Justiça administrativa, a filha de um Deus menor

  • Pedro Neves de Sousa
  • 23 Fevereiro 2022

A justiça administrativa tem feito o seu caminho, com o louvável esforço e a dedicação dos operadores judiciários e sem o devido apoio dos sucessivos Governos.

No filme Filhos de um Deus Menor, de 1986, Sarah Norman é uma jovem mulher surda de nascença, que enceta uma luta pelo direito a usar a língua gestual. Sarah recusa-se a falar a língua inglesa, entendendo que a sua língua materna (gestual) é suficiente para as suas necessidades de comunicação. Como sucede na maioria dos filmes de Hollywood, tudo termina com um final feliz, nomeadamente numa arrebatada história de amor entre as personagens Sarah Norman e John Leeds.

Ora, tal qual a língua gestual de Sarah Norman, a justiça administrativa começou por ser vista como uma área de menor importância, onde, numa perspectiva influenciada pela cultura jurídica francesa, a actuação da Administração parecia ungida de uma presunção de legalidade e os meios de reacção dos particulares escasseavam.

Após a revisão constitucional de 1997, emergiu o conceito de tutela jurisdicional efectiva, que pretendia conceder meios processuais de reacção aos particulares perante as acções e as omissões da Administração, o que representou uma importante alteração de paradigma na justiça administrativa.

Neste contexto, importa salientar que no dia 22 de Fevereiro decorreram 20 anos desde a publicação em Diário da República da Lei n.º 15/2002, que aprovou o Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o qual concretizou a aclamação constitucional de 1997 no plano processual.

E se é verdade que o referido diploma legal só entrou em vigor em 2004, importa reflectir acerca da justiça administrativa dos últimos anos, analisando o seu percurso e perspectivando os principais desafios para o seu futuro.

Ora, à boleia do aprofundamento dos meios de reacção dos particulares, existe hoje uma maior consciencialização dos cidadãos e das instituições para reagir contra a Administração, sempre que se coloquem em causa direitos ou interesses legalmente protegidos.

Tal atitude activa da banda dos particulares tem multiplicado as pendências nos tribunais administrativos, seja no âmbito do Urbanismo, da Contratação Pública, do Ambiente, da Função Pública ou em casos de responsabilidade civil do Estado. E se no plano legislativo a justiça administrativa está bem apetrechada, o mesmo já não se pode dizer do número de magistrados, de oficiais de justiça e até das próprias instalações dos tribunais administrativos, o que se traduz em atrasos inadmissíveis nas decisões de mérito por que desesperam os particulares e que já têm sido objecto de várias condenações do Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

Volvidos 20 anos desde que a letra da lei processual emancipou de forma efectiva a justiça administrativa, observa-se que a mesma funciona de forma lenta e consequentemente injusta para os cidadãos, pelo que se reclama do poder político uma aposta séria nesta jurisdição.

Nesse sentido, engrossamos o entendimento da Senhora Conselheira Dra. Dulce Neto, Presidente do STA, que no relatório anual de 2020 do Conselho Superior do Tribunais Administrativos e Fiscais já advertia o seguinte: “Espera-se que os dados contidos neste relatório tenham a virtualidade de desencadear a intervenção, séria e eficaz, de que a justiça administrativa e fiscal carece para superar os desafios que enfrenta a poder cumprir cabalmente a função que constitucionalmente lhe compete”.

A justiça administrativa tem feito o seu caminho, com o louvável esforço e a dedicação dos operadores judiciários e sem o devido apoio dos sucessivos Governos, mas poderá não ter o final feliz da Sarah Norman, encrustando-se definitivamente como filha de um Deus menor, para grave prejuízo dos cidadãos.

Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.

  • Pedro Neves de Sousa
  • Advogado da Dower Law Firm

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