equipamento da E-Redes, concessionária da rede de Distribuição de Baixa Tensão, deixou de funcionar, tendo sido pedida uma intervenção do piquete. Mencionei a instalação de autoconsumo, e a possibilidade de aproveitar a deslocação para a substituição do velho contador por um que comunicasse. “Não era possível”. Oportunidade perdida #1.

Atendendo ao horário de produção fotovoltaica e ao facto de ter também instalado alguma acumulação em baterias, era óbvia a vantagem da substituição do meu tarifário simples por um bi-horário. Comuniquei tal decisão à Coopérnico, meu comercializador de eleição, que prontamente fez as diligências necessárias. Informaram-me então que a E-Redes teria de deslocar um técnico ao local. Chegado o técnico, este refere ser necessária a alteração do contador, já que o que estava instalado não era compatível com este tipo de tarifário.

Informei o técnico que tinha acabado de instalar um sistema de autoconsumo e que seria uma boa oportunidade para que esta troca fosse efectuada por um contador com capacidade de comunicação remota. Infelizmente, “não era possível”: substituiu-se um velho contador por um que não comunica. Oportunidade perdida #2.

Posteriormente, devido a uns trabalhos que levaram à necessidade de desselar o equipamento da E-Redes, foi necessária nova deslocação de um técnico. Nova conversa sobre o contador e novo descarte. Oportunidade perdida #3.

Estamos na digitalização 0.0 da energia

Há muitos anos que se refere o “contador inteligente” como peça basilar de uma rede que se pretende mais democratizada, onde os cidadãos possam ser participantes ativos e conscientes, e não meros consumidores alienados, pagantes mensalmente, sem outro tipo de entendimento do seu papel no sistema. Estes equipamentos são essenciais para moldar comportamentos a uma utilização mais racional da energia e permitir que quem investe num sistema de autoconsumo possa vender o excedente ou, explorando as potencialidades da Diretiva Europeia transposta parcialmente em Portugal com insucesso demonstrado, alocar parte da produção no âmbito de uma Comunidade de Energia Renovável.

Com tanta potencialidade, não será de estranhar a intenção espelhada, logo em 2007, no Plano de Compatibilização Regulatória entre Portugal e Espanha no sector energético, de constituir um grupo de trabalho para a “Apresentação de um calendário harmonizado de substituição de todos os contadores por outros que permitam a telemedida…”.

Poderia o leitor pensar que o plano já está implementado. Na verdade, de acordo com a própria E-Redes, espera-se que em 2025 estes possam “já” cobrir todo o país e estejam então a comunicar. Para comparação, o repto de John F. Kennedy a 12 de Setembro de 1962 a respeito de “escolher ir à Lua” distou da alunagem, em Julho de 1969, de metade do tempo. Ou era mais simples ir à Lua, ou os incentivos estariam mais alinhados.

No Regulamento 266/2020 relativo ao autoconsumo, a ERSE referia a necessidade de se conhecer o plano de substituição de contadores (Artº 25º, ponto 3), já que atribuía ao detentor de um sistema de autoconsumo a responsabilidade de pagar pela substituição do contador caso esta não estivesse prevista no prazo de 12 meses. O conhecimento do plano não era possível (se existe, não é público).

Com a publicação do Regulamento 8/2021, a ERSE referia que agora é que era: a concessionária tinha mesmo de publicar o plano; mas, como até essa tarefa é certamente muito complicada, deu mais 8 meses para que o conseguisse fazer (Artº 25º, ponto 3 b)). Isto depois de mais de 12 meses de vigência do Regulamento anterior, e anos volvidos desde o arranque do início do processo de substituição de contadores.

Voltando ao meu exemplo, compreendo que, na ausência de transparência e de incentivos alinhados, os 98€ de substituição do contador me venham a ser cobrados. Compreendo menos que, com três visitas de técnicos ao local e substituição de um contador pelo caminho, continue a aguardar pela derradeira substituição que integrará a minha instalação no Olimpo das que possuirão, então sim, capacidade de comunicação de quatro leituras horárias, mais de 14 anos depois da ERSE salientar a necessidade de implementação desta tecnologia.

Não compreendo como é possível que estando a indústria em geral a entrar na era 5.0 e havendo países europeus a implementar a terceira (!) geração de contadores de eletricidade com capacidade de comunicação remota de leituras a digitalização da energia em Portugal ainda esteja em zero ponto zero…

  • João Crispim
  • Vogal da Direção e Diretor da Produção da Coopérnico

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