
Nota sobre as novidades (algumas não tanto…) do regime do confisco
Tenho dúvidas quanto à conformidade constitucional da “perda de riqueza injustificada associada a conduta criminosa”, atenta a facilidade com que se visa permitir o confisco de presumidos inocentes.
O Anteprojeto aprovado, esta quarta-feira, pelo Governo com novas regras para o confisco de bens tem, na sua origem, a Agenda Anticorrupção do XXIV Governo Constitucional. O relatório técnico que, como tal, inspirou o Anteprojeto, foi, oportunamente, comentado pela MFA Legal, em sede de consulta pública.
O anteprojeto visa transpor a Diretiva 2024/1260 do Parlamento Europeu e do Conselho de 24 abril de 2024 e, nessa medida, desenvolve (i) o regime da “perda alargada” (que, na Diretiva, consta do artigo 14.º) e (ii) o regime da “perda não baseada numa condenação” (que, na Diretiva, consta do artigo 15.º) e (iii) cria a figura da “perda de riqueza injustificada associada a conduta criminosa” (que, na Diretiva, consta do artigo 16.º).
No que toca ao regime da “perda alargada”, a novidade do Anteprojeto reside no facto de a perda de bens passar a ser “em espécie” e não pelo valor de bem.
Entende-se que a solução visada já tem conforto no regime legal vigente, sobretudo se se considerar uma interpretação da lei vigente conforme ao direito comunitário, concretamente à luz do artigo 3.º, 2) e do artigo 14.º da Diretiva 2024/1260 sobre o conceito de “bens” e sobre o regime da “perda alargada”. Em todo o caso, compreende-se o porquê de o Governo pretender esclarecer este aspeto, na medida em que a doutrina não se mostrava unânime quanto à interpretação do regime.
O que vem de se dizer não deve ser interpretado como a manifestação de uma concordância de princípio com o regime de “perda alargada”. Para que fique bem claro: não obstante a pronúncia que o Tribunal Constitucional já teve acerca da matéria (em sentido diferente), sempre tive – e tenho – sérias dúvidas acerca da conformidade constitucional do regime da “perda alargada”, à luz dos princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo e proporcionalidade.
Desde logo, e por exemplo: o regime da “perda alargada” permite que a perda seja pedida e decidida – e o correspondente arresto seja, entretanto, acionado na pendência do processo-crime e, portanto, antes de uma decisão final (com os naturais inconvenientes que isso acarreta) –, apenas com recurso a uma diferença aritmética, sendo encargo do arguido provar a justificação lícita de cada um dos movimentos praticados, num período temporal bastante alargado.
Isto porque, no fundo, se parte do pressuposto (presume-se!) que, porque o arguido se encontra condenado ou indiciado (depende se falamos da perda ou do arresto, respetivamente) de ter cometido um crime do catálogo do artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, o mesmo terá tido, antes disso, uma carreira criminosa geradora de proventos ilícitos. E tudo isto apenas e só porque as autoridades judiciárias (e, por vezes, com base em erros crassos!) apontam determinados rendimentos como “incongruentes”, porque incompatíveis com os rendimentos lícitos, que corresponderão aos declarados fiscalmente pelo arguido.
Se assim é, dificilmente se percebe como é que a “perda alargada” se compagina, desde logo e por exemplo, com o princípio da presunção de inocência, que pretende garantir que uma pessoa visada pelo processo penal seja, até ao trânsito em julgado da decisão condenatória, tratada como inocente.
Relativamente ao regime da “perda não baseada numa condenação”, há que começar por dizer que o mesmo também não é uma novidade no regime jurídico português.
De acordo com o ordenamento jurídico vigente, o mesmo existe no contexto da chamada “perda clássica” de instrumentos, produtos e vantagens do crime. “Perda clássica” esta que acontece quando se prova, no processo, a conexão entre a prática do facto ilícito e o correspondente proveito – por contraposição à dita “perda alargada”, que tem lugar quando exista um processo-crime por crimes do catálogo do artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, e, nesse contexto, se verifique existir incongruência entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos, presumindo-se dessa incongruência a sua natureza ilícita.
