Longe da vista, longe da razão

  • Pedro Barosa
  • 24 Abril 2020

Vamos começar o julgamento. O quarto dos brinquedos agora está livre. Mas não tem nenhuma estante de livros respeitável que eu possa exibir. Talvez seja então melhor irmos para o escritório.

Não sabemos quando esta pandemia terminará, nem tão-pouco o tempo de vida da legislação que se tem vindo a adaptar a esta nova realidade. Tal como em praticamente todos os setores, também na justiça assistimos a bastantes mutações e, no que aqui (me) importa, na condução dos processos e em particular na realização de diligências judiciais.

Naturalmente que me causa especial apreensão o que possa acontecer no tocante à tramitação dos processos de natureza penal, considerando que, realisticamente, esta “excecionalidade” que vivemos no mundo de hoje poderá não terminar apenas com um decreto.

Não pretendo, nem irei aqui, ao detalhe, passando a pente fino as recentes normas em vigor ou delas fazendo uma maçadora interpretação. Não tenciono também insurgir-me contra alguns magistrados que têm decidido realizar diligências judiciais sem o consentimento dos sujeitos processuais e sem garantirem o mínimo de condições de segurança. Tão-pouco quero fazer algum juízo crítico, até porque, convenhamos, ainda nos estamos a aperceber do problema e será cedo para apresentar soluções. Eu, com franqueza, não tenho nenhuma.

Mas preocupam-me as alternativas que temos e o que o futuro próximo nos possa reservar: no fundo, ou estaremos todos presentes no tribunal – como sempre até hoje – ou não estará ninguém, a não ser os juízes e procuradores.

A primeira opção poderá ser arriscada para a saúde dos intervenientes, sendo para isso necessário estarem reunidas condições para garantir um mínimo de distanciamento social, a começar desde logo pela entrada nos edifícios dos movimentados tribunais, muitas vezes “invadidos” por massivas filas de testemunhas que ainda terão de ser revistadas à boca do único pórtico de segurança disponível.

A segunda opção parece ser a que já vemos acontecer nalguns casos: a realização de diligências judiciais à distância através de sistema de videoconferência, estando presentes na sala de audiências apenas o(s) juiz(es) e o procurador.

Não tendo grandes alternativas a propor, não me ficaria bem criticar (gratuitamente) este sistema. Opto apenas, assim, por traçar um cenário e colocar questões práticas num hipotético julgamento à distância realizado no âmbito de um processo penal.

Vestimos a parte de cima do fato para começar o julgamento. Debaixo podemos manter as calças de ganga que não aparecem no ecrã. Mas colocamos a toga?

Vamos começar o julgamento. O quarto dos brinquedos agora está livre. Mas não tem nenhuma estante de livros respeitável que eu possa exibir. Talvez seja então melhor irmos para o escritório.

Tudo a postos e é feita a ligação à sala de audiências, onde já estão sozinhos o juiz e o procurador do Ministério Público, numa humana (e inevitável) cumplicidade que a própria situação pode gerar, mas que, naturalmente, não nos agrada.

O arguido, nosso constituinte, que vai ser julgado, onde deve estar? Ao nosso lado e à distância do tribunal, ou na sala de audiências e distante de nós? Se ele estiver na sala, como posso usar do direito de conferenciar com ele no decurso das suas declarações se vir nisso repentina necessidade? Ligo-lhe? Envio-lhe uma mensagem? E se ele estiver ao meu lado e à distância do tribunal, posso livremente interromper e pedir ao juiz para desligar a câmara e o microfone?

E se, por hipótese, o julgamento se realizar com o arguido presente na sala de audiências e o mesmo pretender usar a sua máscara para se proteger de qualquer contaminação, pode o juiz pedir-lhe que a retire, para melhor enxergar as suas expressões faciais e assim avaliar a credibilidade das suas declarações?

É tempo de inquirir a primeira testemunha. Estando a mesma em casa, estará isolada numa sala apta a depor sobre os factos? Como pode o tribunal assegurar-se de que o faz de forma livre e espontânea? Terá o juiz modo de se certificar que a testemunha não tem um guião na sua frente, ou alguém que, num ângulo oculto da câmara, lhe vai ditando as respostas?

Entretanto tinha pensado em confrontá-la com 12 documentos constantes do processo (3 do volume V, 2 do volume VII e 7 dos apensos II e XI). Como proceder de forma prática?

No decurso da análise do segundo documento, a imagem do ecrã paralisa – o WI-FI da testemunha deve ter ido abaixo. Acaba o julgamento? Esperamos pela testemunha seguinte que só foi convocada para “comparecer” daqui a uma hora?

Os exemplos continuariam e haveria muito por onde explorar, não tivesse a minha criatividade limites. Mas correspondem a dinâmicas recorrentes num julgamento comum.

Acresce que em determinados processos de natureza mais pessoal ou íntima, as vítimas sentir-se-iam mais desamparadas pelo sistema, dando porventura azo a um menor recurso aos tribunais e a um maior sentimento de insegurança. Isto para não mencionar a insegurança já própria das plataformas informáticas que permitem o estabelecimento das ligações, das quais toda a prova passaria a depender.

No fundo, este sistema teria a séria potencialidade de amputar os direitos dos sujeitos processuais, de comprometer a operacionalidade da justiça, a apreciação da prova e, por conseguinte, a justeza das decisões judiciais. E esta poderá ser a realidade que nos espreita (por uma webcam).

  • Pedro Barosa
  • Sócio contratado da Abreu Advogados

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