Energia mais limpa, sim, mas com mercados mais inteligentes
Para Portugal e Espanha, energia barata significa sobretudo reformar mercados e contratos, não abrandar a descarbonização
O novo relatório do Institute for Global Change de Tony Blair propõe repensar a estratégia de descarbonização do setor elétrico. Portugal e Espanha devem ler a mensagem do relatório para o Reino Unido — e adaptar a receita. Em Portugal, o desafio é claro: continuar a eletricidade mais limpa, mas não a qualquer preço. O momento exige reestruturar leilões e contratos por diferença para que a eletricidade possa ser não só limpa, mas também mais barata.
O relatório recentemente publicado pelo Tony Blair Institute for Global Change, “Cheaper Power 2030, Net Zero 2050”, relança um debate essencial: como conciliar a urgência climática com a necessidade de eletricidade acessível e competitiva? Este é um debate urgente pois o preço da eletricidade no Reino Unido permanece elevado, e a fatura da eletricidade continua a aumentar. Baseado no consumo médio de um agregado familiar britânico de 2.700 kWh de eletricidade e 11.500 kWh de gás, a fatura anual subiu de £1.138 em 2021 para £1.755 em 2025 — um aumento de 54%
É também importante salientar que o peso da fatura de eletricidade não é homogéneo: recai mais sobre quem menos tem. Para as empresas o resultado deste aumento é também bastante problemático: margens comprimidas e menor capacidade de investir. No plano político, este aumento traduz-se num clima onde o descontentamento com o custo de vida alimenta narrativas populistas e resistência a políticas públicas climáticas percebidas como onerosas.
O contexto britânico e a lição para o sul da Europa
As medidas propostas neste relatório procuram responder a um mercado ainda dependente do gás natural. Mas, no fundo, o que o relatório propõe é uma reformulação profunda da estratégia para o sector de eletricidade. Entre as recomendações estão: aliviar temporariamente as taxas de carbono sobre o gás natural enquanto se expande a oferta elétrica; reformar o mercado grossista para valorizar a flexibilidade; acelerar o licenciamento e o reforço das redes; desenhar contratos de longo prazo que premiem energia entregue quando mais conta; e equilibrar o sistema com um mix de renováveis, armazenamento, nuclear e procura flexível.
Em síntese, custo, fiabilidade e descarbonização numa só equação. Estas são certamente ideias provocadoras e pertinentes para o Reino Unido, onde o gás natural ainda define o preço marginal da eletricidade em quase todas as horas. Mas tais recomendações não devem ser aplicadas à Península Ibérica por razões óbvias. Portugal e Espanha vivem hoje uma realidade bastante distinta: as renováveis já dominam o mercado em boa parte do ano; o gás é marginal em menos de um quarto das horas. O que pesa nos preços e na volatilidade não é a ambição climática, mas a estrutura institucional do mercado elétrico Ibérico, em particular o sistema de leilões e dos contratos por diferença.
De leilões de preço a leilões de valor
Os leilões portugueses de energia renovável foram pioneiros e alcançaram preços recorde a nível mundial. Mas essa corrida ao preço mínimo teve um custo oculto: contratámos capacidade barata, mas não necessariamente valor para o sistema. Projetos em zonas saturadas da rede ou com produção concentrada nas horas em que a oferta está acima da procura podem ter preços imbatíveis e, ainda assim, aumentar os custos do sistema e gerar perdas através do chamado curtailment.
Importa reconhecer que o país já ensaiou passos na direção certa. Em 2022, realizou-se uma licitação para projetos híbridos (solar + eólica) com cerca de 270 MW atribuídos em sete lotes; em Março de 2024, um novo concurso exigiu armazenamento associado a projetos solares, com ofertas entre 45 e 50 €/MWh. Mas apesar destes avanços, os critérios continuam centrados sobretudo no preço, sem avaliar explicitamente a contribuição para o sistema: produção em hora de pico, redução de congestionamento da rede, flexibilidade e armazenamento. Sem essa dimensão, acabamos por comprar megawatts baratos que podem sair caros ao país.
É importante não esquecer que os leilões determinam o quê e onde se contrata, enquanto que os contratos por diferença definem como e quando se paga. A combinação destes dois instrumentos de política pública determina o perfil de produção hora-a-hora e localização de um parque elétrico. Se o leilão for só baseado no “preço” e o contrato por diferença for só baseado na “quantidade”, o sistema otimiza o que é barato no papel, não o que baixa a fatura de eletricidade.
