Lenine em Gaza

Gaza é o símbolo de uma geografia política errática, incerta, imprevisível, mortal.

A Palestina é um arquipélago onde a morte se mistura com a esperança numa geografia caótica. Enclaves, territórios autónomos, colonatos, estados de facto, estados sem facto, kibutzes. A Palestina gera mais história do que aquela que consegue absorver. A história explode a geografia como um embaraço para o mundo. O mundo que revela um prazer absolutamente lascivo perante a violência e o sofrimento longínquo. Israel com o pogrom de Outubro e Gaza com os bombardeamentos que abrem um buraco negro nas consciências.

As consciências rebentam em artigos de opinião, comentários televisivos, manifestações nas ruas das cidades, tudo em nome da indignação que é sinónimo de Humanidade. Só que a Humanidade é coisa rara e complicada. A indignação é mais fácil, mais imediata, a irremediável necessidade de se partilhar o lado certo da história polido até ao cinismo da absolvição. A indignação não pretende ser razoável, pretende apenas a “objectividade simplista” daqueles que nunca estiveram expostos a um milímetro sequer do grande arquipélago da aniquilação que é a Palestina.

A indignação é a grande ideologia do ocidente. A indignação é a maior impotência do ocidente. Perante o espectáculo da degradação humana de Gaza e perante o espectáculo da degradação política de Israel, ninguém se consegue identificar simultaneamente com os mortos, com os civis, com os reféns, com os soldados, com os terroristas. A indignação é a falsa consciência da razão numa sequência de slogans triviais. Gritar nas ruas todas as teorias é um gesto fútil que ignora que todo o poder político acabará por recorrer à monotonia do massacre.

O massacre que visita as ruas de Israel sem se importar se alguma vez os cães passearão despreocupados. O massacre que se apresenta legitimado pelo “totalitarismo teocrático” do Hamas. O massacre que se passeia nas ruas de Gaza numa tempestade de areia artificial. A devastação produz modelos sociológicos onde sobram os animais para devorar o vento. O massacre que se apresenta legitimado pelo “liberalismo secular sionista”. Para compreender esta descida ao inferno teremos de analisar esse estranho “sono da razão” que produz heróis e mártires com um notável esplendor artístico.

Os massacres invisíveis longe do bazar diplomático pertencem à natureza política do terror. O regime do terror, na sua eficiência demente, oprime para extrair factos, tal como oprime para recolher ficções que legitimam a sua visão política da realidade. Lenine governa os dois lados da Palestina com a brutalidade insaciável de uma solução política final – a crueldade institucional do aparelho punitivo de Israel e a brutalidade anárquica da ofensiva do Hamas. No meio deste dilema fica a Humanidade comum entregue a uma burocracia política separada de qualquer sanção moral.

Na grande ideologia da indignação que invade o ocidente existe a revisitação de muitos dogmas – o ódio ao “liberalismo secular”, um profundo sentimento anti-semita, um desprezo pelo “consumismo degenerado”, o ódio ao “colonialismo”, uma vaga e milenar “compaixão ecuménica” que simplesmente promove a paixão pela nostalgia de uma “harmonia universal”. A grande ideologia da indignação é o ocidente a odiar-se a si mesmo.

Na grande ideologia da indignação que invade o ocidente existe a reformulação de um certo “marxismo moral”, que se mistura com os “libertários radicais”, numa reivindicação que termina num “socialismo utópico” concentrado na “política pacifista universal” da “consciência tranquila”. O planeta-protesto é um pavilhão a céu aberto onde se pretender recusar o passado e a história em nome da “banalidade do bem”.

Gaza é o símbolo de uma geografia política errática, incerta, imprevisível, mortal. O estado de Israel e o “estado” da Palestina ocupam terras que não lhes pertencem, mas em que sempre viveram sem os detalhes do estado-nação e da invenção das fronteiras. O conflito na Palestina pode ter uma origem milenar, mas exibe sem dúvida a marca da modernidade que fez do nosso mundo um inferno regional.

Como diria Lenine, Gaza é o símbolo em que “há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem”.

Como diria Lenine, em Gaza o Hamas é a “mente, a honra e a consciência de uma época”. Mesmo que não seja a de um povo inteiro.

Como diria Lenine, em Gaza a “liberdade é uma coisa tão preciosa que devia ser racionada”. A liberdade de Israel e a liberdade da Palestina numa assinatura registada em arame farpado.

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