Mais (habitação) do mesmo

  • Raquel Sirvoicar Rodrigues
  • 1 Agosto 2023

Urge que as medidas para resposta à crise sentida na habitação não excluam as possibilidades de investimento, mas antes que as redirecionem no sentido do financiamento do orçamento de Estado.

Volvidos quatro meses da primeira conferência sobre o pacote de medidas para “revolucionar” o acesso à habitação para os portugueses, e embora muito já tenha sido esgrimido entre as várias forças políticas do nosso Parlamento, são mais as dúvidas do que as certezas quanto ao que António Costa e o seu executivo irão realmente fazer no mercado imobiliário em Portugal.

Ainda que tenha havido uma consulta pública – não isenta de uma evidente falta de organização, prazos sucessivamente alargados sem aparente justificação ou particular lógica, e processo pouco linear em toda a linha – é inevitável que a perceção dos stakeholders mais relevantes no mercado seja a de que os seus interesses estarão a ser lesados sem que exista necessidade para tal.

São inegáveis os problemas no direito à habitação e, em certa medida, transversais para a esmagadora maioria dos portugueses – desde o comum proprietário de habitação própria e permanente que vê a sua prestação da casa a duplicar de um dia para o outro, para não mencionar situações bem mais drásticas, como aquelas que se vivem diariamente no limiar da pobreza, – tudo isto num contexto de um país fortemente marcado por uma cultura de parca literacia financeira e de incontáveis famílias que vivem paycheck to paycheck. A estes contextos mais particulares estão aliados fenómenos conjunturais contra os quais todas as grandes cidades europeias batalham – gentrificação massiva, descaracterização das cidades e afastamento dos habitantes para as periferias. Por esta mesma razão, exigia-se um pacote de medidas verdadeiramente conectadas com a luta dos portugueses na procura de habitação digna, ao invés do uso de soluções aparentemente estruturais que estão desligadas dos resultados concretos que pretendem alcançar e são cegas face aos efeitos nefastos a que inevitavelmente conduzirão.

Tomando-se o exemplo do fim da concessão de vistos gold, muitos são os que têm vindo a denunciar o enorme prejuízo que a medida irá causar a investimentos que estão ainda em curso, violando o corolário constitucional da tutela da confiança. A este respeito, o Governo justificou a medida como meio de atuar contra um alegado fenómeno de especulação imobiliária exclusivamente causado por quem investiu em imobiliário ao abrigo deste programa, quando a expressão dos Vistos Gold é irrisória face ao panorama geral do investimento estrangeiro – que medidas serão apresentadas para combater a escalada de preços causada por investidores alemães, belgas, franceses, livres de limitações para investir e habitar em Portugal? Ainda neste âmbito o Governo, mesmo que instado para o efeito no contexto da consulta pública, permaneceu em silêncio quanto à razão pela qual irá ser revogado este regime quanto a investimentos em imóveis destinados a turismo – uma medida que não irá libertar imóveis para habitação, já que estes seriam sempre desadequados para esse efeito, e apenas servirá para defraudar as expectativas juridicamente tuteláveis dos operadores que desenvolveram projetos em larga escala contando, com o acesso a este regime.

Impõe-se questionar o Governo se esta medida foi estudada verdadeiramente para proteger os cidadãos e corrigir assimetrias, ou se apenas responde politicamente a um clamor popular há vários anos difundido pelo público, que pede o fim dos vistos gold demonizando o programa e julgando-o a uma escala muito maior do que a importância real que assume.

É evidente, por estas razões e outras que têm sido mencionadas no debate público, que o projeto-lei não passa o crivo da tutela da confiança – uma situação que é, desde logo, agravada pelo facto de os stakeholders no mercado já terem tido que adaptar os seus planos de negócio no seguimento da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 14/2021 de 12/01, a 1 de janeiro de 2022. Note-se que este diploma – representando uma alteração de regime largamente menos gravosa do que a que se propõe com o pacote Mais Habitação quanto aos vistos gold – previa uma vacatio legis de quase um ano, enquanto o projeto-lei agora em discussão propõe a entrada em vigor logo no dia seguinte ao da sua publicação, agravando o clima de instabilidade no mercado.

Urge que as medidas para resposta à crise sentida na habitação não excluam as possibilidades de investimento, mas antes que as redirecionem no sentido do financiamento do orçamento de Estado para desenvolvimento de programas de arrendamento acessível, apoio à compra de habitação própria e permanente, desenvolvimento do parque habitacional disponível, entre outros programas de apoio.

  • Raquel Sirvoicar Rodrigues
  • Associada sénior de Imobiliário da CCA Law Firm

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