A Diretiva 2024/1260 também circunscreve o regime da “perda não baseada numa condenação” aos casos de “perda clássica” – o artigo 15.º da Diretiva faz referência expressa ao seu âmbito de aplicação, que é a matéria prevista nos artigos 12.º e 13.º do diploma (“perda [clássica]” e “perda de bens de terceiros”, que está relacionada com aquela), e não também o respetivo artigo 14.º (“perda alargada”).
O relatório técnico da Agenda Anticorrupção do Governo, que precedeu o Anteprojeto, não se mostrava absolutamente esclarecedor quanto à “localização” do regime da “perda não baseada numa condenação” na órbita da “perda clássica”. Ao que parece, o Anteprojeto – e bem – terá clarificado a questão. Trata-se de um aspeto importante considerando a agressividade de que a “perda alargada” é dotada.
Por outro lado, nunca será de menos frisar que vejo com bons olhos o exercício do Governo de clarificar o regime de “perda não baseada numa condenação”. De facto, a jurisprudência portuguesa não tem sido uniforme na sua aplicação; desde logo, não há posição unânime quanto ao contexto, quanto aos requisitos e quanto ao grau de convicção em relação aos factos que é necessário para o acionamento do mecanismo.
Contudo, no exercício de revisão do mecanismo, alguns aspetos deveriam ter sido considerados e, ao que parece, não foram. Desde logo, considero que o confisco de ativos, nesta sede, apenas deveria ser possível através da descrição de um facto ilícito típico, da demonstração da sua ocorrência e do seu agente, bem como da ligação entre o facto e os ativos em causa, segundo as regras penais e com as garantias que elas oferecem.
Nessa medida, seria prudente que, em termos processuais, se exigisse uma acusação ou, pelo menos e no limite, um despacho de encerramento de inquérito, onde, mesmo em caso de arquivamento (apenas pelas razões específicas em que a “perda não baseada em condenação” é possível e sempre no pressuposto de que foram recolhidos indícios suficientes da prática do facto ilícito-típico), se indicassem os factos, a prova e o direito aplicável ao confisco, na linha das exigências impostas pelo artigo 283.º do Código de Processo Penal. A isso deveria seguir-se a posterior determinação judicial do facto ilícito típico e a verificação dos demais pressupostos de que depende a perda.
Ao invés, e segundo parece, o Anteprojeto aponta para a possibilidade de se abrir um processo autónomo, de natureza não penal, para estes efeitos, o que deverá ser visto com cautela, atentas a menores garantias que daí poderão advir.
Por fim, ao que parece, no contexto da “perda de riqueza injustificada associada a conduta criminosa”, a perda de bens passaria a ser possível com base em prova meramente indiciária sobre a potencial ilicitude do bem, sem que haja uma condenação no processo penal, seja uma condenação pelo crime do qual decorreriam as vantagens (à semelhança do que acontece na “perda clássica”), seja uma condenação por um crime grave do catálogo, que serviria como pressuposto e pretexto para uma perda mais ampla que se reporte a presumida atividade criminosa lucrativa anterior (à semelhança do que acontece na “perda alargada”).
Tenho sérias dúvidas quanto à conformidade constitucional da “perda de riqueza injustificada associada a conduta criminosa”, atenta a leviandade e facilidade com que se visa permitir o confisco de bens de (nunca será demais relembrar…) presumidos inocentes.
Basta recordar que um dos argumentos utilizados pelo Tribunal Constitucional para declarar a não inconstitucionalidade do (menos agressivo) regime da “perda alargada” – a saber: existir a segurança de que apenas existiria esta perda, mais agressiva que a dita “perda clássica”, porque baseada em presunções, após o trânsito em julgado de uma condenação, no contexto de um due process (e.g., Ac. TC n.º 392/2015) –, neste caso, pura e simplesmente, não se pode reproduzir. Inexistindo, no regime da “perda de riqueza injustificada associada a conduta criminosa”, esta alegada “válvula de segurança”, dificilmente se reconhecerá que o mecanismo está conforme à Lei Fundamental, nomeadamente com o princípio da presunção de inocência.
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