O direito a desligar

  • José Mota Soares
  • 9:19

A formulação legislativa não nos parece que tenha consagrado um verdadeiro direito do trabalhador à desconexão o qual, na verdade, deverá ser encarado tendo em consideração as diferentes realidades.

Na era do trabalho híbrido começam a surgir, a nível mundial, os primeiros casos de que o modelo está a merecer alguma necessidade de calibração, fruto de diversos relatos de incumprimento por parte dos colaboradores, difíceis de provar e que a jurisprudência ainda não tem solução. Parece-nos certo que este tema será alvo ainda de muita reflexão e definição das melhores práticas para mitigar este desconforto enraizado entre empregadores e colaboradores.

Assim, vamos começar por uma parte que continua uma zona cinzenta neste novo paradigma do Trabalho: o “direito a desligar”. O conceito foi inaugurado em 2016 na Europa por França, no âmbito de uma decisão judicial que deliberou sobre o direito de trabalhador poder recusar laborar, fora do seu horário e local de trabalho. Neste mercado, o direito não é de aplicação direta e imediata, implica negociação com estruturas sindicais. Na ausência destes acordos, o empregador poderá elaborar uma política sobre o tema, após consulta do comité social e económico, onde define os termos e condições para o exercício do direito a desligar.

Em 2017, seguiu-se Itália, no entanto, com uma legislação que estabelece que apenas os trabalhadores remotos têm o direito de se desligar dos dispositivos tecnológicos e das plataformas que utilizam no exercício das suas funções, sem sofrer quaisquer consequências no seu estatuto laboral ou compensação. Em 2018, seguiu-se Espanha que, com a transposição do GDPR para a legislação local, introduziu um novo conjunto de direitos digitais, nomeadamente o direito à desconexão de todos os trabalhadores, tanto do setor privado como do setor público. Em 2021, no auge da pandemia, o governo irlandês anunciou o novo código de práticas laborais, segundo o qual todos os trabalhadores têm o direito de se desligarem do trabalho fora do horário normal de trabalho, incluindo o direito de não responder imediatamente a e-mails, chamadas telefónicas ou outras mensagens.

Em Portugal, o tema do “direito a desligar”, mereceu destaque com a entrada em vigor da Lei 83/2021, de 6 de dezembro de 2021, a qual, visando alterar o regime do teletrabalho, veio adicionar uma nova disposição ao Código do Trabalho (Artigo199.º-A) o qual, sob a epígrafe “Dever de abstenção de contacto”, expressamente impõe aos empregadores o dever de se absterem de contactar os trabalhadores fora do horário normal de trabalho, ressalvadas situações de força maior. A referida disposição legal determina que constitui uma ação discriminatória, qualquer tratamento menos favorável dada ao trabalhador, pelo facto de exercer o direito ao descanso aqui consagrada, não podendo este ser prejudicado, nomeadamente, na sua progressão na carreira ou condições de trabalho.

A formulação legislativa, sendo relativamente simples e pouco densificada, não nos parece que tenha consagrado um verdadeiro direito do trabalhador à desconexão o qual, na verdade, deverá ser encarado tendo em consideração as diferentes realidades laborais. Este parece ter sido concebido para cobrir a realidade do trabalhador com um horário de trabalho fixo, e não para as realidades de horários de trabalho flexíveis, regimes como o da isenção de horário de trabalho ou os trabalhadores “nómadas digitais”, em que a linha entre o período de descanso e o período laboral pode ser muito mais ténue e que gera estas zonas cinzentas que conflituam a (boa) relação dos empregadores e colaboradores neste novo paradigma.

Fica claro que esta mudança de paradigma, mais do que legal é cultural, devendo as empresas e os trabalhadores convergir, preparando-se para os desafios laborais presentes. E que estão para ficar.

  • José Mota Soares
  • Managing partner da Andersen

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