Chegou, portanto, a altura de repensar os leilões para novos projetos. O próximo ciclo de leilões precisa de premiar “valor para o sistema”, não apenas “preço por MWh”. Isso implica ponderar a localização, o perfil de produção hora-a-hora, a integração com armazenamento e até a contribuição para a estabilidade da rede. Esta mudança na estrutura dos leilões é simples e requer apenas regras mais inteligentes. Na prática, o leilão pode aplicar um ‘preço ajustado’: a oferta é revista segundo o benefício que traz ao sistema — por exemplo, se ajuda a aliviar congestionamento ou produz nas horas de pico. Por outras palavras, o leilão pode usar um “preço ajustado”: a oferta em €/MWh seria descontada por métricas de valor (alívio de congestionamento, produção em horas de pico, possibilidade de armazenamento), com pesos definidos previamente e publicamente pelo operador de rede. Assim, por exemplo, um projeto numa zona crítica que evita congestionamento ou fornece energia em hora de ponta é melhor classificado, mesmo que o seu preço inicial seja ligeiramente superior. Neste caso, os pagamentos seriam ex post, conforme o valor efetivamente entregue, garantindo que o sistema paga desempenho real, não promessas.
Como reestruturar os Contratos por Diferença
Na sua generalidade, os Contratos por Diferença (CfD) asseguram um preço de referência (o chamado ‘strike price’) ao produtor. Se o preço de mercado ficar abaixo do strike, o produtor recebe a diferença; se ficar acima, devolve a diferença ao sistema. Em muitas versões de CfDs, o pagamento é por MWh gerado, independentemente da hora ou do local. O risco de preço é praticamente removido do produtor. Este modelo foi eficaz a baixar o custo de financiamento e a arrancar investimento.
As consequências dos atuais contratos por diferença são visíveis
A proteção de receita através do CfD incentiva a geração mesmo em horas de excesso de oferta (ou em zonas congestionadas), aumentando curtailment e custos de redispatch, que acabam por se refletir no sistema e, por via indireta, nos preços. Para perceber o argumento, lembre-se que com o CfD o rendimento do produtor está garantido. O produtor pode oferecer energia ao mercado a preço zero — ou próximo disso — sem qualquer risco de perda. Quando muitos fazem o mesmo, há excesso de oferta, e os preços caem drasticamente, até se tornarem negativos em certas horas. Mas a consequência é maior escassez nos picos: a média pouco muda, mas as horas mais caras ficam ainda mais caras — aquelas poucas horas em que o sistema está sob maior pressão.
É também importante perceber que quando uma parte muito grande da eletricidade é vendida através de Contratos por Diferença, sobra menos energia para ser negociada livremente nos mercados. Com menos produtores a vender e menos compradores a competir, esses mercados perdem liquidez — há menos concorrência e menos transparência sobre o preço real da eletricidade. A consequência é problemática: quem ainda compra energia fora dos CfDs acaba a pagar um prémio de risco mais elevado para se proteger da incerteza. Este é outro canal através do qual certos CfDs podem acabar por aumentar os preços efetivamente pagos pelos consumidores expostos ao mercado.
Como devem os CfDs ser reformados?
A solução não é acabar com os contratos por diferença, mas sim modernizá-los. Deixo aqui algumas ideias: Primeiro, implementar CfDs de duas vias indexados ao valor – o strike aplica-se a MWh valorizados, com multiplicadores para horas de pico e para energia que alivia congestionamento; neutro (ou “no pay”) em horas negativas. Assim, paga-se mais quando o sistema precisa, não quando temos produção a mais. Segundo, implementar CfDs de portefólio (solar+eólica+armazenamento) – contratam-se perfis de entrega (ex.: ≥95% de cobertura em blocos de ponta), permitindo que os consórcios internalizem o equilíbrio e reduzam picos. Terceiro, estabelecer cláusulas de “no pay” a preços negativos (com exceção de armazenamento em carga). Assim evitam-se subsídios perversos e sinaliza-se o sítio certo para investir. A ideia é simples: precisamos de contratos que recompensem quem entrega energia quando o país precisa dela — não apenas quem promete o preço mais baixo no papel.
O momento para agir é agora
Portugal prepara-se para novos leilões de grande escala. Estes concursos vão decidir onde e como se investem milhares de milhões de euros em nova capacidade renovável, incluindo o eólico offshore de 2025 (≈2 GW) e um leilão de armazenamento (≈750 MVA) até 2026. Seria um erro repetir os modelos antigos.
É importante que o Governo reconsidere a estrutura destes concursos, introduzindo critérios de valor e CfDs modernizados. É assim que se reduzem as horas em que o gás define o preço, se atenua a volatilidade e se criam condições para preços de eletricidade mais baixos e previsíveis.p
A verdadeira lição para a Europa
O Blair Report acerta na fórmula: barato e limpo têm de caminhar juntos. Mas, para Portugal e Espanha, energia barata significa sobretudo reformar mercados e contratos, não abrandar a descarbonização. O futuro da eletricidade não será decidido pela velocidade das metas, mas pela qualidade dos instrumentos que usamos para lá chegar.
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