Não há prioridade aos caminhos de ferro sem reformas
A reforma do sector ferroviário virá com muito atraso, mas pior será se nunca chegar. Não é possível querer resultados muito diferentes executando sempre da mesma forma.
O país já muito quis discutir o que fazer nos transportes e problemas como os da habitação só devem aumentar ainda mais a pressão nesse sector – contrariamente à total desaparição das prioridades do governo. Os caminhos de ferro são, mais do que uma prioridade, um desejo da Nação. Mas estará este desejo formulado estrategicamente e estarão os nossos governos sucessivos a criar condições para executar a estratégia?
Recentemente, o CFP alertou que Portugal sofre, desde 2012, de um consumo de capital fixo superior ao investimento – isto é, em termos globais os activos do Estado têm perdido valor. O sector ferroviário será talvez dos que melhor ilustra esta perda de valor, e encontramos nesta realidade a necessidade fundamental das políticas públicas garantirem e cumprirem metas de investimento do orçamento do Estado (esqueçamos os fundos europeus que podem chegar adicionalmente).
Julgo que estamos num momento em que já não é possível tapar o Sol com a peneira. Algum movimento no sector ferroviário tem sido fundamentalmente pontual, em detalhes sem expressão e arbitrário. Uma das razões é a falta de estruturação do sector, que mantém o lastro a sovietização herdada dos anos 80, tapada desajeitadamente por algumas obrigações ou recomendações europeias, como a que permitiu separar operação e gestão da infraestrutura.
Partindo da estratégia e de ambiciosas metas – como ligar todas as capitais de distrito ou triplicar a quota modal dos caminhos de ferro no transporte de passageiros – é fundamental estruturar o nível táctico.
Do lado do financiamento, com a regra de ouro orçamental a que já aludi, mas também com a capacitação, via Parpública, de uma verdadeira frota de material circulante moderna e dimensionada para as obrigações de serviço público que o Estado entende serem necessárias e que contrata, hoje em dia, a CP e Fertagus.
No lado institucional, sem reformas decididas e uma visão abrangente, o sector continuará fechado sobre si mesmo e entretido por iniciativas pontuais, tipicamente emanadas do Governo e entrando directamente num nível operacional onde a intervenção política devia ser marginal – lembremo-nos dos recentemente descobertos casos de interferência na TAP.
O IMT, que devia servir como verdadeiro órgão de planeamento e assessoria de políticas públicas, continua coartado na sua missão e subjugado à realidade onde os gabinetes ministeriais efectivamente assumem por inteiro este papel, ao sabor das suas prioridades partidárias, mas também da Infraestruturas de Portugal, gestor de infraestruturas que gasta demasiado tempo com planeamento estratégico do sector e que até excede claramente algumas das suas atribuições, misturando-se nas competências da autoridade nacional de segurança ferroviária, hoje em dia contida no IMT mas cuja autonomia devia também estar claramente consagrada.
Por outro lado, os grandes programas de investimento – Ferrovias 2020 ou PNI 2030 – caem totalmente nas costas do gestor de infraestruturas, obrigado a negociar com as Finanças projecto a projecto – porque não são feitas alocações de meios a programas? – mas também com entidades como o ICNF, a APA, entre outros. Se a prioridade de execução destes programas é real, uma boa velha estrutura multi-disciplinar cuja liderança reporte directamente ao ministério e em hierarquia paralela à da IP seria fundamental.
O regulador, a AMT, tem de poder ter meios reais para perseguir os seus objectivos. A sua liderança deve ser escolhida por concurso público internacional e a clara ingerência política visível em alguns dos seus quadros deve ser revista. Os meios para ser independente devem permitir também atrair algum talento internacional de forma regular, pois ao regulador deve caber o papel de supervisão do sistema, mas também de promover a inovação e desafiar todos os agentes do sector a elevarem o seu nível. Um regulador neste sector não pode ficar limitado a olhares nacionais.
Por fim, a operação e a regulação. Nenhuma empresa pública, com excepção da IP, deve continuar obrigada ao espartilho do estatuto de EPE, e aos opacos benefícios que daí emanam também, devendo ser convertidas em sociedades anónimas detidas a 100% pelo Estado, com reforço da transparência e autonomizando totalmente a gestão. A tutela do Estado não deve ser exercida directamente nas empresas, cuja actividade do dia-a-dia deve estar totalmente centrada no passageiro e no nível de serviço, subordinadas às concessões atribuídas pelo IMT, instituição, essa sim, respondendo ao ministério. Isso obriga também os operadores a focarem-se na sua verdadeira missão, servir o passageiro, em vez de se dispersarem em papéis secundários de importância mais que duvidosa.
O regulador, a AMT, tem de poder ter meios reais para perseguir os seus objectivos. A sua liderança deve ser escolhida por concurso público internacional e a clara ingerência política visível em alguns dos seus quadros deve ser revista. Os meios para ser independente devem permitir também atrair algum talento internacional de forma regular, pois ao regulador deve caber o papel de supervisão do sistema, mas também de promover a inovação e desafiar todos os agentes do sector a elevarem o seu nível. Um regulador neste sector não pode ficar limitado a olhares nacionais.
A reforma do sector ferroviário virá com muito atraso, mas pior será se nunca chegar. Não é possível querer resultados muito diferentes executando sempre da mesma forma, e da definição estratégica para a execução no patamar operacional existe um enorme vazio de clareza institucional e incentivos organizacionais para que os caminhos de ferro possam ser de facto um motor dinâmico deste país, e não um permanente lastro de problemas e complicações. É o futuro do sector que está em causa.
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